Resumo: O propósito deste estudo é abordar uma questão que vem passando despercebida nas obras relativas ao Direito Tributário, qual seja, a da lei tributária remetendo à conceito presente em lei de outro ramo do Direito, por exemplo, o Direito Civil, particularmente quando esta última vem a ser revogada em face de lei nova. Intenciona-se, pois, identificar qual seria a lei que, integrando à lei tributária, iria compor a norma (regra) jurídica, para, somente então, incidir e irradiar seus efeitos.
Palavras-chave: Lei tributária, remissão, lei revogada.
Abstract: The purpose of this study is to approach a question that comes passing unobserved in the books about Tax Law, the case is when the tax law has a mention to any concept present in law of another part of the Right, for example, Civil Law, when this last one comes to be revoked in face of new law. Intending, therefore, to identify which it would be the law that, integrating to the tax law, would go to compose the juridical norm, for, only then, to happen and to radiate its effect.
Keywords: Tax law, remission, revoked law
Sumário: 1. Considerações iniciais. 2. Apresentação do problema. 3. Revisão da doutrina: o Código de 1916 ou o de 2002? 4. À guisa de conclusão: o posicionamento adotado
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Todas as ciências e atividades profissionais tendem a exigir algum grau de especialização e não raro se considera melhor profissional aquele que é extremamente especializado em uma determinada área. Sendo o Direito uno, contudo, devem igualmente aplicadores e cientistas, estarem sempre revistando as lições de Teoria Geral do Direito; seja porque o problema da autonomia de qualquer dos ramos da árvore jurídica é problema falso; seja porque a contínua busca de especializações e subespecializações, acaba desvinculando-as dos princípios gerais, quebrando assim a unidade substancial e conceitual do Direito.
Qualquer que seja o ramo do Direito, quem insistir em vê-lo como excessivamente autônomo e desvinculado dos demais, estará se colocando automaticamente na zona da incidência de críticas severas dos maiores juristas pátrios, nomes como Pontes de Miranda, Alfredo Augusto Becker, Vicente Ráo, dentre outros tantos.
Os grandes nomes das letras tributárias pátrias há muito parecem ter percebido tal fato, sendo comuns casos de tributaristas que depois de consagrados dedicaram seu labor a obras mais elementares, referentes à Filosofia, Teoria Geral e Introdução ao Estudo do Direito. Justamente em homenagem a figuras tão inspiradoras é que agora se apresenta este singelo artigo tecendo alguns comentários acerca de uma questão relativa à norma jurídica tributária: O que acontece quando a lei tributária remete a uma lei revogada de outro ramo do Direito?
2. APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
Perceba-se que é uma questão que é muito mais de Teoria Geral do Direito do que de Direito Tributário e que as conclusões aqui obtidas podem ser aplicáveis a qualquer ramo do Direito, não obstante se tenha optado pela análise da norma tributária, particularmente, pela facilidade com que o tema pode ser exemplificado através da leitura do Art. 29. do Código Tributário Nacional: “O imposto, de competência da União, sobre a propriedade territorial rural tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de imóvel por natureza, como definido na lei civil, localização fora da zona urbana do Município.”
Ocorre que o dispositivo sub oculis foi editado na vigência do Código Civil de 16, a questão é, com o advento do novo Codex, e eventual nova definição de “propriedade”, aplica-se a nova definição ou a antiga? Diante das eventuais diferenças que viesse a ter a possível definição de imóvel na lei civil enquanto durar esta redação do Art. 29, sempre que o intérprete precisar, efetivamente, definir bem imóvel para um caso prático, enfrentará a dúvida sobre qual lei utilizar. É para responder a esta questão que se destina o presente trabalho.
3. REVISÃO DA DOUTRINA: O CÓDIGO DE 1916 OU O DE 2002?
Em suma, afinal, aplica-se a lei civil vigente à época da edição do CTN ou a lei civil atual? Eis as duas alternativas e seus fundamentos:
a) Considerar que o legislador tributário fez menção, ainda que não expressamente, ao Código de 1916, por considerar a definição o codex bevilaquiano perfeita, não repetindo ou inovando o conceito de bem imóvel por entendê-lo desnecessário. Este é o posicionamento do eminente Hugo de Brito Machado, autor que enfrentou diretamente a questão com a lucidez e coerência, que lhe são pontuais e assegurou:
“Entendo que os dispositivos da lei civil vigentes na data da edição do Código Tributário Nacional, aos quais este faz remissão, integraram-se em suas normas, que permanecem inalteradas em face da mudança havida na lei civil. Assim, não obstante o advento do novo Código Civil, para os fins tributários os imóveis podem ser (a) por natureza; (b) por acessão física; (c) por acessão intelectual; (d) por disposição de lei. Esta é a classificação feita pela doutrina, em face dos arts. 43 e 44 do Código Civil, que em seu art. 43, inciso I, indica os imóveis por natureza, a saber: ‘o solo com a sua superfície, os acessórios e adjacências naturais, compreendendo as árvores e frutos pendentes, o espaço aéreo e o subsolo’. O art. 43, inciso II, indica os imóveis por acessão física, que compreendem ‘tudo quanto o homem incorporar permanentemente ao solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e construções, de modo que se não possa retirar sem destruição, modificação, fratura ou dano’. São imóveis por acessão intelectual os indicados no art. 43, inciso III, a saber, ‘tudo quanto no imóvel o proprietário mantiver, intencionalmente, empregado na sua exploração industrial, aformoseamento, ou comodidade’. Finalmente, no art. 44 o Código Civil define os imóveis por determinação legal, que são os direitos reais sobre imóveis, as apólices da dívida pública, quando inalienáveis, e o direito à sucessão aberta.” (2007, p. 365)
No mesmo diapasão parecem entender Yoshiaki Ichihara, pois ainda que não tenha tratado especificamente da questão, é o que se depreende da análise de sua obra:
“Assim, o imóvel rural passível de tributação deste imposto é a propriedade rural, ou aquele que possui apenas o domínio ou a posse, este último no sentido de quem detém a posse agindo como proprietário ou com ânimo de o ser, remetendo à lei civil o alcance destas definições (cf. arts. 43 a 46 do Código Civil)” (2006, p. 248, grifei)
Vittorio Cassone igualmente, embora não adentre expressamente à questão, também demonstra entender que a remissão do CTN é ao Código de 16: “o domínio útil na enfiteuse, tratado pelo CCB nos arts. 698 ss”. (2007, p. 313).
Ressalte-se, ad nauseam, que nem Yoshiaki Ichihara nem Vittorio Cassone se manifestam positivamente no sentido de que a alusão feita pelo CTN é ao Código de 1916, este, contudo, é o entendimento que suas obras autorizam, porquanto remetem a artigos do Codex Bevilaquiano. No caso de Vittorio Cassone, por exemplo, só pode referir-se ao código de 16, já que o art. 698 do Código de 2002 trata da obrigação do mandante de ressarcir o mandatário.
b) Considerar que o legislador tributário fez referência genérica à lei civil, neste caso, houve a tentativa de dar dinamismo à lei tributária, pois sem repetir ou mesmo inovar o conceito de bem imóvel, quis que a lei tributária remetesse sempre à lei civil vigente no momento da aplicação.
Embora também não adentre explicitamente à questão de qual é o Código aplicável, a obra de Sacha Calmon Navarro Coêlho autoriza afirmar que seu entendimento é o de que a lei tributária está remetendo ao código de 2002:
“O código Civil pátrio, no seu art. 79, diz ser imóvel por natureza e acessão física o solo e tudo quanto se lhe incorporar natural ou artificialmente. Segundo o art. 29 do CTN, são tributáveis os proprietários de imóveis sitos fora da zona urbana. Assim, também os possuidores de glebas ad usucapionem e os titulares do domínio útil (enfiteuse). O ITR, na base, incide sobre a propriedade ou a posse da ‘terra nua’.
A posse está regulada nos artigos 1.196 e seguintes do Código Civil, e o domínio útil, nos artigos 1.453 e 1.245 do mesmo.”
Torna-se evidente a referência ao Código de 2002, porquanto o C ó digo de 1916, tratava em seu art. 1.245, por exemplo, dos contratos de empreitada de edifícios ou outras construções consideráveis.
4. À GUISA DE CONCLUSÃO: O POSICIONAMENTO ADOTADO
No caso sub examine, é bem possível que o legislador tributário, mesmo tendo a autonomia para estabelecer seu conceito próprio — e.g. como o fez quando definiu poder de polícia — optou por não invadir a seara dos civilistas e por isso não definiu o que seria imóvel, da mesma forma, preferindo fazer menção genérica à lei civil. Quiçá a fim de contemplar não apenas o Código de 1916, a época vigente, como também demais diplomas que porventura contribuíssem para tal definição. Antevendo, talvez, que a definição da lei civil poderia ser modificada, optou pela menção genérica, mantendo assim o CTN sempre atual.
Noutra perspectiva, evitando elucubrações acerca das intenções do legislador, tratando apenas da norma positivada na interpretação que ela autoriza; e aqui é impossível não citar Pontes de Miranda:
“Que as leis se façam mais compreensivas, e se tenha de evitar a procura do que ‘pensou’ o fazedor da regra jurídica, é o que mais importa (…). A regra jurídica é jogada ao Povo, ou a grupo do Povo, e tem ele que compreender o que lhe chegou e atender ao que, cogente, dispositiva ou interpelativamente, se há de aplicar, uma vez que incidiu.” (2000, p. 347)
É possível considerar que, quando ocorre a incidência da hipótese tributária, automática e infalível no mundo do pensamento, não se trata apenas de determinado artigo do CTN, mas daquele artigo à luz de todo o Direito vigente, porque o Direito como se sabe é uno, sendo, de fato, do ordenamento jurídico como um todo que provém a regra jurídica, e não de um determinado dispositivo legal.
Por mais que uma regra jurídica possa ser editada para dispor e reger apenas um único caso específico, ela não é válida se estiver em desconformidade com a Constituição e pode não sê-lo se estiver se chocando com o restante do ordenamento jurídico. (A propósito, ver BECKER, p. 117 e 208-212 sobre antinomia e inconstitucionalidade)
Assim é que, data maxima venia entendimentos contrários, e são muito bem construídos; há que se entender que ao remeter à lei civil, de forma genérica, está o Código Tributário Nacional referindo-se ao Código de 2002, até porque, tendo sido o Código de 1916 revogado, não mais integra o ordenamento jurídico pátrio, inexistindo razões para que se continuasse associando o CTN ao mesmo.
Informações Sobre o Autor
Francysco Pablo Feitosa Gonçalves
Bacharel em direito pela Universidade Regional do Cariri – URCA (2007); Especialista em Sociologia e História também pela URCA (2008) e em Direito da Administração Municipal pela Faculdade de Juazeiro do Norte – FJN (2008); Advogado junto ao escritório Emicles Advogados e Professor colaborador junto à FUNDETEC/URCA, cursando o Mestrado em Direito na Universidade Católica de Pernambuco – UNICAP, onde é membro do Grupo de Pesquisa “Direitos Fundamentais: Instrumentos de Concretização”; Bolsista, CAPES/PROSUP.