A relativização do direito de imagem: limites da sua (in) disponibilidade

Os Direitos de personalidade e o Direito de imagem

A personalidade é um atributo inerente ao ser humano. Nasce com este e o acompanha até o último suspiro. Trata-se de um instituto jurídico que confere individualidade a cada ser humano, distinguindo-o dos demais. Sendo verdade que o homem é um ser social, não menos correta é a assertiva de que também é um ser individual, é dizer, único. De forma paradoxal, porém perfeitamente compreensível, a individualidade só tem razão de ser dentro da coletividade, bem como os direitos de personalidade somente podem ser compreendidos dentro do brocardo ubi societas, ibi jus.

A personalidade tem início com o nascimento com vida, mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. A vida em potencial já é protegida pelo Direito. Pela doutrina civilista se agarrar tradicionalmente ao entendimento de que o mundo das relações jurídicas necessita de segurança, vê-se valer a necessidade do estabelecimento de termos iniciais e finais para a personalidade, sobretudo no que concerne aos seus efeitos patrimoniais na esfera coletiva.

Nos primeiros dias de vida acadêmica aprendemos que a personalidade é a aptidão para possuir direitos e contrair obrigações, isto é, ser sujeito de direito e obrigações. Segundo a lição do saudoso mestre Caio Mário, “trata-se de um atributo inseparável do homem dentro da ordem jurídica, qualidade que não decorre do preenchimento de qualquer requisito psíquico e também dele inseparável”[1]. Embora pareça um poder absoluto, a personalidade é institucionalizada em um complexo de regras que limitam seu contorno. Sob a denominação de direitos da personalidade, compreendem-se direitos considerados essenciais à pessoa humana, tal como o nome, a privacidade, a vida, a moral, a liberdade, e aquele que, por hora, é objeto de nosso estudo, a imagem; todos eles assentados na cláusula geral protetiva da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III da CRFB).

Cumpre esclarecer que a personalidade não é um direito, protegido por uma regra que estabeleça uma sanção em caso de descumprimento. Trata-se, na verdade, de um ponto de apoio no qual encontram amparo os direitos e obrigações. O dano que se pode provocar ao sujeito não agride sua personalidade em si, mas sim um direito de personalidade, tal como a honra, a integridade física, ou até mesmo a imagem, estes sim capazes de gerar uma pretensão indenizatória, caso sejam violados.

Questão deveras interessante e capaz de provocar debates calorosos é a que diz respeito à classificação dos direitos da personalidade. São direitos adquiridos ou inatos? São direitos universais, imutáveis no tempo e espaço, ou variam conforme a cultura de cada civilização? Alguns diriam que o direito à vida não é absoluto, pois em algumas sociedades vigora a pena de morte como punição para determinados crimes. Outros defenderiam tese contrária, sob o argumento de que o direito é absoluto enquanto o seu titular não representa uma ameaça à coletividade; e, uma vez que um sujeito se transforma em uma ameaça, o seio social busca meios para se defender.

Diz-se que os “adquiridos” existem na medida do direito positivo, isto é, tem sua extensão definida nas regras que os disciplinam. Por outro lado, “inatos” seriam aqueles absolutos, decorrentes do fato isolado do nascimento com vida, independentes de qualquer condição legislativa, irrenunciáveis, intransmissíveis, imprescritíveis e protegidos pelos princípios de direito. Os direitos da personalidade são absolutos porque oponíveis a todos os demais membros do corpo social, de forma erga omnes; irrenunciáveis porque vinculados de forma intrínseca à pessoa de seu titular; intransmissíveis porque impossível sua cessão, seja a título gratuito ou oneroso; imprescritíveis porque sempre se poderá invocá-los, não importando o decurso do tempo.

Como regra geral, os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque não admitem avaliação pecuniária, estando fora do patrimônio econômico. Não obstante, diante da classificação supra, e no que diz respeito à disponibilidade, adiantamos que somente alguns poucos direitos de personalidade, adquiridos, seriam disponíveis e, ainda assim, nos limites restritos do ordenamento jurídico e respeitando os preceitos éticos da sociedade em questão. Tal como assevera Carlos Alberto Bittar, “o direito à imagem reveste-se de todas as características comuns aos direitos da personalidade. Destaca-se, no entanto, dos demais, pelo aspecto de disponibilidade que, com respeito a esse direito, assume dimensões de relevo, em função da prática consagrada de uso de imagem humana em publicidade”[2].

O reflexo econômico dos direitos da personalidade denomina-se patrimônio, ou seja, o fato de assumir obrigações e possuir direitos, sendo credor e devedor, sendo sujeito ativo e passivo de relações econômicas repercute não só na esfera individual, mas também na social.

A imagem, por sua vez, é um dos atributos da personalidade que confere, com maior força, caráter individual ao ser humano. Ao conjunto de caracteres próprios de cada indivíduo que o distingue dos demais pelo efeito visual, dá-se o nome de imagem. Em feliz síntese, o professor Sergio Cavalieri Filho define a imagem como sendo “um conjunto de traços e caracteres que distinguem e individualizam uma pessoa no meio social”[3]. Trata-se de um bem personalíssimo, destacável do corpo e passível de representação.

O direito à imagem alcançou posição relevante no âmbito dos direitos da personalidade graças ao extraordinário progresso das comunicações e à importância que a imagem adquiriu no contexto publicitário. Sua captação e a difusão na sociedade contemporânea, tendo em vista o desenvolvimento tecnológico, causou uma grande exposição, sobretudo de pessoas que obtiveram destaque em suas atividades. Conseqüentemente, à imagem foi agregado um valor econômico expressivo.

Dotado de certas particularidades, o direito à própria imagem é um direito essencial ao homem. Não pode o titular privar-se da sua própria imagem, mas dela pode dispor para tirar proveito econômico. Esta característica fundamental do direito à imagem implica em uma série de conseqüências no mundo jurídico, pois quando é utilizada a imagem alheia sem o consentimento do interessado, ou quando se ultrapassa os limites do que foi autorizado, ocorre uma violação ao direito à imagem.

Historicamente, o direito de imagem é um direito novo, que nasceu e tem se desenvolvido na sociedade capitalista, na qual quase tudo é capitalizado, isto é, dominado pelo poder da moeda. Desde o invento da imprensa, passando pela televisão e chegando a era do computador, a imagem passou a ser explorada com freqüência cada vez maior. É notória a associação entre uma “boa imagem” e o consumismo. A exploração comercial da imagem encontrou terreno fértil na sociedade de consumo capitalista, que tende a padronizar os seres humanos ao mesmo tempo em que prega o individualismo. Todos buscam a “boa imagem”, padronizada e vulgarizada nos meios de comunicação de massa, sob pena de se sentirem excluídos e, até mesmo, de serem excluídos através do fenômeno nefasto do preconceito. O indivíduo pós-moderno é solitário e temeroso, além de oprimido e prisioneiro dos vícios do consumismo. Ou ele está nos padrões sociais ou ele simplesmente é marginalizado. Não há escolha possível em uma sociedade que se diz democrática, mas apresenta contornos totalitários em certos aspectos culturais. Estamos longe de viver, de fato, numa sociedade pluralista. Esta não é uma característica da sociedade brasileira apenas, mais do que isso, é uma característica do estilo de vida ocidental e do modo de produção capitalista, o que aumenta consideravelmente o teor da abordagem. Na verdade, vivemos uma crise de paradigmas sociais que o historiador Eric HobsBawn bem sintetiza na seguintes palavras:

“Os eventos nos últimos anos foram realmente espetaculares e transformadores do mundo — e também inesperados e imprevisíveis. A natureza revolucionária do período que vivemos vai muito além das mudanças na política global, que, em poucos meses, estão tornando desatualizados os atlas preparados pelos cartógrafos. Nunca antes na história a vida humana normal e as sociedades em que ela ocorre foram tão radicalmente transformadas em tão pouco tempo: não apenas em um único período de vida, mas em parte de um período de vida”[4].

Dentro deste contexto, o direito de imagem tende a ganhar notória importância. A imagem de uma pessoa, seja ela física ou jurídica, nos dias atuais é sinônimo de dinheiro e poder. O rosto de uma pessoa que segue os padrões impostos de beleza associada ao nome de uma empresa ou ao seu produto tende a render grandes lucros com o aumento de vendas. O mesmo ocorre como a imagem do “politicamente correto”, pois a imagem não é tão somente uma figura ou caractere, sendo também um comportamento bom ou ruim, ético ou não. Neste sentido, assevera o professor Hermano Duval: “Direito à imagem é a projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação, etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior”[5].

A proteção da imagem, elemento indissolúvel da personalidade, merece ser tutelada nas diversas situações existenciais, de forma integrada. A contínua evolução dos meios de comunicação desafiam novas formas de exploração do direito de imagem, por vezes agredindo a privacidade e a honra do indivíduo. As lesões da era pós-moderna são lesões de massa e a velocidade com que a informação é transmitida é cada vez maior. Lembrando o termo da rede mundial de computadores, podemos dizer que vivemos todos em “teia” e os efeitos das ações locais são sentidos rapidamente em diversos outros pontos, espalhando-se pelos caminhos da teia global, sem que a distância represente um obstáculo considerável.

O filósofo escreveu que:

“claramente se compreende a razão de ser o homem um animal sociável em grau mais elevado que as abelhas e todos os outros animais que vivem reunidos. O que distingue o homem de um modo específico é que ele sabe discernir o bem e o mal, o justo do injusto, e assim todos os sentimentos da mesma ordem cuja comunicação constitui precisamente a família do Estado”[6].

Entretanto, se adicionarmos àquela fantástica capacidade de propagação de idéias e imagens a ganância e a estupidez humana, tão corriqueiras nos tempos modernos, teremos como resultado infinitas possibilidades de lesões e agressões aos direitos da personalidade. Daí a necessidade de proteção pela ordem jurídica.

A imagem, portanto, é um direito da personalidade que deve ser tratado com muito cuidado, eis que as pressões do mundo moderno são inúmeras. Sua exploração deve ser feita com observância dos preceitos legais e éticos, a fim de se evitar constrangimentos e dissabores. A voracidade do Capitalismo deve ser contida, sob pena que inferiorização do próprio ser humano. O Direito tem um papel importantíssimo no controle e correção de situações que ensejem injustiças.

Fontes constitucionais e infraconstitucionais do direito de imagem

Antes de refletir sobre os artigos que positivam o direito de imagem, impende analisar sua natureza dentro do direito constitucional e na história do direito. Pois bem, sem delongas, podemos afirmar que se trata de um direito fundamental de primeira geração, mas o que isso significa?

Com as revoluções burguesas do século XVIII tivemos a consolidação do modo de produção capitalista e a formação do Estado Moderno como elemento chave na nova estruturação de poder. O conceito de cidadão veio a lume e, com ele, certos direitos e garantias comuns a todos os homens, independente de sua classe social. Esta é a idéia dos direitos de primeira geração, qual seja, direitos fundamentais, inerentes à natureza humana, que exigiam do Estado uma prestação negativa, vale dizer, um não agir do Estado, pois assim procedendo, os direitos estariam melhor protegidos. É neste contexto que surgem os direitos da personalidade. O homem passa a ser sujeito de direitos, capaz de assumir obrigações, cujo descumprimento não mais poderia ser resolvido senão através da máquina do Poder Judiciário.

O decorrer do tempo logo demonstrou que a abstenção do Estado não era de todo salutar, eis que o quadro de desigualdade social se tornou agudo, fazendo surgir a denominada “questão social”. Para corrigir, ou melhor, diminuir as desigualdades, passou o Estado a agir de maneira mais enfática no quadro social, fazendo surgir os direitos de segunda geração, ou direitos sociais, conhecidos por prestações positivas do Estado.

Mais recentemente surgiram novos direitos que exigiram do Estado uma nova postura e um novo agir. São os direitos de solidariedade, difusos e coletivos, próprios de uma sociedade de massa como esta que vivemos hoje em dia.

Na ainda breve história do constitucionalismo brasileiro, o direito de imagem somente foi tratado, de modo expresso, na atual constituição. E não poderia ser diferente em um país no qual a televisão somente se popularizou no final da segunda metade do século 20. Somente a partir daí é que a imagem passou a ter garantias efetivas e regramento expresso através do direito positivo. Na Constituição da República Federativa Brasileira de 1946, a imagem era protegida através da intimidade e reforçada com a inclusão da inviolabilidade dos direitos concernentes à vida. Mas a proteção ainda vinha de forma implícita e não expressa. E, a Constituição de 1967, mantinha a proteção nas mesmas linhas. Quanto às demais constituições, antes de 1946, somente por uma interpretação completamente extensiva é que se poderia conceber a proteção ao direito de imagem.

Assim dispõe nossa Carta Magna:

“Art. 5° . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantido-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no pais a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

V – é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem;

X – São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurando o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;

XXVIII – São assegurados, nos termos da lei:

a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz humanas, inclusive nas atividades esportivas.

Representa verdadeiro avanço social a constitucionalização do direito de imagem, cabendo aos aplicadores do direito dar a máxima efetividade à norma constitucional.

Na esteira da Constituição Federal, segue o atual Código Civil, de modo a regular, na medida do possível, as relações jurídicas referentes à imagem. Consta no citado code:

Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.

O direito de imagem está ligado de forma umbilical à moral e aos bons costumes. Também a privacidade é elemento essencial para dar parâmetros à exploração da imagem. A autorização é ato personalíssimo e necessário para este desiderato. A utilização de imagem alheia sem a devida autorização dá ensejo à indenização por dano material ou moral. Tais direitos, relativos à reprodução da imagem e à autorização para sua utilização por terceiros, podem ser exercidos pela própria pessoa, como ainda por seus familiares, mesmo após a morte da pessoa.

A Constituição assegura o direito de resposta, proporcional ao agravo. O direito de imagem é protegido pela possibilidade de indenização em decorrência de dano material ou moral. A honra, a vida privada e a imagem das pessoas são protegidas pela lei maior. Trata-se da regulação das relações privadas, sem que isso represente a sua publicização.

O Princípio da Dignidade da pessoa humana

O princípio da dignidade da pessoa humana se afigura como um super princípio, tendo em vista que o Direito deve existir em função do homem e não o contrário. Apesar de não nos filiarmos a idéia de que há hierarquia entre os princípios, é saliente observar que este guarda uma importância especial, de modo que não podemos deixar de notar sua peculiaridade. Tal princípio deve ser entendido dentro da máxima Kantiana que o homem deve ser um fim em si mesmo e nunca como um meio[7].

Existem três concepções do referido princípio: individualista, transpersonalista e personalista. A primeira delas nasceu com o Estado Liberal burguês, preconizando a superioridade do indivíduo frente ao Estado. Trata-se de uma concepção segundo a qual se cada homem cuidasse dos seus interesses diretamente, a satisfação da coletividade estaria garantida indiretamente. Para isso, o Estado deveria garantir a liberdade ampla aos indivíduos, ficando preconizadas as prestações negativas deste ente. Conseqüentemente, diante de um conflito entre o interesse particular e outro da coletividade, este último restaria prejudicado.

A segunda concepção, transpersonalista, nasceu como oposição a primeira e preconizava a satisfação da coletividade em primeiro lugar. Negava que a satisfação individual gerava a coletiva por via indireta. O bem coletivo deveria ser realizado como um todo e, somente assim, os interesses individuais estariam garantidos. Negava-se, portanto, a pessoa humana como valor supremo, fato que foi essencial para que se percebesse a importância dos direitos sociais, ou de segunda geração, caracterizados pela necessidade de prestações positivas do Estado.

A terceira concepção, personalista, surgiu como uma ponderação entre as duas primeiras, buscando a compatibilização entre os valores individuais e coletivos. Se por um lado a concepção individualista conduzia a desigualdades injustificáveis entre as pessoas, por outro lado a concepção transpersonalista se perdia em sua abstração e na desvalorização, as vezes exacerbada, dos indivíduos enquanto células sociais. Neste sentido, o personalismo busca apaziguar as duas correntes utilizando a ponderação entre elas. Portanto, no caso de um conflito entre um interesse particular e outro coletivo, deve ser considerado o caso concreto, perseguindo a compatibilização entre os mencionados valores.

Parece-nos que o princípio, ora objeto de estudo, deve ser compreendido de acordo com a concepção personalista. Não deve haver a supressão do interesse coletivo em face do particular, muito embora o contrário, igualmente, não deva acontecer. Surge, então, como solução possível e razoável, a análise do caso concreto e hamornização entre os valores através da ponderação, tendo em vista a dimensão de peso que cada um possui. Portanto, entendemos como Daniel Sarmento, para quem “Nenhuma ponderação pode implicar em amesquinhamento da dignidade da pessoa humana, uma vez que o homem não é apenas um dos interesses que a ordem constitucional protege, mas a matriz axiológica e o fim último desta ordem”.[8]

Entretanto, quando tentamos enfrentar o problema da definição deste princípio, nos perdemos em inúmeras divagações, muitas delas decorrentes da visão jusnaturalista. Caso indagássemos às pessoas acerca do significado deste princípio, obteríamos inúmeras respostas diferentes. Portanto, um dos maiores desafios é, justamente, buscar o que se quer dizer quando se fala em princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de termos um conceito vazio, um clichê.

Neste sentido, a mestra Ana Paula Barcellos se destacou e propôs a identificação um núcleo básico do princípio, no qual estariam as proposições mais elementares que o qualificariam e dariam substância ao seu teor e, além disso, contribuiria para aproximá-lo de uma regra, possível de ser exigida perante o Estado. Para tanto, fariam parte deste núcleo a educação fundamental, saúde básica, assistência aos desamparados e o acesso à justiça.

Segundo Maria Celina Bodin de Moraes,

“A transposição das normas diretivas do sistema de direito civil do texto do Código Civil para o da Constituição acarreta relevantíssimas conseqüências jurídicas que se delineiam a partir da alteração da tutela que era oferecida, pelo Código, ao “indivíduo” para a proteção, garantida pela Constituição, à dignidade da pessoa humana e por ela elevada à condição de fundamento da República Federativa do Brasil. O princípio constitucional visa garantir o respeito e a proteção da dignidade humana não só no sentido de assegurar um tratamento humano e não degradante, e nem tampouco conduz exclusivamente ao oferecimento de garantias à integridade física do ser humano. Dado o caráter normativo dos princípios constitucionais, princípios que contêm os valores ético-jurídicos fornecidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação (rectius, transmutação) do direito civil, de um direito que deixou de encontrar nos valores individualistas codificados o seu fundamento axiológico”[9].

Como se vê, o super-princípio deve ser utilizado como forma de parâmetro para coibir abusos possivelmente perpetrados no mau uso do direito de imagem. Esta pode ser explorada de forma comercial e não há nenhum óbice quanto a isto, desde que sejam respeitados os parâmetros de ética e da honra do sujeito.

Dignidade significa ser honesto, apropriado aos preceitos morais e éticos, merecedor. Dela decorre o respeito próprio e alheio. Trata-se “do epicentro axiológico da ordem constitucional, irradiando efeitos sobre todo o ordenamento jurídico e balizando não apenas os atos estatais, mas também toda a miríade de relações privadas que se desenvolvem no seio da sociedade civil e do mercado”[10].

Basta ser humano para que se tenha dignidade? Ou será ela um atributo moral relativo ao justo e ao correto? Decorre ela do reconhecimento por boas ações prestadas ao semelhante? Ou será ela fruto do agir correto e da reprovação ou negação das más ações? Ela basta em si mesmo ou será algo que decorra do pensamento alheio sobre um indivíduo?

Certo é que a dignidade não é um fato isolado. Um sujeito só é digno, merecedor, se sua conduta está de acordo com o estabelecido no pacto social. Neste caso ele é reconhecido pelos demais membros deste corpo social como alguém passível do depósito de confiança, ou seja, merecedor.

Por esta linha de raciocínio, somente aqueles que fossem merecedores seriam reconhecidos como sujeitos de direito. Porém, e isto deve ficar bem claro, certos direitos, por inerentes à própria condição humana, devem ser respeitados independentemente do merecimento ou não. Um prisioneiro de guerra, um homicida confesso não merece tratamento digno? Embora tenha cometido crimes nefastos, nos parece que o estágio atual da civilização não comporta mais penalizações cruéis.

A dignidade existe de forma independente e é inerente ao ser humano, mesmo no caso de tratar de um ser anti-social. Nisto ela se aproxima da solidariedade, mas não se confunde, em absoluto. Solidariedade é compaixão, amor ao próximo; dignidade é respeito pela condição de semelhante, pela condição humana, pelo que o sujeito é em si mesmo.

Tal princípio, é claro, tem sua importância variando ao longo do tempo e espaço. É evidente que sua maior valorização se dá em um ambiente democrático e pluralista, no qual o ser humano seja valorizado. Regimes autoritários sequer o reconhecem, ou fazem vista grossa para ele.

No âmbito do Direito brasileiro, somente após a queda do regime totalitário é que se pode falar em princípio da dignidade humana. Na constituição de 1967 a dignidade humana aparecia como condicionante da valorização do trabalho. Somente no texto de 1988 é que se positivou, em nível constitucional, tal princípio.

Não obstante estar expresso no texto constitucional, de nada valerá se os juristas não adotarem uma postura que proporcione a devida eficácia e efetividade ao texto. De nada vale a constituição se ela não passar de uma folha de papel. É preciso que os valores se espalhem pela cultura jurídica através das universidades, locais onde se deveria estudar profundamente tal princípio, fato que infelizmente não ocorre.

A Relativização do direito de imagem

Se é certo que o direito de imagem é um dos direitos de personalidade que possibilitam a exploração pecuniária, integrando o patrimônio do indivíduo, também é certo que essa exploração não pode se dar de qualquer forma.

Baliza fundamental que se impõe como limite é aquela formada pelos preceitos éticos e morais existentes em determinada sociedade. Os bons costumes e a moral não podem ser violados, sob pena de ensejar a pretensão de indenização por parte daquele que se sentiu ofendido.

A sociedade globalizada caminha para o domínio da informação dia após dia. Temos nossas vidas monitoradas por câmeras em lugares que sequer podemos imaginar. Somos monitorados em lugares públicos e a tendência é que se acentue cada vez mais este tipo de controle. É a sociedade do genial autor George Orwell se tornando realidade diante de nossos olhos. Tal como em “1984”, não está longe de termos nossas vidas monitoradas e controladas. No mesmo sentido, a magnífica obra de Adous Huxley, “Brave new world”, no qual um dos personagens centrais, ao escolher entre a falta de privacidade e a morte, preferiu esta àquela. Precisamos ser otimistas para que este quadro não se iguale àquele imaginado pelos geniais escritores.

O brocardo jurídico ius et ars boni et aequi (o direito é a arte do justo e do belo) somente é válido diante da aplicação da razoabilidade no processo de elaboração e aplicação das leis. Para se estabelecer critérios, os mais objetivos possíveis, necessário é que se tenha a razoabilidade como norte.

A democratização no país e a popularização do estudo do Direito, bem como seu aprofundamento, vêm contribuindo para que as ciências jurídicas tenham o desenvolvimento que a sociedade moderna exige. O fenômeno da teoria crítica do direito, nascido na Europa ganhou repercussão e se alastrou por outros continentes além do europeu.

A postura positivista – normativista vem dando lugar à teoria pós-positivista, cujo elemento central é a valorização do ser humano e a redescoberta da importância dos princípios de direito. Neste sentido, novos valores são descobertos ou construídos, novas formas de interpretação vão sendo sedimentadas pelos tribunais e uma nova sociedade vai se amoldando.

O espaço público e o privado, antes bem definidos de forma rígida, tem sido alvo de constantes mudanças e reavaliação. O direito privado, antes espaço intangível pelo Estado, agora vem sendo visto com nova visão, tendo em vista também as relações coletivas e o todo social no qual estão inseridas tais relações.

Pode-se dizer que o indivíduo ganhou uma importância considerável após o advento destas teorias. O Direito está a serviço do homem e não o contrário. A imagem passou a ser um direito explorável financeiramente e isto gera efeitos diversos, seja no âmbito do indivíduo, que tende a ter sua privacidade mitigada, quanto no âmbito coletivo, pois a imagem é, também, uma manifestação cultural.

O Direito Civil vem sendo palco destas transformações, uma vez que, o outrora conhecido como código defensor da “propriedade, da família e dos ricos”, hoje em dia vem sendo conhecido por sua reformulação e interpretação à luz do Direito Constitucional. Agora o código esboça novas preocupações, no sentido de humanizar mais a sociedade a qual regula e tratar de maneira mais igual os jurisdicionados.

É por todos sabido que a realidade cultural e jurídica de uma sociedade não muda facilmente. Para tanto, é necessário a conjugação de esforços de tantos setores quanto forem possíveis. Importa saber que tais esforços vêm sendo aplicados e muitos novos talentos irão surgir para humanizar cada vez mais nosso Direito.

Sintetizando a idéia da constitucionalização do Direito civil, Leonardo Mattietto explica que

“a renovação do direito civil brasileiro tem no chamado `direito civil constitucional´ o seu mais firme ponto de apoio. O reconhecimento da incidência dos valores e princípios constitucionais no direito civil reflete não apenas uma tendência metodológica, mas a preocupação com a construção de uma ordem jurídica mais sensível aos problemas e desafios da sociedade contemporânea, entre os quais está o de dispor de um direito contratual que, além de estampar operações econômicas, seja primordialmente voltado à promoção da dignidade humana.”[11].

O processo de relativização consiste na interpretação das regras segundo os princípios jurídicos e, no caso de choque entre as regras que não puder ser solucionado pelos critérios clássicos da hierarquia, temporalidade e especificidade, se recorre os princípios e os postulados jurídicos, tais como a ponderação de interesses.

Ainda no caso de existir regra que regule uma dada situação, mas tal regra se revelar contrária ao ideal de justiça se aplicada ao caso concreto pelo método da subsunção, servem os princípios de direito para justificarem a não aplicação desta regra. Entretanto, esta solução não é pacífica, pois põe em risco um outro princípio/necessidade do Direito, que é a segurança jurídica. Portanto, ainda é tímida a doutrina neste ponto e poucos os que se aventuram por estes campos teóricos.

Relativizar, portanto, o direito civil, significa dar nova forma de interpretação de suas regras, agora não mais voltada para a defesa inconteste da propriedade e do contrato. Trata-se de humanizar o Direito, tendo em vista que este serve de instrumento ao combate das injustiças sociais. Para tanto, serve-se o operador jurídico dos princípios constitucionais.

O indivíduo tem direito à privacidade e a manter sua individualidade. A imagem deve ser reproduzida mediante autorização de seu detentor, sob pena de se por em risco a idoneidade moral do sujeito. Essa é a garantia mínima que o Direito pode estabelecer. A razoabilidade é necessária para que o dano em decorrência da má utilização do Direito de imagem não venha a ocorrer.

Tal como a propriedade, que não pode mais ser exercida de modo absoluto estando sujeita a uma função social, o direito de imagem também não pode ser considerado absoluto, devendo seu exercício observar critérios éticos e morais.

Possível violação do interesse público e a ação do ministério Público

Com a industrialização do país a população urbana cresceu de forma decisiva na segunda metade do século passado. Destarte, a vida passou a ser vivida no âmbito urbano, da cidade, e não mais no campo. Fato curioso neste estilo de vida é o anonimato da maioria e a criação de ícones que são imitados por todos.

A imagem ganhou nova roupagem com o advento da televisão e a rapidez do computador. A velocidade com que viaja a informação é cada vez maior e assustadora. A divulgação da imagem ganhou contornos de coisa instantânea, ao alcance de todo o mundo, sem que tal afirmação constitua nenhum exagero nos dias atuais.

Infelizmente, a mídia visual praticamente tomou o espaço do livro enquanto forma de entretenimento e informação. É muito mais confortável e até mesmo corriqueiro sentar-se diante da TV e comer sua porção individual de qualquer coisa. O prazer da leitura somente é sentido por uns poucos que insistem em ler e conversar, socializando e redescobrindo o novo nas palavras de um outro leitor.

Vivemos no mundo da imagem e da TV. Como disse o poeta, “a favela é a nova senzala, correntes da velha tribo. E a sala é nova cela, prisioneiros das grades do vídeo”[12]. Prisão esta na qual quase todos nós estamos presos.

Com a exceção de pouquíssimos programas, a maioria do conteúdo da televisão é de caráter nada informativo. Em alguns casos, chega-se mesmo à banalização da pessoa e ao seu aviltamento como ser humano.

Por outro lado, é notório que a população brasileira é caracterizada por profundas desigualdades sociais. Soma-se a isso um nível de escolaridade geral baixo, acrescenta-se um tempero denominado exploração televisiva e pronto: temos um prato cheio para um show de bizarrices que nada acrescentará em nossas vidas, porém nos proporcionará algumas risadas, as quais não seriam obtidas se refletíssemos que por trás de uma comédia há uma tragédia.

O direito de imagem tem a peculiaridade de ser disponível, vale dizer, seu titular pode dispor dele e usá-lo como o objetivo financeiro. No entanto, certas condições expõem sobremaneira o ser humano ao ridículo que merecem ser repreendidas pelo ordenamento jurídico. Mormente quando de um lado temos uma grande empresa e do outro lado temos um cidadão humilde.

Uma coisa é uma pessoa que freqüentou as melhores escolas, leu Shakespeare e viajou para outros países, dispor de sua imagem. É claro que ela não irá se expor a situações ridículas em rede nacional para conseguir algum dinheiro. Outra coisa, completamente diferente é um cidadão humilde, muito mal alfabetizado, ou outro com alguma deficiência física ou algo do gênero, ser exposto na mesma rede nacional para o deleite macabro de milhares de pessoas.

O que as duas pessoas têm em comum? Ambas são pessoas humanas e têm dignidade. Daniel Sarmento observa que “a dignidade não é reconhecida apenas às pessoas de determinada classe, nacionalidade ou etnia, mas a todo e qualquer indivíduo, pelo simples fato de pertencer à espécie humana”[13].  Disso ambas não podem dispor. Trata-se de um direito indisponível que visa à valorização do ser humano. Deste modo, a TV não deveria submeter a situações ridículas pessoas que, por absoluta carência, vêem nesta possibilidade a chance obter alguma vantagem.

Poder-se-ia objetar tal idéia com o argumento de que o direito de imagem é disponível e o seu titular pode fazer uso dele como bem entender. Porém, não nos parece ser o melhor atendimento, tendo em vista a premente necessidade de valorização do ser humano e, também, a aproximação, sempre que possível, do Direito à ética.

O interesse privado e o interesse público em questão fazem surgir a indagação: onde está a violação ao interesse público?

Entendemos que a TV deve ter um papel educativo fundamental na vida da população, pois é inegável que o livro é preterido por quase todos. A formação de cidadãos e a conseqüente cidadania não pode ser obtida através de programas “freak show”. Além disso, a especificidade da situação, qual seja, a necessidade financeira de um lado e a exploração por parte da TV, de outro lado, nos faz pensar que a atuação do Ministério Público se faz necessária para corrigir tais situações. Não nos parece razoável, nem justo, que grandes e poderosas empresas do ramo da TV explorem pessoas portadoras de deficiências físicas ou até mesmo exponham ao máximo a privacidade das pessoas.

A nova ordem constitucional, no seu artigo 127 assevera que “o Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos direitos sociais e individuais indisponíveis”.

ortanto, dentro desta nova feição institucional, deixou o Ministério Público de ser órgão do Poder Executivo, defensor dos interesses stricto sensu do Estado para defender a sociedade e guardar o interesse público de modo geral. Sua legitimidade decorre da Constituição e da Lei Complementar 75, como se vê.

Dispõe o artigo 129 da CRFB: São funções institucionais do Ministério Público:

II- zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia;

III- promover o inquérito civil e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos;”

No mesmo sentido dispõem os artigos 1º e 2º da Lei Complementar 75 de 1993:

“Art. 1º O Ministério Público da União, organizado por esta Lei Complementar, é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático, dos interesses sociais e dos interesses individuais indisponíveis.

Art. 2º Incumbem ao Ministério Público as medidas necessárias para garantir o respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados pela Constituição Federal.”

O regime democrático somente se perfaz com cidadãos conscientes se seu espaço e função na nação. O cidadão alienado é o cidadão perfeito para qualquer outro regime, menos o democrático. A participação no processo decisório é deveras importante, pois democracia é o governo da maioria do povo, e quando esta maioria do povo não se manifesta, temos algo que se aproxima da tirania.

Com isso, não se está aqui querendo que a televisão somente ofereça óperas ou programas relacionados à história mundial ou do nosso país. Os extremos sempre pecam pelo exagero de seu posicionamento. Longe de nós querermos uma sociedade de filósofos e intelectuais mas, conforme salienta o inigualável mestre Paulo Dourado de Gusmão,

“quando a irracionalidade predomina, quando as opiniões e o saber não resultam de profunda reflexão, de meditação, de leitura e releitura dos clássicos e das obras fundamentais, mas de mensagens da TV e do rádio, ou de jornais; quando o homem se torna manipulável pelos meios de comunicação de massa, detidos pelo Estado ou pelas grandes empresas privadas; quando todo o seu passado é uma ou duas décadas posto à prova, a Filosofia é, mais do que nunca, indispensável, principalmente na sociedade de consumo em que o homem é meio, e não fim, manipulado pela mídia”[14].

Cumpre esclarecer que o objetivo é proporcionar maior qualidade e inteligência à programação televisiva, tendo em vista que a TV, nos dias atuais é um espaço público.

Como as regras que regulam tais situações são poucas e não muito diretas, deve o membro do Parquet se utilizar, mormente, do princípio da dignidade humana em sua pretensão perante o Poder Judiciário. Nestes casos, a proteção conferida pela Constituição e o Código Civil, devem ser alegadas embasadas no princípio citado.

As lesões perpetradas pelas redes de televisão às pessoas que se expõem ao ridículo transcendem do nível individual ao nível dos direitos coletivos lato sensu, desafiando a ação do órgão ministerial. A qualidade da programação televisiva é, hoje em dia, um verdadeiro interesse difuso, passível de ser protegido por meio das ações coletivas, estas ao nível judicial, ou por termos de ajustamento de conduta, no âmbito infra-judicial.

Neste sentido, louvável a ação civil pública do Ministério Público Federal que foi proposta para forçar as emissoras a exibirem programas adequados ao horário e a classificação etária permitida[15]. No caso, apesar de não se discutir a respeito do direito de imagem, tal como foi proposto no presente artigo, vislumbrou-se o início da discussão a respeito do espaço público que representa a TV, o que por si só já representou um grande avanço.

Aprofundando e tornando mais específica a discussão, agora em perfeita sintonia com o que aqui se defende, foi a ação civil pública de número 2002.38.00.040996-6, ajuizada perante a 5 Vara da Seção Judiciária de Minas Gerais, também proposta pelo louvável Ministério Público Federal. Ambas as ações foram propostas pelo procurador Fernando de Almeida Martins.

Nesta última ação, o ilustre procurador da república, dentre outros pedidos, requereu:

“seja julgado procedente o pedido, condenando-se a concessionária-ré na obrigação de não mais transmitir, no curso dos programas “Canal Aberto” e “Repórter Cidadão”, quaisquer cenas de violência, em especial com armas de fogo, cenas com sangue, assassinatos, estupros, troca de tiros, crimes passionais, exploração de sexualidade, de dramas familiares, aberrações físicas, em aviltamento da dignidade da pessoa humana, e, fudamentalmente, toda e qualquer exploração de crianças e de adolescentes, sob pena de ser imposta multa cominatória, no valor de R$ 500.000,00 (quinhentos mil reais), por cena exibida contrariamente à decisão de que se cuida (considerando-se o notório poder econômico da suplicada e evitando-se, assim, a inocuidade da medida), a qual se reverterá ao Fundo de que trata a Lei n. 7.347”[16].

Ao Poder Judiciário cabe a sensibilidade para receber tal tipo de demanda e dar a ela o tratamento que merece, de acordo com os mais nobres ideais de justiça e proteção dos hipossuficientes e no resguardo do interesse público violado. O Judiciário não pode permitir que a pessoa seja reduzida “a nada” em espaço público, ainda que esta pessoa forneça autorização para tal. Deve fazer cessar, tão logo seja provocado, a exploração vilipendiadora do ser humano pelas emissoras de TV, aplicando multas de valor considerável, capazes de coibir prontamente a exibição desses programas.

Conclusão

O direito de imagem é um dos direitos da personalidade que possuem características bem peculiares. Trata-se de um direito disponível e possível de ser explorado pecuniariamente por seu titular.

A imagem tem um potencial econômico formidável em tempos de Capitalismo e Globalização. O mundo rendeu-se à TV e ao computador. As pessoas são cada vez mais dependentes destes aparelhos domésticos. A difusão das imagens é em tempo real. A associação entre uma imagem e um produto é corriqueira nos dias atuais.

A Constituição da República Federativa Brasileira, bem como o Código Civil, protegem a imagem e a honra das pessoas, garantindo-lhes a reparação pelo dano material ou moral que porventura surja em decorrência da má utilização da imagem alheia.

No âmbito da constitucionalização do direito civil, devemos utilizar os princípios constitucionais em conjunto com as regras do code, tendo em vista sempre o ideal de humanização do direito e a busca pela correção das injustiças no meio social.

A dignidade da pessoa humana foi inserida na Constituição, logo em seu artigo primeiro, como um princípio fundamental. Trata-se de garantir a valorização do ser humano como um fim em si mesmo, e não como um meio, como tenta fazer a sociedade de consumo. A dignidade é um bem inestimável, impossível de ser valorado, pois é um atributo personalístico, que se traduz nos seus postulados de liberdade, igualdade substancial, solidariedade e integridade psicofísica .

As empresas de televisão insistem em manter uma programação baseada em bizarrices anti-educativas, oferecendo ao público programas de teor cultural pífio, além de ofender a moral, os bons costumes e a própria honra daqueles que se expõe de tal maneira.

A exploração do direito de imagem deve ser feita tendo como parâmetro o princípio da dignidade da pessoa humana. A exibição irrestrita de imagens aviltantes e a exposição da pessoa ao ridículo em espaço público não pode ser tolerada pelo Poder Judiciário.

Quando não observado o parâmetro da razoabilidade e houver ofensa à dignidade alheia, nasce o direito a fazer cessar este tipo de programação que nada estimula a prática cidadã. A dignidade da pessoa humana é indisponível e quando a exploração do direito disponível de imagem colide com o princípio da dignidade humana, este sim deve prevalecer diante daquele.

O Ministério público, tendo em vista a lesão em potencial aos interesses difusos e coletivos da sociedade, pode fazer uso dos instrumentos processuais e administrativos para coibir a ofensa à dignidade das pessoas que se sujeitam ao poder das grandes empresas televisivas, sem que lhe restem outra alternativa. Este tipo de lesão, por se tratar de um interesse difuso, encontra melhor remédio na ação do parquet.

 

Referências
ARISTÓTELES, A política, Rio de Janeiro: Edições de ouro, 1978
BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade, 4ª Ed., São Paulo: Saraiva, 2000
CAVALIERI FILHO, Sergio, Programa de Responsabilidade Civil, Rio de Janeiro: Malheiros, 1999
DURVAL, Hermano, Direito à imagem, São Paulo: Saraiva, 1988
GUSMÃO, Paulo Dourado de, “Filosofia do Direito”, Rio de Janeiro: Forense, 2001
HOBSBAWN, Eric. A crise atual das ideologias. O mundo depois da queda, Rio de Janeiro: Paz e terra, 1995
MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos, in Problemas de Direito Civil – Constitucional, TEPEDINO, Gustavo (coord.), Rio : Renovar, 2000
PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2000
REALE, Miguel, Lições preliminares de direito, 24.ed., São Paulo: Saraiva, 1998
SARMENTO, Daniel, A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Ed. Lumen Juris, 2003
VENOSA, Silvio de Salvo, Direito Civil: parte geral, 3.ed., São Paulo: Atlas, 2003
Notas
[1] PEREIRA, Caio Mário da Silva, Instituições de Direito Civil, Rio de Janeiro: Forense, 2000, p.142.
[2] BITTAR, Carlos Alberto. Os Direitos da Personalidade, 4 ed., São Paulo: Saraiva, 2000, p.93.
[3] CAVALIERI FILHO, Sergio, Programa de Responsabilidade Civil, 6 ed., Rio de Janeiro: Malheiros, 2005, p.126.
[4] HOBSBAWN, Eric. A crise atual das ideologias. O mundo depois da queda, Rio de Janeiro: Paz e terra, 1995, p. 214.
[5] DURVAL, Hermano, Direito à imagem, São Paulo: Saraiva, 1988. p.105
[6] ARISTÓTELES, A política, Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1978, pp. 18-19.
[7] SARMENTO, Daniel, A ponderação de interesses na Constituição Federal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p.59.
[8] Daniel Sarmento, op. cit., p.76.
[9] Disponível em http://www.puc-rio.br/sobrepuc/depto/direito/revista/online/rev15_mcelina.html
[10] Daniel Sarmento, op. cit., p.60.
[11] MATTIETTO, Leonardo. O Direito Civil Constitucional e a Nova Teoria dos Contratos, in Problemas de Direito Civil – Constitucional, TEPEDINO, Gustavo (coord.), Rio de Janeiro : Renovar, 2000, p.182
[12] Poema “Revanche”, de Lobão e Bernardo Vilhena.
[13] Daniel Sarmento, op. cit., p.60.
[14] GUSMÃO, Paulo Dourado de, “Filosofia do Direito”, Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.6.
[15] Ver http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/3camara/acp/ACP_%20FILMES.htm
[16] Disponível em http://www.pgr.mpf.gov.br/pgr/3camara/acp/ACP_REDE_TV.htm

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Felipe Silva da Conceição

 

Advogado. Formado pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO

 


 

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