Resumo: A edição da Lei 11.770, de 09 de setembro de 2008, gerou muita controvérsia no âmbito da sociedade civil, uma vez que estabeleceu novas regras relativas à ampliação da licença maternidade. O artigo trata do tema, a luz dos direitos fundamentais trabalhistas insertos na Constituição Federal.
Palavras-Chave: Hermenêutica Constitucional; Direitos Fundamentais Trabalhistas; licença maternidade.
Sumário: Introdução. Noções preliminares sobre direitos fundamentais. A licença-maternidade enquanto direito fundamental trabalhista. A lei 11.770/08. Considerações finais. Referências.
Introdução
A edição da Lei 11.770, de 09 de setembro de 2008, gerou muita controvérsia no âmbito da sociedade civil, uma vez que estabeleceu novas regras relativas à ampliação da licença maternidade. A lei foi editada com o objetivo de ampliar a proteção à família, na esteira da ampliação da proteção infraconsticional aos direitos trabalhistas fundamentais.
O presente artigo, portanto, pretende analisar a nova lei a luz da hermenêutica constitucional concretizadora dos direitos fundamentais. Para tanto, divide a abordagem em três partes, sendo ao final expostas as considerações finais.
Na primeira, são tecidas considerações acerca dos direitos trabalhistas fundamentais. Na segunda, cuida-se da garantia inserta no art. 7º, inciso XVIII da Constituição Federal, sendo que na terceira analisam-se especificamente as disposições da nova lei.
Noções preliminares sobre direitos fundamentais
A conceituação do que sejam direitos fundamentais é particularmente difícil, tendo em vista a ampliação e transformação dos direitos fundamentais do homem no envolver histórico. Aumenta essa dificuldade, o fato de se empregarem várias expressões para designá-los, como “direitos naturais”, “direitos humanos”, “direitos públicos subjetivos”, “liberdades fundamentais” [1] etc.
A expressão direitos fundamentais, consoante assinala José Afonso da Silva (2005, p. 56) não significa esfera privada contraposta à atividade pública, mas sim “limitação imposta pela soberania popular aos poderes constituídos do Estado que dela dependem”. Da definição exposta pelo autor, verifica-se sua posição no sentido de limitar a expressão ao campo de abrangência da proteção dos particulares contra o Estado.
Uma noção mais atualizada dos direitos fundamentais, porém, conduz à conclusão de que estes representam a constitucionalização dos direitos humanos que gozaram de alto grau de justificação ao longo da história e que são reconhecidos como condição para o exercício dos demais direitos. Haveria, dessa forma, “um conteúdo mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático” (SAMPAIO, 2006, p. 17).
Segundo José Afonso da Silva (2005, p. 58), os direitos fundamentais teriam os seguintes caracteres: a) historicidade;b) imprescritibilidade; c) irrenunciabilidade. São, assim, os direitos fundamentais históricos, o que rechaça qualquer fundamentação no direito natural. São imprescritíveis dada a sua natureza de direitos personalíssimos de natureza em geral não patrimonial; são, por fim, irrenunciáveis, embora possam deixar de ser exercidos.
Quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, esse foi sendo paulatinamente alterado, a partir da verificação do seu caráter histórico. Com efeito, consoante assinala Canotilho (1989, p. 425), os direitos fundamentais “ pressupõem concepções de Estado e de Constituição decisivamente operantes na atividade interpretativo-concretizadora das normas constitucionais”.
Inicialmente, no constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente nos direitos de autonomia e defesa. Os postulados desta teoria liberal vem bem expostos por Canotilho (1989, p. 426) que aponta os seguintes : 1) os direitos fundamentais são direitos do particular contra o estado; 2) revestem concomitantemente o caráter de normas de distribuição de competências entre o indivíduo e o Estado; 3) apresentam-se como pré-estaduais, sendo vedada qualquer ingerência do Estado; 4) a substância e o conteúdo dos direitos fundamentais, bem como sua utilização e fundamentação, ficariam fora da competência regulamentar do Estado; 5) a finalidade e o objetivo dos direitos fundamentais é de natureza puramente individual.
A teoria da ordem dos valores, associada à doutrina de Smend e à filosofia de valores, definia os direitos fundamentais como valores de caráter objetivo, o que levava a conseqüências indicadas por Canotilho (1989, p. 427): 1) o indivíduo deixa de ser a medida dos direitos, pois os direitos fundamentais são objetivos; 2) no conteúdo essencial dos direitos fundamentais está compreendida a tutela de bens de valor jurídico igual ou mais alto.; 3) através da ordem de valores dos direitos fundamentais respeita-se a totalidade do sistema de valores do direito constitucional; 4) os direitos fundamentais só podem ser realizados no quadro dos valores aceitos por determinada comunidade; 5) a dependência do quadro de valores leva à relativização dos direitos fundamentais; 6) além da relativização, a transmutação dos direitos fundamentais em realização de valores justifica intervenções concretizadoras dos entes públicos, de forma a obter eficácia ótima dos direitos fundamentais.
A teoria institucional dos direitos fundamentais, capitaneada por Peter Haberle parte da afirmação de que os direitos fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, mas possuem um caráter duplo, ou seja, individual e institucional. Cabe, desse modo, à teoria, “o mérito de ter salientado a dimensão objetiva institucional dos direitos fundamentais” (CANOTILHO, 1989, p. 428) embora se esqueça de outras dimensões dos direitos fundamentais, como a esfera social.
A teoria social dos direitos fundamentais parte da tripla dimensão destes direitos: individual; institucional e processual. Essa dimensão processual “ impõe ao Estado não só a realização dos direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao seu livre desenvolvimento” (SAMPAIO, 2006, p. 30).
A teoria democrática funcional defende que os direitos são concedidos aos cidadãos para serem exercidos como membros da comunidade e no interesse público. Por outro lado, consoante ressalta Canotilho (1989, p. 429) “a liberdade não é a liberdade pura e simples, mas a liberdade como meio de prossecução e segurança do processo democrático, pelo que se torna patente o seu caráter funcional”. A teoria parte assim da idéia de um cidadão ativo, com direitos fundamentais colocados a serviço do princípio democrático.
Expostas as teorias historicamente relevantes que procuraram definir os direitos fundamentais, importa assinalar que, numa perspectiva atual reconhecem-se os direitos fundamentais como tendo uma dupla dimensão: subjetiva e objetiva. Em sua significação objetiva “os direitos fundamentais representam as bases do consenso sobre os valores de uma sociedade democrática, ou seja, sua função é a de sistematizar o conteúdo axiológico objetivo do ordenamento democrático escolhido pelos cidadãos”. Já em sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais “têm a função de tutelar a liberdade, a autonomia e a segurança dos cidadãos, não só em suas relações com o Estado, mas em relação aos demais membros da sociedade” (SAMPAIO, 2006, p. 34-35).
A Licença Maternidade enquanto direito fundamental trabalhista
A Constituição estabelece a proteção à maternidade e à paternidade[2]. Em seu art. 7º, inciso XVIII, fixa a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias. Trata-se de inovação constitucional, que ampliou a antiga licença de noventa para cento e vinte dias. Especificamente em relação à gestante, a Constituição também fixou, no art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, a estabilidade provisória desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Há que destacar que se trata de benefício previdenciário atribuído a todas as seguradas inscritas no regime de previdência social, de forma que abrange não apenas as empregadas, mas também as trabalhadoras autônomas inscritas no regime de previdência social.
O inciso XIX do art. 7º prevê a licença-paternidade, nos termos fixados em lei. Essa lei regulamentadora até hoje não foi editada, prevalecendo, assim, o disposto no §1º do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, que fixou cinco dias para o referido afastamento. Também nesse caso, houve uma ampliação do prazo de licença, promovida pela Constituição, uma vez que o art. 473, inciso III, da Consolidação das Leis do Trabalho previa apenas um dia de afastamento remunerado, no decorrer da primeira semana, em caso de nascimento de filho.
Essa ampliação da licença-paternidade vai ao encontro da maior responsabilização do homem pelo evento da procriação. Nesse aspecto, conforme ressalta Marly Cardone (1991, p.275), a mulher deixou de ser vista como a única responsável biológica e social pelo evento da maternidade. A esse respeito, convém ressaltar a Recomendação nº. 165, de 1981, da Organização Internacional do Trabalho sobre trabalhadores com encargos de família. A Recomendação, nos termos de seu item 1, aplica-se a homens e mulheres trabalhadores com responsabilidades com relação a seus filhos dependentes e com responsabilidades por outros membros de sua família imediata que precisam de seus cuidados ou apoio.
De acordo com o item 18 da citada Recomendação, especial atenção deve ser dispensada a medidas gerais para melhorar as condições de trabalho e a qualidade de vida no trabalho, inclusive medidas que objetivem: a) reduzir progressivamente a jornada de trabalho e reduzir as horas extraordinárias; b) adotar mais flexibilidade na organização dos horários de trabalho, dos períodos de repouso e das férias. Nos termos do item 19, sempre que viável e conveniente, as necessidades especiais de trabalhadores, inclusive as decorrentes de encargos de família, devem ser levadas em consideração na programação de turnos e de trabalho noturno. No item 20, recomenda que encargos de família e fatores como o local de trabalho do cônjuge e as possibilidades de educação dos filhos devem ser levados em conta na transferência de trabalhadores de uma localidade para outra.
Porém, o que mais se evidencia na Recomendação nº 165 é a possibilidade de afastamento após a licença maternidade, cujas condições seriam fixadas em cada país por suas normas internas. Assim, esse afastamento poderia ser até sem vencimentos, desde que com a garantia do emprego no seu retorno. No item 22, nº. 1, a Recomendação indica que o pai e a mãe devem ter a possibilidade, no período imediatamente seguinte à licença-maternidade, de obterem licença de afastamento sem perda do emprego e dos direitos dele decorrentes. Já no item 23, nº 1, entende ser possível a um trabalhador, homem ou mulher, com encargos de família relativos a um filho dependente, obter licença de afastamento em caso de doença do dependente. Esse benefício também se aplicaria, nos temos no n. 2 do item 23, no caso de doença de outro membro de sua família imediata que requeira cuidado ou apoio.
A Recomendação tem o mérito de exortar os países-membros à criação de legislação específica assecuratória dos direitos ali determinados. O que importa ressaltar, porém, é que, nos termos da Constituição, tanto a licença maternidade quanto a paternidade constituem direito fundamental do trabalhador, independentemente da sua condição de empregado. Em última análise, expressa-se como proteção à infância e, desta forma, trata-se de ônus para toda a sociedade, impondo-se o seu respeito. Sem dúvida, a saúde física e mental do bebê é o bem maior tutelado pela constituição, uma vez que já restou demonstrado que o vínculo que se forma nos seis primeiros meses de vida é fundamental para garantir a formação de um futuro cidadão mais sadio, tanto do ponto de vista físico quanto psíquico[3].
A Lei 11770/08
A Lei 11770/08 instituiu o Programa Empresa Cidadã, destinado a prorrogar por 60 (sessenta) dias a duração da licença-maternidade prevista no inciso XVIII do caput do art. 7o da Constituição Federal.
Em relação à iniciativa privada, a prorrogação será garantida à empregada da pessoa jurídica que aderir ao Programa, desde que a empregada a requeira até o final do primeiro mês após o parto, e concedida imediatamente após a fruição da licença-maternidade de 120 dias. O pagamento é feito diretamente pelo empregador, o qual, nos termos do art. 5º, poderá deduzir do imposto devido, desde que tributado com base no lucro real, em cada período de apuração, o total da remuneração integral da empregada pago nos 60 (sessenta) dias de prorrogação de sua licença-maternidade, vedada a dedução como despesa operacional.
Em relação à administração pública, direta, indireta e fundacional, nos termos do art. 2º da Lei 11770/08, esta ficou autorizada a instituir programa que garanta prorrogação da licença-maternidade para suas servidoras, nos termos do que prevê o art. 1o desta Lei.
Durante o período de prorrogação da licença-maternidade, a empregada terá direito, conforme art. 3º da Lei, à sua remuneração integral, nos mesmos moldes devidos no período de percepção do salário-maternidade pago pelo regime geral de previdência social. Veja-se que a Lei estabelece que no período de prorrogação da licença-maternidade a empregada não poderá exercer qualquer atividade remunerada e a criança não poderá ser mantida em creche ou organização similar.
Considerações finais
A ampliação da licença-maternidade prevista na Lei 11770/08 vem ao encontro da garantia inserta no art. 7º, inciso XVIII da Constituição Federal, impondo-se a sua efetiva aplicação no âmbito da iniciativa privada, através de maiores estímulos a sua concessão.
No âmbito da iniciativa pública, urge a sua regulamentação no âmbito das pessoas jurídicas que ainda não o fizeram, uma vez que não se trata de mera discricionariedade da administração, mas sim poder-dever de garantir os direitos trabalhistas fundamentais.
Informações Sobre o Autor
Flávia Moreira Guimarães Pessoa
Juíza do Trabalho Substituta (TRT 20ª Região), Professora Assistente da UFS, Coordenadora e Professora da Pós-Graduação em Direito do Trabalho (TRT 20ª Região/UFS), Especialista em Direito Processual pela UFSC, Mestre em Direito, Estado e Cidadania pela UGF, Doutora em Direito Público pela UFBA.