Sumário: 1. Introdução – 2. Definição – 3. Natureza jurídica – 4. Requisitos – 5. Particularidades da indenização – 5. Procedimento – 6. Conclusão.
1.Introdução
A nova figura jurídica, trazida ao direito positivo pátrio pelo Código Civil de 2002, em seu art. 1.228, §§ 4º e 5º, tem provocado muita polêmica, inicialmente quanto à sua natureza jurídica, se usucapião ou desapropriação, depois pelo seu caráter punitivo, de perda da propriedade em função do não cumprimento da função social da coisa.
É preciso registrar que o novo Código Civil, seguindo a nova ordem social, já esposada pela Carta Magna de 1988, não substituiu a lei civil anterior apenas na sua visão patrimonialista, ela foi mais além, fazendo surgir figuras fortes de imposição social, alçando a coletividade como bem superior à individualidade, traço marcante do Codex revogado. E isso resta evidente diante dos novos princípios que regem os contratos, quais sejam, a boa fé, o equilíbrio material e a função social dos pactos, assim mesmo ocorrendo com o instituto sob análise, que retira do proprietário o seu bem, por este não ter atingido a função social determinada pela nova ordem.
Essa função social da propriedade é atingida quando a sua aplicação é “imediata e direta na satisfação das necessidades humanas primárias, o que vale dizer que destinam à manutenção da vida humana” (José Afonso da Silva: 1997). Assim, é o bem que se destina à residência da família, ao imóvel locado que reverte em renda para manutenção do proprietário, da propriedade rural que é cultivada ou que serve para a criação de animais, entre outros. O que desvirtuaria essa função social seria a ociosidade do imóvel, de grande área, não utilizado para nenhuma atividade. Num país em que poucos têm tanto e a maioria não tem nada, inserir no direito positivo institutos que impõem essa nova distribuição de patrimônio, é extremamente louvável, e igualmente perigoso, pois a nova ordem social, se não tiver uma condução precisa, pode implicar no desvirtuamento de suas figuras jurídicas, para continuar favorecendo a quem tem, em detrimento daquele que necessita, que é a parte reconhecidamente hipossuficiente, merecedora da proteção especial do Poder Público.
Isso justifica a intervenção na propriedade, publicizando uma relação historicamente privada, para bem atingir o fim social do ditame constitucional previsto no art. 5º, XXIII, da Constituição Federal Brasileira.
2.Definição
A nova figura constante do art. 1.228, §§ 4º e 5º, tem sido tratada pela maioria da doutrina como desapropriação judicial, embora a própria norma legal não tenha conceituado o instituto, como o fez em seu § 3º, do mesmo artigo. Assim, é que, pode-se extrair do texto positivo, uma definição a princípio não esclarecedora de sua natureza jurídica, o que só poderá ser efetuado mediante o confronto com as figuras já conhecidas da usucapião e da desapropriação.
Todavia, podemos dizer, preliminarmente, que é um instituto jurídico, que prevê a perda da propriedade de extensa área, pela posse ininterrupta e de boa fé, por mais de 5 (cinco) anos, de considerável número de pessoas, que tenham realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços, considerados de interesse social e econômico relevante, mediante justa indenização ao expropriado.
Essa definição leva em conta os elementos que compõem o instituto, sem, entretanto, esclarecer a sua natureza, pois a norma não diz que é desapropriação, prevê requisitos próprios da usucapião e impõe uma indenização ao proprietário que perdeu o bem, numa montagem verdadeiramente frankensteiniana.
3.Natureza jurídica
Ficou evidenciado que o entendimento do novo instituto que prevê a perda da propriedade depende essencialmente da sua natureza jurídica, por isso é preciso estabelecer alguns breves paralelos entre as figuras da usucapião e da desapropriação.
A usucapião, cujo gênero feminino foi agora reconhecido pelo legislador pátrio, é o “modo de aquisição da propriedade e de outros diretos reais (usufruto, uso, habitação, enfiteuse, servidões prediais) pela posse prolongada da coisa com a observância dos requisitos legais. É uma aquisição do domínio pela posse prolongada, como diz Clóvis Beviláqua.” (Maria Helena Diniz: 1999).
São requisitos da usucapião: a) posse mansa, pacífica e ininterrupta; b) decurso do prazo previsto em lei; c) animus domini; d) sentença judicial que servirá de título para registro no Cartório Imobiliário.
Na figura em estudo, temos a presença da posse de boa fé e ininterrupta, o decurso do prazo legal (mínimo de cinco anos) e a sentença judicial para servir de título ao registro imobiliário. O único requisito que distancia os dois institutos é o animus domini, necessário para a configurar o direito de requerer a usucapião, e que foi dispensado para a aquisição da propriedade na forma do art. 1.228, § 4º.
Já a desapropriação é “limitação que afeta o caráter perpétuo da propriedade, porque é meio pelo qual o Poder Público determina a transferência compulsória da propriedade particular, especialmente para o seu patrimônio ou de seus delegados, o que só pode verificar-se por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição (art. 5º, XXIV), que são as desapropriações-sanção por não estar a propriedade urbana ou rural cumprindo sua função social, quando, então, a indenização se fará mediante título da dívida pública ou da dívida agrária (arts. 182 e 184)” (José Afonso da Silva: 1997).
José Afonso da Silva refere-se a duas modalidades de desapropriação: como modo de limitação da propriedade, em razão do interesse social ou necessidade ou utilidade pública; e como sanção. Na primeira espécie, a indenização deve ser prévia, em dinheiro; na segunda, pode ser através de título de dívida pública ou agrária, nas hipóteses de imóvel urbano ou rural.
Traçando um paralelo entre a desapropriação-sanção e a nova figura do Código Civil, percebe-se que existe os requisitos comuns da perda da propriedade e da indenização, que no caso civil também é posterior à perda. Todavia, a desapropriação é imposição do Poder Público, que decreta a utilidade ou necessidade pública, bem como o interesse social, previamente à expropriação propriamente dita, num procedimento que distancia as duas figuras em confronto. Igualmente no que se refere ao título de aquisição da propriedade, que, no instituto civil, é a sentença.
Um aspecto muito importante que deve ser levado em considerado, nessa precisão da natureza jurídica em estudo, tem relação com a forma de solicitação da prestação jurisidicional, pois se o entendimento é de usucapião, esta pode ser requerida em ação própria ou argüida no momento da defesa nas ações possessórias ou reivindicatórias, de outra parte, se o entendimento é de desapropriação, essa só pode ser solicitada na posição ativa.
O Código não esclarece essa situação, mas da leitura do § 4º do art. 1.228, é possível entender que a forma de perda da propriedade pode se dar ativa ou passivamente, na relação processual, ou seja, quando o legislador diz “o proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado (…)”, ele quer dizer que há um litígio na área, podendo o proprietário vir a perder o imóvel nesse litígio, nessa reivindicação. Esse é um aspecto próprio da usucapião. Essa expressão também quer identificar que a posse, após completado o prazo legal de 5 (cinco) anos, não necessita ser mais mansa e pacífica, pois, reconhecido o lapso temporal já indicado, haveria autorização para a tomada da propriedade, mesmo no curso da reivindicatória. De qualquer forma, dá a entender que a perda da propriedade pode se dar no curso da reivindicatória, inclusive pelo fato de ter sido explicitado o tipo de ação para a retomada do imóvel.
O principal argumento esposado pelos defensores da tese da usucapião, é o de que a posse deve ser ininterrupta e de boa fé, sendo modalidade onerosa em razão do preço a ser pago ao expropriado e que a desapropriação é ato de natureza administrativa, o que não ocorre na figura do art. 1.228, § 4º, que prevê a decretação judicial da desapropriação (Fabiana Pacheco de Araújo: 2003).
Já a corrente que defende a tese da desapropriação, vencedora entre os nossos, fundamenta a escolha na indenização devida ao expropriado, para descaracterizar a usucapião, bem como o fato de que a atividade judicial não desconfigura a desapropriação.
Por todo o exposto, percebe-se que essa nova forma de perda da propriedade, embora guarde semelhanças entre os institutos da usucapião e da desapropriação, não pode ser considerado exatamente como um ou outro tipo, sob pena de deturpação dos requisitos que fazem de cada instituto serem o que são. Todavia, na falta de uma natureza jurídica própria, uma vez que guarda semelhanças profundas com um e outro, sem, no entanto, encaixar-se completamente a nenhum dos dois, pode-se falar em desapropriação pelos seguintes motivos: é uma forma de limitação da propriedade, mediante indenização, a sentença judicial também é elemento comum nos casos clássicos de desapropriação e, poderíamos dizer ainda, que, aqueles requisitos trazidos pelo legislador da usucapião, têm a intenção apenas de servir como elemento autorizador da decretação do interesse social, ou seja, na ausência do decreto executivo que declara a utilidade ou necessidade pública, bem como o interesse social, o Juiz se valerá da presença dos posseiros, no exercício de uma posse de boa fé, ininterrupta num prazo de 05 (cinco) anos, durante o qual teriam produzido ou realizado obras e serviços de relevante valor social e econômico, para decretar a existência real de um verdadeiro interesse social.
4.Requisitos
São elementos que caracterizam a nova desapropriação, dita judicial: a) a posse, que deve ser ininterrupta e de boa fé, de mais de cinco anos, tempo este que deve ser configurado anteriormente à reivindicatória; b) extensa área, termo aberto, que será apreciado pela autoridade judiciária, levando em conta os imóveis da mesma localidade, os fins a que se destinam, enfim, através de especificações técnicas trazidas aos autos pelas partes e por peritos do Juízo. Pode ser imóvel urbano ou rural; c) coletividade de pessoas, significando dizer que apenas uma família ou um grupo reduzido de pessoas, não autoriza a desapropriação nessa modalidade. No dizer de Mônica Castro, “uma única família, por mais numerosa que seja, não pode preencher o conteúdo jurídico indicado, porque o que parece pretender o legislador é que a desapropriação transcenda o interesse individual, refira-se à comunidade, e não a um interesse homogêneo limitado a uma entidade familiar” (Mônica Castro: 2003); d) realização de obras e serviços de interesse social e econômico relevante, sendo exigido que os posseiros estejam cumprindo a função social do bem, sendo esta variável conforme a natureza do imóvel, feita essa apreciação pelo Juiz da causa; e) a indenização, que a lei não fala ser prévia e em dinheiro, devendo ser, entretanto, justa. Por se tratar de perda da propriedade por falta de cumprimento de sua função social, enquadra-se na modalidade desapropriação-sanção, e por isso estaria justificado o pagamento posterior, em títulos de dívida pública ou agrária, conforme tratar-se de imóvel urbano ou rural; f) a decretação judicial, por sentença, que servirá de título para registro imobiliário; e g) procedimento administrativo prévio, sem o qual tornaria impossível o processamento regular do feito.
A presença de todos esses elementos é que vai configurar a desapropriação judicial, valendo salientar que a opção do legislador por conceitos jurídicos indeterminados tem o condão de flexibilizar os seus conteúdos, para adequá-los à realidade de cada situação, depositando no julgador ampla liberdade de convencimento, mediante a produção de provas que necessitar, para uma decisão justa e compatível com o que pretendeu a norma.
5.Particularidades da indenização
Como já foi referido, a perda da propriedade se dá mediante o pagamento de uma indenização, o que caracteriza a desapropriação, na forma em que já a conhecíamos. A particularidade da indenização, no instituto sub examinem, é que a responsabilidade pelo pagamento não é do expropriante, mas do Poder Executivo, definido este conforme a localização do imóvel expropriado. Isso porque o intuito da lei é distribuir mais eqüitativamente o patrimônio, sancionando quem descumpriu as regras da função social do imóvel, ao obrigar sua partilha com quem efetivamente lhe deu a função desejada. É a situação dos agricultores que cultivaram a terra, dos sem-teto que fizeram da casa abandonada sua moradia, entre outros casos.
Diante desse alcance pretendido pela lei, de favorecer aqueles posseiros que realizaram obras e serviços de relevância social e econômica, é de se notar que os mesmos não teriam condições financeiras para indenizar o proprietário, razão porque caberá ao Poder Público suprir essa impossibilidade, através de títulos das dívidas pública e agrária, no esteio dos arts. 182, § 4º, inciso III, e 184, da Constituição Federal. No entanto, se os expropriantes, ou seja, a coletividade interessada, tem condições de pagar a indenização, isso ocorrerá sem a interferência do Poder Público.
É entendimento já pacificado, em relação a quem deve pagar a indenização ao expropriado, impondo-se ao Município a responsabilidade, nos casos de imóveis urbanos, e à União, nas hipóteses de imóveis rurais, aquela em razão do art. 182 da Carta Magna de 1988, que impõe ao Poder Público municipal o dever de ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes, e esta em razão dos arts. 184 a 186 da Constituição Federal, bem como a Lei nº 8.629, de 25.02.93, com a redação dada pela Lei nº 10.279, de 12.09.01 e Lei Complementar nº 76, de 06.07.93 (Mônica Castro: 2003).
6.Procedimento
A desapropriação judicial deve ser requerida em ação própria, ajuizada pelos posseiros interessados, em face do proprietário do imóvel. O rito será o ordinário, como o da desapropriação comum, devendo o expropriado ser citado para se defender, dentro do prazo comum de 15 (quinze) dias. O Juiz designará audiência para ouvida das partes e de testemunhas, podendo socorrer-se de perícia, inspeção judicial, documentos, enfim, de todos os meios lícitos, para formar o seu convencimento, devendo a parte autora comprovar a posse de mais de cinco anos, a quantidade de pessoas favorecidas pela medida, a realização de obras e serviços de relevante valor social e econômico. Caberá à parte ré comprovar a má fé dos autores ou o cumprimento da função social de seu imóvel, fatos que podem desautorizar a decretação da desapropriação. A sentença estará sujeita ao duplo grau de jurisdição, só vindo a servir de título aquisitivo de propriedade, após o seu trânsito em julgado. A indenização determinada na sentença levará em consideração o valor do imóvel, as benfeitorias realizadas, de acordo com a avaliação de perícia própria, a fim de identificar o justo valor devido.
O processo comum de desapropriação exige o depósito prévio para o ajuizamento da ação, seguindo a determinação legal que impõe a indenização prévia, justa e em dinheiro. Mesmo nas desapropriações-sanção, como no caso da reforma agrária, deverá existir um depósito prévio em dinheiro ou em títulos da dívida agrária. Tratando-se de desapropriação, e na lacuna da lei, dever-se-á aplicar a mesma regra, para considerar tal indenização também prévia.
O problema é que, como se trata de uma desapropriação intentada por particulares, não haveria quem realizasse a vistoria do imóvel, para fixar uma avaliação preliminar. Todavia, não é defeso ao Juiz dar seguimento à ação, sem o depósito preliminar, sob pena de causar prejuízos maiores ao expropriado, que, ao final da ação, pode restar vencedor. Assim, a parte autora deverá providenciar uma avaliação prévia do valor do imóvel, através de órgãos competentes (técnicos da Prefeitura ou do Incra, nos casos de imóveis urbanos ou rurais, respectivamente), ou mesmo por corretores devidamente credenciados, havendo depósito prévio de 30 % (trinta por cento) do valor informado.
E surge outra questão: o Poder Público tem como liberar esse depósito prévio, sem que seja parte do processo? Afinal, a Fazenda Pública tem os seus trâmites administrativos, para liberar qualquer valor.
Parece que a saída será um procedimento prévio, perante a Fazenda competente. Nos casos de imóveis urbanos, os expropriantes devem requerer ao Poder Municipal a vistoria e avaliação do imóvel a ser expropriado, documentos estes que farão parte essencial da peça exordial, com o respectivo depósito providenciado pela autoridade municipal. Tratando-se de imóveis rurais, tal procedimento administrativo caberá ao Incra, como órgão competente para vistoria e avaliação de tais áreas, inclusive verificando-se a sua extensão e adequação às exigências legais.
Como parte interessada, a Fazenda Pública deverá ser intimada para todos os atos do processo e a intervenção do Ministério Público obrigatória, na qualidade de custos legis, como determinam os arts. 82, inciso III (litígio em área rural ou interesse social) e 84 do Código de Processo Civil.
Teríamos, então, um procedimento administrativo prévio ao ajuizamento da ação, procedimento esse a ser intentado perante o Poder Público municipal ou federal, se o imóvel for urbano ou rural, sendo a Prefeitura ou o Incra, respectivamente, os órgãos responsáveis para tanto. Esse seria um requisito formal obrigatório para o conhecimento da demanda, sem o qual tornaria impossível a existência do processo.
Conclusão
A desapropriação judicial é figura nova no direito positivo brasileiro, tem natureza jurídica dúbia, embora possa ser considerada uma modalidade de desapropriação por se verificar a perda da propriedade, mediante indenização, ocorrendo a perda em razão de uma punição por descumprimento da função social da propriedade, mas guardando estreitas semelhanças com a usucapião, por exigir posse ininterrupta, de boa fé e de mais de cinco anos.
ausência de possibilidade financeira dos expropriantes, responde o Poder Público pela indenização ao expropriado, sendo o Município, no caso de imóvel urbano, e a União, na hipótese de imóvel rural.
O processo judicial deve ser precedido de um procedimento administrativo, no qual se fará vistoria e avaliação do imóvel, bem como se providenciará o depósito prévio de 30% (trinta por cento) do valor, sem o qual resta impossibilitada a formação processual. O rito será o ordinário, devendo ingressar os expropriantes com ação própria, respeitando-se a fase instrutória, estando facultado ao Juiz socorrer-se de todos os meios de prova permitidos em Direito, perícias, inspeções judiciais, ouvida de testemunhas e das partes, apreciação de documentos, seguindo-se a sentença, que estará sujeita ao duplo grau de jurisdição, só adquirindo força de título aquisitivo no registro imobiliário após o seu trânsito em julgado. O Ministério Público deve intervir no processo, sob pena de nulidade, bem como deve ser intimada a Fazenda Pública respectiva, de todos os atos processuais, por ter interesse direto na causa.
Informações Sobre o Autor
Renata Cristina Othon Lacerda de Andrade
Advogada. Professora Universitária das Faculdades Damas e Maurício de Nassau/PE. Especialista e Mestre em Direito Civil/UFPE