1 INTRODUÇÃO
O dito popular “achado não é roubado”, certamente, não se aplica ao Direito já que existe um instituto próprio para tratar de coisas achadas: a Descoberta, descrita nos artigos 1.233 a 1.237 da Lei 10.406/02, onde Descobridor não adquire a propriedade.
Não é raro se ver nos meios de comunicação pessoas que encontram, por exemplo, malas, celulares, notebooks ou pacotes de dinheiro, perdidos nos mais diversos ambientes como táxi, banheiro, praças, escolas, bibliotecas, etc.
Tanto é verdade que a mídia se prevalece do momento, e, muitas vezes transforma o Descobridor em herói por ter devolvido, integralmente, o achado, sem ao menos auferir o Direito que está expresso em nossa Lei[1], rotulando o descobridor de honesto, exemplo de vida, de personalidade ou de homem verdadeiro, entretanto nada recebe pela boa ação.
O último caso noticiado na mídia, que me ocorre, é do Sr. Francisco Basílio[2], cinqüenta e cinco anos, pai de cinco filhos, que trabalha de faxineiro num dos banheiros do aeroporto de Brasília, onde encontrou um pacote, esquecido por um turista suíço, contendo dez mil dólares.
O fato foi noticiado aos quatro ventos, pois ao encontrar o dinheiro, prontamente procurou o proprietário e devolveu. Deu tanto ibope que o Sr. Francisco Basílio foi recebido pelo Presidente da República o qual lhe prestou uma homenagem.
Chega a ser hilário o fato se pararmos para analisar sob a ótica do Direito. Explico. Ocorre que, lembro de ter visto veiculado entre um programa e outro o Sr. Francisco Basílio, num dos slogans criados pela mídia como o “o brasileiro que não desiste nunca”, ou algo que o valha. Creio que a mídia deveria era ter conhecimento um pouco mais de Direito e trabalhar no enfoque que cada brasileiro deve ter um advogado.
Em Itajaí, SC, há um Juiz de Direito que tem uma frase muito interessante, ele diz: “diga-me quem é teu advogado que te direi quem és”. Eu diria que na vida do Sr. Francisco Basílio faltou um advogado, e no caso da mídia faltaram assessoramento e conhecimento jurídico.
Ante alguns fatos tão noticiados, e sem a aplicação correta da lei, existem outros casos práticos que devem ser considerados pelos magistrados como sendo, também, Descoberta, já que o Código Civil aumentou consideravelmente o poder discricionário dos magistrados.
2 ALGUNS CONCEITOS OPERACIONAIS
Se o Sr. Francisco Basílio encontrou algo que não lhe pertencia, do ponto de vista do Direito, Código Civil, ele é um Descobridor, consequentemente não poder ficar com a coisa encontrada por não se tratar de res nullis ou res derelictae, todavia merece ser recompensado pela descoberta.
A res nullis é coisa de ninguém, algo que nunca foi propriedade de alguém antes, assim, é passível de aquisição de acordo com o Artigo 1.263[3] do Código Civil. O que não é o caso do Sr. Francisco Basílio.
Da mesma forma aquele que encontrar algo abandonado, res derelictae, isto é, coisa da qual o dono não quer mais, pode adquirir a propriedade também em consonância com o mesmo artigo. Para exemplificar tem-se um peixe pescado de um costão que é res nullis, e uma lata de cerveja vazia jogada no lixo é res derelictae, haja vista que para o “catador de lixo” a lata tem valor econômico.
Há uma grande diferença entre estas três categorias (coisa encontrada (descoberta), res nullis, res derelictae) já que no caso da descoberta o verdadeiro proprietário, independente do tempo, presume-se estar à procura e, na coisa abandonada o proprietário se desfaz da coisa por iniciativa própria, enquanto a res nullis, a coisa nunca possuiu proprietário.
O que se quer diferenciar é que, quando a coisa é encontrada, achada, descoberta, não se adquire a propriedade devendo-se devolver ao verdadeiro proprietário. Todavia, quando se tratar de coisa sem dono ou coisa abandonada, então se adquire a propriedade.
Outro conceito operacional que não deve ser confundido é o do inventor, termo ligado a Propriedade Industrial, dado a pessoa inventiva que através do seu esforço intelectual criativo desenvolve algo não conhecido e utilizado de acordo com o Artigo 11, § 1° da Lei 9.279/96.
3 Descoberta
Para entender como funciona este instituto, vamos simular três Descobertas.
Inicialmente, imagine-se em alto-mar quando de repente você avista algo boiando, e, ao se aproximar percebe que é um barco de pesca emborcado, de cabeça para baixo e que não afundou. Você reboca o barco emborcado até a praia, coloca-o em terra firme, lava-o e conserta-o. O Barco emborcado tem um nome Perdido II, o que leva a entender que deve existir o Perdido I, e que este deve ter um proprietário, pois você que descobriu o Perdido II não é proprietário e deve inicialmente encontrar o verdadeiro proprietário, como prescreve o Artigo 1.233 do Código Civil e o Artigo 1.170 do Código de Processo Civil.
Você deve estar se perguntando como fica seu trabalho de puxar o barco, consertá-lo, etc. A Lei prevê uma recompensa de no mínimo 5% do valor da coisa e mais as indenizações pelas despesas para o caso de Descoberta.
Artigo 1.234. Aquele que restituir a coisa achada, nos termos do artigo antecedente, terá direito a uma recompensa não inferior a cinco por cento do seu valor, e à indenização pelas despesas que houver feito com a conservação e transporte da coisa, se o dono não preferir abandoná-la. […] (grifo nosso).
No intuito de ilustração, suponhamos que o Perdido II foi avaliado em R$ 100.000,00, você teria, no mínimo R$ 5.000,00 de recompensa mais às despesas por rebocar o barco, lavá-lo, consertá-lo e o gasto despendido para procurar o proprietário.
Artigo 1.234. […]
Parágrafo único. Na determinação do montante da recompensa, considerar-se-á o esforço desenvolvido pelo descobridor para encontrar o dono, ou o legítimo possuidor, as possibilidades que teria este de encontrar a coisa e a situação econômica de ambos. (Código Civil) (grifo nosso)
Esta recompensa viria por parte do proprietário, caso fosse encontrado. Não encontrando o proprietário do Perdido II a autoridade competente daria conhecimento da descoberta através da imprensa e outros meios de informação, expedindo editais eis que seu valor os comporta, o que não é obrigatório em todos os casos, conforme o dispositivo a seguir:
Art. 1.236. A autoridade competente dará conhecimento da descoberta através da imprensa e outros meios de informação, somente expedindo editais se o seu valor os comportar.
Decorridos sessenta dias da divulgação da notícia pela imprensa, ou do edital, não se apresentando quem comprove a propriedade sobre o Perdido II, será ele vendido em hasta pública e, deduzidas do preço as despesas, mais a recompensa do descobridor, pertencerá o remanescente ao Município em cuja circunscrição se deparou o Perdido II (Artigo 1.237 do Código Civil).
O segundo exemplo que trouxemos sobre descoberta é uma variação quanto ao descobridor, quando este age com dolo (Artigo 1.235 do Código Civil).
No que se refere à indenização, esta pode ser em desfavor do descobrir quando este age com dolo. Vamos exemplificar. Imagine que você encontra em um banco de uma praça um notebook. Você, conhecedor do instituto da Descoberta, leva-o para casa e verifica as informações contidas nele, chegando à conclusão de o computador pertence ao Sr. Tharnier Aaron, pois há pastas e arquivos que te levaram a esta conclusão.
Numa tentativa de procurar o Sr. Tharnier Aaron você telefona para várias pessoas e não o encontra. No entanto não encontrando você formata o hard disk (HD) do computador, até por determinado ímpeto momentâneo de ficar com a máquina, mas posteriormente resolve entregar à autoridade competente. Depois de expedido o edital e noticiado pelo órgão competente, eis que aparece o proprietário. O proprietário ao verificar seu computador encontra-o formatado, perdendo dados de suma importância, como por exemplo, a única cópia de sua tese de doutorado.
Como o Descobridor, nesse caso, agiu com dolo, responde pelos prejuízos causados ao proprietário Sr. Tharnier Aaron, sendo abatido de sua recompensa e demais indenizações os valores correspondentes ao prejuízo.
Art. 1.235. O descobridor responde pelos prejuízos causados ao proprietário ou possuidor legítimo, quando tiver procedido com dolo.
Por fim, o terceiro exemplo que trouxemos a baila é a descoberta de um relógio de pequena monta. Nesse caso, não faz sentido a publicação em jornais e expedição de edital e consequentemente leilão, por se tornar dispendioso, isto é, movimentar toda a máquina do judiciário por fato tão insignificante. Daí o Código Civil se reporta que o município cuja circunscrição se encontrou o relógio poder abandonar em favor do descobridor.
4 ABANDONO DA COISA PELO PROPRIETÁRIO OU MUNICÍPIO
A máxima: “achado não é roubado”, veementemente, não é verdadeira, sobrepondo-se a sentença “Descoberta não é modo de aquisição da propriedade”.
Todavia, duas situações devem ficar claras: quando o proprietário abandona a coisa e quando o município abandona a coisa.
Não estamos mais mencionando a Descoberta em si, e sim o Abandono em ambos os casos e como visto alhures a pessoa que encontrou a coisa pode adquirir a propriedade pela ocupação (1.263 do Código Civil).
Na primeira hipótese o próprio proprietário abandona a coisa exercendo o seu direito de dispor.
Na segunda hipótese o município pode ficar com a coisa até que o proprietário apareça ou pode abandonar em favor do Descobridor (Artigo 1.237, parágrafo único), dado que ele, município, naquele momento é proprietário, pois do contrário jamais poderia abandonar, vez que somente quem pode exercer a faculdade de dispor é o proprietário (Artigo 1.237, parágrafo único).
5 HERMENÊUTICA
É certo que o Código Civil trouxe várias novidades e uma delas foi o aumento da discricionariedade dos magistrados à interpretação fria da lei.
Creio que com muita propriedade isto foi instalado em nosso Código Civil, pois não podíamos mais ficar atrelados à idéia de Napoleão, o qual dispensou sutilmente a fraternidade tanto alardeada pela Revolução Francesa.
O Código Napoleônico, das três bases da revolução francesa, preocupou-se efetivamente com uma liberdade (obrigações), direcionou a igualdade (propriedade) e nada fez com a fraternidade. Como o Código Civil de 1916 descendia do Napoleônico, nada mais justo se reparar alguns equívocos como o “esquecimento” da fraternidade. A fraternidade de nosso código está arraigado na função social. A função social da propriedade, poder-dever, donde direito subjetivo tem a finalidade social, comedida pela discricionariedade (eqüidade) do magistrado.
Ocorre que algumas interpretações ao “pé da letra” ou a análise da mens legis do legislador não é mais plausível, haja vista as constantes mudanças sociais e, nesse sentido já argumentava Streck[4].
O que estou querendo trazer para discussão são pontos dentro do Código Civil em que a hermenêutica deve ser posta em prática, transpassando a barreira da linguagem e admitindo-se, sempre que possível, uma nova interpretação.
A exemplo disso, para a Descoberta, poder-se-ia alastrar para situações como o dinheiro depositado em conta corrente alheia. Obviamente deve-se ter em mente que nem todos os casos abarcariam a Descoberta. Porém, num caso onde o dinheiro fosse depositado por um cliente de banco em conta que não fosse a sua e, não se pudesse descobrir em qual conta foi depositada, creio que estaria harmonioso com o instituto.
O deposito equivocado equipara-se aquele que perdeu algo e o Descobridor seria o “beneficiado” pelo depósito. Se o “beneficiado” por livre e espontânea vontade se dirigisse ao banco e ajudasse a resolver o caso, estaríamos consoantes mais uma vez com a Descoberta.
Partindo do princípio de que ninguém pode causar prejuízo a outro, vê-se lesado o “beneficiado” pelo depósito a partir do momento que saiu de sua casa para resolver problema causado por outro, pois podia muito bem ter pegado este dinheiro e entregue a autoridade competente ao invés de ter resolvido isto diretamente com o banco.
A idéia aqui foi só ilustrar com um exemplo o que ocorre não raramente nos bancos onde muitas vezes a aplicação dos institutos do Código Civil pode ser interpretada de acordo com outros casos concretos.
Informações Sobre os Autores
Álvaro Borges de Oliveira
Graduado e Mestre em Direito; Graduado em Ciência da Computação; Mestre e Doutor em Engenharia de Produção; Professor da Graduação das disciplinas: de Direito das Coisas e Informática Jurídica, na Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI; Professor do Mestrado da disciplina Propriedade como princípio constitucional, no Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica – CPCJ/UNIVALI.
Emanuela Cristina Andrade Lacerda
Advogada militante e mestranda