A função social da propriedade rural e o acesso à terra como respeito à dignidade da pessoa humana

Resumo: O MST, objeto de análise do presente artigo, realiza ocupações em terras públicas que não cumprem sua função social, e em prédios privados, com fito de pressionar o Poder Público à realização da tão almejada reforma agrária. Assim, trata o presente de lançar discussão acerca da função social da propriedade, constitucionalmente garantida, principalmente em razão de esta ser uma das críticas que sofre o Movimento.


Palavras-chave: Função social – Propriedade –  relativismo – Constituição Federal.


Sumário: I – Introdução; II – a distribuição da terra em sua origem e a reforma agrária; 1. As sesmarias, as capitanias hereditárias, o início do latifúndio e da família sem-terra; 2. Aquisição do domínio da terra por meio da posse.; 3. A questão da Reforma Agrária; III – O MST e o acesso à terra como dignidade da pessoa humana; IV – da função social da propriedade rural; V – Considerações finais; Referências bibliográficas 


I – Introdução.


A distribuição da terra no Brasil está assente em um processo marcado pela exclusão, sendo distribuída a poucos e, inicialmente, sem qualquer limite territorial, o que gerou o início da formação dos latifúndios. Com o fim do tráfico negreiro, em 1850, e com a promulgação da Lei de Terras, neste mesmo ano, os ex-escravos e os imigrantes carentes, sem recursos financeiros, ficaram sem terra para trabalhar e viver, formando o embrião do que hoje se denomina “família sem-terra”. Assim, pode-se afirmar que chegamos ao século XXI sem resolver um problema iniciado no século XIX, pois até hoje observamos a má distribuição da terra e o grande problema social que isto acarreta.


A luta pela terra é antiga. Atualmente, muitos movimentos sociais (trabalhadores rurais, indígenas, quilombolas) lutam pela acesso e permanência na terra. Utilizarei-me do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST) como unidade de análise neste Ensaio.


O respeito à dignidade da pessoa humana acarreta direitos vários, como direito à vida, à ter resguardada a sua integridade física entre outros. Envolve também dever do Estado em cumprir com certos programas e providências para assegurar o mínimo de existência digna para o cidadão, como direito ao trabalho, à moradia, à alimentação, à saúde, à educação, ao transporte etc. O direito à terra é um direito inserto nesta categoria de respeito à dignidade da pessoa.


A reforma agrária é uma das formas de se reorganizar a estrutura fundiária. O artigo 184, da Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, determina que a União desapropriará, por interesse público, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não cumpra sua função social. Assim, importante analisar a função social em si, posto que requisito essencial, no caso de seu descumprimento, para que o Estado desaproprie a terra para fins de reforma agrária.


Para tanto, utilizei-me de revisão de bibliografia autorizada, iniciando o presente trabalho com a importante questão que gira em torno da aquisição da propriedade no Brasil, com o instituto das sesmarias, com as quais a função social da propriedade já se fazia importante e necessária. Após, trato da questão da reforma agrária, para, enfim, analisar a função social em si e como ela é considerada atualmente pela Lei Maior no Brasil.


II – a distribuição da terra em sua origem e a reforma agrária


1. As sesmarias, as capitanias hereditárias, o início do latifúndio e da família sem-terra.


Entender o processo de desigualdade agrária existente no Brasil requer uma prévia análise da história de distribuição originária da terra. Desde seu descobrimento[1], em 1500, as terras brasileiras pertenciam à Ordem de Cristo, sendo o monarca o senhor e administrador perpétuo da Ordem. Entretanto, em 20 de novembro de 1530, foi dada a carta patente, primeiro documento das sesmarias no Brasil, para Martim Afonso de Souza, que para o Brasil se dirigiu na Expedição de 03 de dezembro daquele mesmo ano, portando três cartas régias, na qual a primeira autorizava-lhe a tomar posse das terras que descobrisse, além de o direito de organizar o governo e administração civil e militar; a segunda concedia-lhe o título de capitão-mor e de governador do Brasil e a terceira permitia- lhe conceder sesmarias das terras que encontrasse, desde que as aproveitassem.


A referida terceira carta régia estava assim escrita:


“Dom João, por graça de Deus, rei de Portugal e dos Algarves, d’aquém e d’além mar, em África senhor de Guiné, e da conquista, navegação, commercio da Ethiopia, Arábia, Pérsia e da Índia etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber que as terras Martim Affonso de Souza, do meu conselho, achar e descobrir na terra do Brasil, onde o envio por meu capitão-mor, que se possa aproveitar, por esta minha carta, lhe dou poder para que elle dito Martim Affonso de Souza, possa dar às pessoas que comsigo levar e às que na dita terra quizerem viver e povoar, aquella parte das ditas terras que bem lhe parecer, e segundo lhe o merecer por seus serviços e quallidades, e das terras que assim der será para elle e todos os seus descendentes, e das que assim der aas ditas pessoas lhes passará suas cartas, e que dentro de dous annos de data cada hum aproveite a sua e que se no dito tempo assim não fizer, as poderá dar para outras pessoas para que as aproveitem, com a dita condição; e nas ditas cartas que assim der irá transladada esta minha carta de poder para se saber a todo tempo como o fez por meu mandado e lhe será inteiramente guardada a quem a tiver, e, porque me apraz, lhe mandei passar esta minha carta por mim assignada e sellada com o meu sello pendente. Dada na villa do Crato da Ordem de Christo, a 20 de novembro. Francisco da Costa a fez, anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de 1530 annos. Rei” (Apud LIMA, Ruy Cirne. 1954, p. 32).  (grifo meu).


Como se observa, o então capitão-mor e Governador do Brasil, Martim Affonso de Souza tinha o direito de distribuir terra, em nome do Rei, a quem o mesmo entendesse. Em momento nenhum o documento referia-se em quantidade de terra que se deveria ater (que só teria atenção em 1753, sendo definido em 1795), mas impunha como condição de aquisição o aproveitamento da terra doada dentro do prazo de dois anos e caso assim não fosse a mesma deveria ser entregue a quem as aproveitasse.


Em 28 de fevereiro de 1532, Martim Affonso de Souza foi informado de que Dom João III tinha decidido dividir o litoral do Brasil, de Pernambuco até o Rio da Prata, para assim dar início às capitanias hereditárias. Deve-se ressaltar que o governo português dava mais importância ao comércio das Índias do que ao Brasil, fato que resultou na liberação de terra na quantidade que lhe pediam, além da concessão do título de capitão e da atribuição de poderes de jurisdição civil e criminal.


Com a introdução das capitanias, as sesmarias são reafirmadas entre as respectivas cartas, só que reformuladas, pois aos donatários eram concedidas as terras sem a possibilidade de as apropriarem, ainda que indiretamente, antes de oito anos (antes eram dois anos) de aproveitamento por aqueles as que primeiramente as receber. Quando a Corte portuguesa percebeu como as capitanias eram uma péssima forma de colonização, João III revogou os poderes de todos os capitães, restando somente o do capitão da Bahia, Tomé de Souza, passando este a ser o Governador Geral de todas as capitanias.


As Ordenações Filipinas, que regiam o instituto das sesmarias e determinavam que não se podia dar a uma só pessoa mais terra do que ela poderia aproveitar, foi reformulada pelo primeiro governador geral nomeado, em seu Regimento de 17 de dezembro de 1548, passando-se a garantir justamente o oposto. Tinha início o esboço do latifúndio, sendo concedidas largas terras para a construção de engenhos de açúcar e similares, justificadas pela necessidade alegada pelo beneficiário, que sempre afirmava ser homem de grandes posses[2]. Eram estes os futuros senhores de engenho e fazendas que iriam logo formar a aristocracia econômica da sociedade colonial. Por contingências do mercado mundial e da relação colonial prevaleceu o cultivo de um só produto: a monocultura da cana-de-açúcar, que se desenvolveu com base na exploração da mão-de-obra escrava trazida da África. Este foi o quadro que dominou a economia brasileira durante três séculos: a grande propriedade na mão dos amigos do rei, o regime escravocrata e a monocultura voltada à exportação.


A concessão das sesmarias, na maioria das vezes, restringia-se aos candidatos a latifúndios, sendo, pois, clara o espírito dominalista, no dizer de Lima (1954). A partir de 1695, passou-se a cobrar foro nas sesmarias, em razão da grandeza e bondade da terra (Lima: 1954:38), além do dízimo[3] já anteriormente cobrado. A nova cobrança foi alvo de muita discussão, mas foi mantida, gerando importantes conseqüências para o regime das sesmarias no Brasil, começando-se a se apartar do regime das Ordenações, dirigindo-se, em conseqüência, para uma legislação especial.


A influência dominalista inspirou as novas regras, passando as sesmarias a meras concessões administrativas sobre o domínio público, mas sempre com a condição de cultivo. Entretanto, a partir de 1753, a confirmação das concessões de sesmarias passou a depender de medição e demarcação judicial das terras. Já o Alvará de 05 de outubro de 1795, impedia a concessão a quem já tivesse se beneficiado anteriormente, sendo vedado também aos estrangeiros[4]. Este mesmo diploma legal passou a determinar os limites métricos[5] das sesmarias, determinando que as mesmas não poderiam ultrapassar três léguas, sendo que em algumas capitanias não poderia exceder uma légua, havendo ainda aquelas em que a extensão máxima atingia meia légua.


O Alvará de 03 de março de 1770 tornou o processo de obtenção de sesmarias bastante simples, mas importante ressaltar que as normas atinentes às sesmarias eram muito incongruentes, contraditórias, além de gerar um defeituoso mecanismo de repartição das terras. Os resultados advindos da confusa legislação acerca das sesmarias, instituto que teve seu fim com a Resolução de 17 de julho de 1822, foram trazidos à colação nas memórias de Gonçalves Chaves[6] (Apud Lima, 1954:42), na qual afirmava que a população do Brasil era infinitamente menor que sua extensão de terra, mas ainda assim encontrava-se quase toda repartida, restando pouco a distribuir. Afirmava, ainda, que os donos das terras cedidas, raras vezes permitiam que alguma família, diga-se de passagem, pobre, nelas se instalasse, e quando autorizavam, era de forma temporária. Desta forma, as famílias que ficavam sem-terra ficavam vagando à própria sorte, sem moradia e trabalho. Concluía Gonçalves que a agricultura brasileira estava em total atraso, até mesmo em comparação com civilizações menos avançadas da época.


Importante lembrar que a terra fora cedida inicialmente com a condição textual de que fosse aproveitada, mas acabara, conforme noticia as memórias acima, improdutivas. A condição de cultura da terra era tão importante que havia determinação de devolução da terra à Coroa caso o sesmeiro não a aproveitasse, mas, na prática, tornou-se letra morta. Além de não utilizada, as famílias pobres que necessitavam de terra para plantar e morar não tinham dinheiro para comprá-la e nem podiam se instalar nas terras daqueles que as possuíam, devendo ressaltar que estes não as compravam, pois recebiam por concessão. Algumas famílias, mais corajosas, acabavam se deslocando para se apossarem de regiões distantes nas quais os grandes proprietários não tinham interesse em requerer as sesmarias. Chega-se a conclusão, assim, que aqui se origina os denominados sem-terra.


Os negros tornaram-se livres e sem-terra. A mesma situação foi enfrentada pelos imigrantes europeus:


“O fim do cativeiro humano aconteceu quase 40 anos depois de ter sido instituído o cativeiro da terra. Assim, os escravos libertos que deixaram as fazendas migraram pelas estradas, por onde encontraram terras cercadas. Quando acampavam nas fazendas, os coronéis convocavam a polícia para expulsá-los. Igualmente, os camponeses europeus continuaram neste País, suas caminhadas em busca da terra. Migraram por e para diferentes regiões, lutando contra o latifúndio. Muitos de seus filhos e netos ainda continuam migrando. A maioria absoluta desses trabalhadores começou a formar uma categoria, que ficaria conhecida no final do século XX, como Sem-Terra”. (Fernandes, 2000:32)


2. Aquisição do domínio da terra por meio da posse.


As leis régias dispunham que as terras brasileiras deveriam ser adquiridas unicamente pela via da concessão de sesmarias, entretanto, com base nos costumes, havia também outra forma de aquisição, qual seja a posse das terras devolutas[7], desde que o possuidor a fizesse produtiva, sendo esta condição igual a imposta às sesmarias. Cumpre ressaltar que já havia precedente[8] no reino referente ao modo costumeiro de domínio da terra.


A posse de terras devolutas com o devido cultivo passou a ser tão comum que, no decorrer dos anos, perfilou em paralelo, e após em substituição[9], ao instituto das sesmarias. Lima (1954:48) assim trata da questão:


“Era a ocupação tomando o lugar das concessões do Poder Público, e era, igualmente, o triunfo do colono humilde, do rústico desamparado sobre o senhor de engenhos ou fazendas, o latifundiário sob o favor da metrópole.


A sesmaria é o latifúndio, inacessível ao lavrador sem recursos.


A posse é, pelo contrário, – ao menos nos seus primórdios – a pequena propriedade agrícola, criada pela necessidade, na ausência de providência administrativa sobre a sorte do colono livre e vitoriosamente firmada pela ocupação”.


Entretanto, após a extinção das sesmarias, as posses se imbuíram do espírito latifundiário daquelas, passando a abranger fazendas inteiras. Muitas vezes abarcavam extensões de terra maiores que quando por ocasião das sesmarias. Conforme Lima (1954:54), “a tendência para a grande propriedade já estava definitivamente arraigada na psicologia da nossa gente.”


Na verdade, até então, não havia uma distinção entre propriedade e posse, pois tal diferenciação não se fazia necessária. A produção à época baseava-se no regime escravocrata e o escravo era um ser destituído de personalidade e, por isso, apropriável, não tendo, pois, acesso à terra. Somente a partir da primeira lei anti-escravagista, Lei Euzébio de Queiroz, de 1850, que proibia o tráfico negreiro, é que os donos de terra começaram a sentir necessidade de definir propriedade, bem como delimitá-la nos termos das concessões de sesmarias e das ocupações existentes, pois com o advento da Revolução Industrial, a mão-de-obra escrava tendia a ser substituída pela assalariada.


O instituto da posse foi regulado pela Lei n.º 601, de 1850 e o seu Regulamento de 1854, trazendo a primeira os seguintes dizeres em sua ementa:


“Dispõe sobre as terras devolutas no Império e acerca das que são possuídas por título de sesmarias sem preenchimento das condições legais, bem como por simples título de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a título oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de estrangeiros, autorizado o governo a promover a colonização estrangeira na forma que declara”.


A referida norma, como se verifica, extinguiu a posse como forma de aquisição da terra, fazendo válida somente a compra e venda. Tal feita retirou do trabalhador rural pobre a possibilidade de acesso à mesma. Reforçou-se, assim, o poder dos latifundiários ao tornar ilegais as posses de pequenos produtores. Com a chamada Lei de Terras, as elites escravocratas fecharam a fronteira agrícola, estabelecendo que a posse de terras públicas somente seria permitida mediante pagamento de alta soma em dinheiro. A nova legislação impediu o acesso à terra dos brancos e mulatos pobres, dos negros e dos imigrantes europeus, que começavam a desembarcar no Brasil, após o fim do tráfico de escravos, visto que as oligarquias brasileiras precisavam de mão-de-obra barata, para substituir o braço escravo nas plantações de café do Sudeste.


O registro imobiliário passou a ser a prova da propriedade do imóvel, valendo também para dar publicidade a esta, sendo após válida como garantia em eventuais financiamentos pretendidos pelos donos da terra. Como diz Baldez (1997:107), “no processo das garantias hipotecárias, passava-se do negro escravo à terra escravizada”.


A classe dominante, que já detinha o acesso aos cartórios de registro oficiais, passou a deter extensões imensas de terras, até então ocupadas por ex-escravos e camponeses, constituindo-se um processo denominado “grilagem[10] oficializada”.


3. A questão da reforma agrária.


“Sem movimento, luta e tensão, será impossível fazer uma genuína transformação política”. Fernando Henrique Cardoso[11]


Bernardo Mançano Fernandes (2000:07) afirma ser de primeira necessidade distinguir a luta pela terra da luta pela reforma agrária: “primeiro, porque a luta pela terra sempre aconteceu, com ou sem projetos de reforma agrária. Segundo, porque a luta pela terra é feita pelos trabalhadores e na luta pela reforma agrária participam diferentes instituições”. Afirma, ainda, que a luta pela terra antecede à luta pela reforma agrária, mas ambas perfilam lado a lado, são interativas. “A luta pela reforma agrária contém a luta pela terra. A luta pela terra promove a luta pela reforma agrária”.


A história da luta pela terra se inicia, no Brasil, já com o alijamento do território indígena, com a chegada dos colonizadores. Segundo Baldez (1997:105), esta luta tem origem remota nos quilombos[12], pois, a luta dos negros significou não só o fim de um cruel sistema, mas também “a procura de um espaço de organização, produção e preservação da identidade sócio-cultural do negro”. Conforme o citado autor, na luta pela terra deve-se levar em conta, ainda, os combates pela reforma agrária e pela reforma urbana[13]. A reforma agrária sempre se mostrou gênero de primeira grandeza, mas somente tomou corpo como proposta a partir da década de 50 do século passado, com as Ligas Camponesas no Nordeste, que exerceram intensa atividade no período que se estendeu de 1955 até a queda de João Goulart em 1964, com o Golpe de Estado.


Com o advento da República, em 1889, um ano e meio após a libertação dos escravos, o poder político continuou nas mãos dos latifundiários. Desde as capitanias hereditárias até os latifúndios modernos, a estrutura fundiária vem sendo mantida pelos mais altos índices de concentração do mundo. Esse modelo insustentável sempre se impôs por meio do poder e da violência.


A revolução de 1930, que derrubou a oligarquia cafeeira, deu um grande impulso ao processo de industrialização, reconheceu direitos legais aos trabalhadores urbanos e atribuiu ao Estado o papel principal no processo econômico, mas não interveio na ordem agrária. Com o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, o Brasil redemocratizou-se e prosseguiu seu processo de transformação com industrialização e urbanização aceleradas, entretanto, dezenas de projetos de lei de reforma agrária foram apresentados ao Congresso Nacional. Nenhum foi aprovado.


No final dos anos 50 e início dos 60, os debates ampliaram-se com a participação popular. As chamadas reformas de base (agrária, fiscal, eleitoral, urbana, bancária e educacional) eram consideradas essenciais para o desenvolvimento econômico e social do país. Entre todas, foi a reforma agrária que polarizou as atenções. Em 1962, foi criada a Superintendência de Política Agrária – SUPRA, com a atribuição de executar a reforma agrária.


Em março de 1963, foi aprovado o Estatuto do Trabalhador Rural, regulando as relações de trabalho no campo, que até então estiveram à margem da legislação trabalhista. Um ano depois, em 13 de março de 1964, o Presidente da República, João Goulart, assinou decreto prevendo a desapropriação para fins de reforma agrária das terras localizadas numa faixa de dez quilômetros ao longo das rodovias, ferrovias e açudes construídos pela União. No dia 15, em mensagem ao Congresso Nacional, propôs uma série de providências consideradas “indispensáveis e inadiáveis para atender às velhas e justas aspirações da população”: a primeira delas, a reforma agrária. Não deu tempo. No dia 31 de março de 1964, caiu o Presidente da República e teve início o ciclo dos governos militares, que duraria 21 anos.


Logo após os militares assumirem o poder, um grupo de trabalho foi imediatamente designado, sob a coordenação do Ministro do Planejamento, para a elaboração de um projeto de lei de reforma agrária, resultando na Lei nº 4.504, que tratava do Estatuto da Terra. A Ditadura Militar acabou incorporando no referido Estatuto todos os anseios dos trabalhadores acerca da reforma agrária. Entretanto, conforme ressalta Baldez (2003:54), isto não se deu com vistas à sua concretização, mas, ao contrário, para “imobilizar e desorganizar a luta, transformando-se, ainda, num mero instrumento de remoção de eventuais conflitos no campo”. Apesar deste artifício, os conflitos não deixaram de existir e a repressão contra os trabalhadores aumentou.


Enfim, o Estatuto representou, na verdade, uma tentativa de esvaziamento da luta pela reforma agrária, pois não se tocou no latifúndio e colocar as mãos neste tipo de propriedade significava enfraquecer as bases políticas do clientelismo rural e das oligarquias políticas. Significava, fundamentalmente, modificar a estrutura do Estado brasileiro. Isso constituiria, de fato, uma revolução política e esta era algo intolerável para as oligarquias e para o establishment político, os militares, parte da burguesia urbana, setores da classe média e assim por diante.


O regime militar criou uma gama de incentivos e benefícios tributários, financiando o ingresso de capital no campo, fomentando, desta forma, a criação de grandes empresas rurais. Tal atitude governamental visava o mercado externo, propiciando, assim, uma produção agrícola para atender às exportações. A penetração capitalista no campo, a partir da década de 60, ocorreu através do “modelo prussiano”, que se caracteriza pela transição da grande propriedade improdutiva para a grande empresa capitalista e pela exclusão da maioria das pequenas e médias propriedades. Manteve-se, assim, a estrutura fundiária concentrada, exigindo-se qualidade e produtividade, tendo em vista o mercado externo e as demandas da indústria nacional, as quais passaram a determinar o perfil da agricultura brasileira. Neste processo de desenvolvimento, não foi previsto um espaço para a pequena e média propriedade, sendo ainda excluídas de crédito e de comercialização, engendrando o grande êxodo rural ocorrido nas décadas de 70 e 80, após a consolidação deste modelo.


O golpe militar significou um retrocesso para o País, visto que os projetos de desenvolvimento implantados pelos governos militares geraram o aumento da desigualdade social e da concentração de renda, levando, conseqüentemente, a maioria da população à miséria, além de intensificação da concentração fundiária. Tudo isso fez com que a população camponesa começasse a se movimentar, se organizar e resistir, sem se esquecer de outras manifestações camponesas que precederam às atuais e que lutavam pela terra[14].


No começo dos anos 60, nasceram as primeiras Comunidades Eclesiais de Base – CEB´s, tornando-se nacionais em meados dos anos 70. Com base nos ensinamentos da Teologia da Libertação, as comunidades tornaram-se espaços de socialização política, de libertação e organização popular. Em junho de 1975, durante o Encontro de Pastoral da Amazônia, convocado pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e realizado em Goiânia (GO), a Igreja Católica criou a Comissão Pastoral da Terra – CPT, sendo fundada em plena ditadura militar, como resposta à grave situação dos trabalhadores rurais, posseiros e peões, sobretudo na Amazônia. Baldez (2003) afirma que o apoio da Igreja, com a criação da CPT, na luta pela conquista da terra e reforma agrária foi essencial para os enfrentamentos e à consolidação de conquistas, bem como foi a articuladora de movimentos camponeses que insurgiram durante o regime militar.


O Governo Federal criou, naquela ocasião, conforme já mencionado, a Superintendência de Reforma Agrária (Supra), além do Instituto Brasileiro de Reforma Agrária (Ibra) e o Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário (Inda), criado em substituição à Supra. Em 4 de novembro de 1966, o Decreto nº 59.456 instituiu o primeiro Plano Nacional de Reforma Agrária, que não saiu do papel. Em 9 de julho de 1970, o Decreto nº 1.110 criou o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), resultado da fusão do Ibra com o Inda.


O Decreto nº 97.766, de 10 de outubro de 1985, instituiu novo Plano Nacional de Reforma Agrária, com a meta utópica de destinar 43 milhões de hectares para o assentamento de 1,4 milhão de famílias até 1989, criando-se para este fim o Ministério Extraordinário para o Desenvolvimento e a Reforma Agrária[15] (Mirad). Entretanto, após quatro anos os números alcançados eram muito mais modestos: 82.689 famílias assentadas em pouco menos de 4,5 milhões de hectares[16]. Em 1987, o Incra foi extinto, assim como o Mirad, em 1989, passando a responsabilidade pela reforma agrária para o Ministério da Agricultura. Em 29 de março de 1989, o Congresso Nacional recriou o Incra, mas a falta de respaldo político e por questões orçamentárias alegadas mantiveram a reforma agrária sem andamento.


Em 1985, o governo do Presidente José Sarney elaborou o Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), previsto no Estatuto da Terra, com meta extremamente ambiciosa: assentamento de um milhão e 400 mil famílias, ao longo de cinco anos. Entretanto, no final deste período apenas foram assentadas cerca de 90.000.


Durante o governo de Fernando Collor (1990-1992), o programa de assentamentos foi paralisado, cabendo registrar que, nesse período, não houve nenhuma desapropriação por interesse social para fins de reforma agrária. Começaram, neste período, as mais fortes repressões contra os sem-terra, que não se limitavam às ações da força policial, valendo-se também da intervenção do Poder Judiciário como uma nova cerca para impedir as ocupações. Deu-se início à criminalização das ações das famílias sem-terra. Criou-se, assim, a judicialização da luta pela terra e pela reforma agrária, resultando em prisões e massacres de camponeses sem-terra.


O governo de Itamar Franco (1992-1994) retomou os projetos de reforma agrária, sendo aprovado um programa emergencial para o assentamento de 80 mil famílias, no entanto somente 23 mil foram atendidas, com a implantação de 152 projetos, numa área de um milhão 229 mil hectares. No final de 1994, após 30 anos da promulgação do Estatuto da Terra, o total de famílias beneficiadas pelo governo Federal e pelos órgãos estaduais competentes, em projetos de reforma agrária e de colonização, foi da ordem de 300 mil, estimativa sujeita a correções, dada a diversidade de critérios e a falta de recenseamento no período 1964-1994.


Já o Governo de Fernando Henrique Cardoso[17] teve uma meta de assentamento de 280 mil famílias, em seu primeiro mandato. Os números do Incra mostram que em 1996, no ano em que aconteceu o massacre de Eldorado, foram assentadas 62 mil famílias. Em 1997, 82 mil e, no ano seguinte, 101 mil – um crescimento de 23% de um ano para o outro e de 63% em dois anos, reflexo do massacre. De acordo com Gilmar Mauro, membro da coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), em publicação do próprio MST, “Carajás foi um fato marcante, que acabou colocando a reforma agrária em debate nacional. A partir daí o tema começa a ganhar uma nova dimensão política”. (1996:5)


Em 1997, o Movimento aumentou a pressão sobre o governo de outra forma: passou a ocupar prédios públicos para pedir reforma agrária e liberação de créditos, entre outras reivindicações. Contudo, em 2001, mesmo ano em que agricultores invadiram a fazenda do então presidente Fernando Henrique Cardoso, em seu segundo mandato, em Buritis (MG), o governo reagiu editando a Medida Provisória 2183-56/2001, que proíbe a vistoria de fazendas ocupadas, impossibilitando, assim, sua desapropriação. A medida provisória foi incorporada pela Lei n.º 8.629, de 25/02/93.


Verifica-se que muitos agentes financeiros, sem nenhum vínculo com a produção agropecuária, incluem grandes extensões de terra em seu patrimônio, destacando-se, para esta situação, alguns fatores:


a) fonte de prestígio e poder – em muitas regiões do país, o controle da terra ainda significa controle de votos;


b) instabilidade econômica e processo inflacionário, que fazem da terra um investimento seguro, com valorização sempre superior à inflação;


c) regularização de ganhos de origem duvidosa, porque a legislação de impostos sobre a propriedade e a renda é flexível e benevolente no setor agrícola;


d) Imposto Territorial Rural quase simbólico;


e) sonegação do imposto de renda;


f) acesso a crédito subsidiado.


Iniciei o item da reforma agrária com uma citação do ex-Presidente da República, sr. Fernando Henrique Cardoso, para mostrar a contradição entre sua fala enquanto sociólogo e sua atuação enquanto dirigente maior da nação brasileira, à época. Fernando Henrique assumiu a Presidência do país em 1994. Em agosto de 1995, presenciamos o massacre dos trabalhadores rurais de Corumbiara[18], Rondônia, e no ano seguinte, em 17 de abril, não só o Brasil, mas o mundo, pois foi amplamente televisionado, ficou estarrecido com a violência institucional praticada contra crianças, mulheres e homens que lutavam legitimamente pela terra em Eldorado dos Carajás[19], no Estado do Pará.


No ano seguinte, em 29 de abril, o Governo Federal criou o Ministério Extraordinário de Política Fundiária, que imediatamente se incorporou o Incra, obviamente numa tentativa de melhorar sua imagem política. Entretanto, as medidas adotadas pelo governo, não necessariamente significaram ação efetiva no sentido da implementação da reforma agrária.


Em 14 de abril de 2002, criou-se, dentro do Incra, o Comitê de Acompanhamento e Solução de Conflitos, tendo por finalidades estabelecer políticas, acompanhar e solucionar os conflitos da área rural, além de discutir, articular e formular propostas para prevenção de conflitos[20].


No primeiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foram assentadas 381 mil famílias[21], resultado este menor do que o definido no Plano Nacional de Reforma Agrária (PNRA), que seria na ordem 400 mil. Para o segundo mandato, ainda não há números definidos.


III – O MST e o acesso à terra como dignidade da pessoa humana


Como já afirmado, o problema da má distribuição da terra, no Brasil, é contemporâneo ao período colonial, tendo sido agravado durante o período de ditadura militar, em razão do grave êxodo rural, fomentado pela política repressora adotada. O processo de urbanização ocorrido em meados do século XX e os atrativos dos centros urbanos, bem como o processo de mecanização da agricultura, levaram ao êxodo rural e à conseqüente favelização das grandes cidades. Aumentou, assim, a concentração fundiária e o pequeno agricultor, que não migrou, teve suas dificuldades ampliadas. É justamente no contexto ditatorial experimentado no país, que trabalhadores rurais decidem resistir ao sistema imposto. Assim, em 07 de outubro de 1979, agricultores sem-terra do Rio Grande do Sul ocuparam a gleba Macali, em Ronda Alta[22].


O MST, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra[23], surgiu oficialmente em 1984 durante o 1º Encontro dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, em Cascavel (PR), sendo, no ano seguinte, organizado nacionalmente, momento em que se realizou o 1º Congresso Nacional dos Sem Terra, realizado de 29 a 31 de janeiro de 1985, em Curitiba, Paraná, com 1500 delegados representando 23 estados brasileiros.


É um movimento social que luta não só pela reforma agrária, pelo direito ao acesso e permanência na terra, mas também por crédito, moradia, assistência técnica, escolas, atendimento à saúde e outras necessidades da família sem-terra que, assim como para todos os brasileiros, precisam ser supridas. Com a entrada de capital estrangeiro no campo e com a política de reforma agrária de mercado imposta pelo Banco Mundial aos países periféricos, o latifúndio ganhou uma nova roupagem, a do agronegócio. Enfim, descobriu-se que a luta não é apenas contra o latifúndio, mas também contra o modelo econômico neoliberal vigente nos dias atuais. A luta do MST é pela Reforma Agrária e pela transformação social. Neste sentido, constitui-se um movimento contra-hegemônico.


O MST, consciente de que a reforma agrária não se dará sem efetiva luta pela conquista e democratização da terra, criou o fenômeno das ocupações coletivas[24]. Trata-se, no dizer de Baldez (2003:30), de instrumento de correção da propriedade injusta. É através das ocupações que o MST consegue maior reflexo, ser visto, conforme o lema “incomodar para mudar” e por meio das quais os espaços de luta e resistência são materializados. Se as autoridades públicas agem de alguma forma no caminho da reforma agrária o fazem por pressão, em razão das atividades de luta dos movimentos sociais.


“A política de assentamentos do governo federal e de alguns governos estaduais é apenas uma resposta às ações dos sem-terra. Essa política não existiria sem as ocupações.


Os espaços de luta e resistência são materializados na ocupação da terra. A ocupação é condição da territorialização. A terra conquistada é uma fração do território, onde os sem-terra se organizam para promoverem um novo grupo de famílias que irá realizar uma nova ocupação, conquistando outra fração do território. Assim, a luta se renova e se amplia, territorializando-se. Dessa forma, os sem-terra migram por todo o território nacional, plantando as raízes da luta e minando a concentrada estrutura fundiária”. (Fernandes, 2000: 07)


A Constituição Federal Brasileira de 1988, reconhece, no Título I, denominado Dos Princípios Fundamentais, em seu artigo 1º, II a IV, a cidadania, a dignidade da pessoa humana e os valores sociais do trabalho como fundamentos do Estado Democrático De Direito. Dispõe, ainda, em seu artigo 3º, I, III e IV, que os objetivos da República são: construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, bem como promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. O artigo 5º de nossa Carta Magna dispõe sobre os direitos e deveres individuais e coletivos, e determina, em seu caput, que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade.


Segundo Antonio Inácio Andrio, a política de assentamentos deve ser efetivamente integrada com outros programas governamentais, com o objetivo de: a) distribuir a renda e combater a pobreza; b) gerar emprego e renda; c) estimular o mercado interno; d) democratizar o acesso à terra; e) estimular a soberania alimentar e a preservação ambiental.


Enfim, ter direto à terra, para trabalhar e viver, assim como demais necessidades, correlacionadas não só à questão agrária, mas também com o próprio ser humano, constitui direito imanente ao ser humano e integra o que compõe a dignidade da pessoa humana.


IV – Da Função Social Da Propriedade Rural


Cabe, neste momento, tecer alguns comentários, ao nível constitucional e legal, acerca da função social da propriedade[25], principalmente porque uma das críticas às ocupações realizadas pelo MST é afirmar que as mesmas recaem sobre propriedades produtivas e que cumprem sua função social.


O primeiro texto normativo a tratar da questão foi a Constituição de Weimar, de 1919, e entre nós somente surgiu com a Constituição de 1946, em seu artigo 147, no qual dispunha que


“o uso da propriedade será condicionado ao bem estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade com igual oportunidade para todos”.


Entretanto, observa-se, e como já mencionado anteriormente, a concessão das sesmarias, desde sua instituição em Portugal, com D. Fernando, em 1375, e seu prolongamento no Brasil, a partir de 1532, já previa e condicionava a permanência na terra ao aproveitamento da mesma.


O Estatuto da Terra (Lei 4.504, de 30/11/64), em seu artigo 2º, expressamente tratou da função social do imóvel rural.


Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.


§ 1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social quando, simultaneamente:


a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela labutam, assim como de suas famílias;


b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;


c) assegura a conservação dos recursos naturais;


d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de trabalho entre os que a possuem e a cultivem.”


A partir deste momento, a expressão “função social” foi incorporada nas Constituições brasileiras posteriores. Com a Constituição de 1967, a função social foi incluída na categoria de princípio da ordem econômica e social (art. 167) e, com a nossa atual Carta Magna, a mesma passou a integrar o rol dos direitos e garantias fundamentais, o que lhe atribuiu aplicabilidade imediata e outras vantagens inerentes ao seu status constitucional.


Quanto à propriedade, a Lei Maior vigente, em seu artigo 5º, XXIII, determinou que a mesma deverá cumprir sua função social (“a propriedade atenderá a sua função social”), sendo considerado, também princípio da ordem econômica (artigo 170, III).


A chamada Constituição cidadã, em seu artigo 184, condicionou a desapropriação de terras para fins de reforma agrária ao não cumprimento da sua função social. Entretanto, em seu artigo 185, determinou-se ser insuscetível de desapropriação a propriedade produtiva, cabendo ressaltar que segundo Baldez (1997), exclui-se do conceito de terra improdutiva aquela que, ainda assim sendo, estiver incluída em projetos elaborados tendentes à produção.


“Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.


§ 1º As benfeitorias úteis e necessárias serão indenizadas em dinheiro.


§ 2  O decreto que declarar o imóvel como de interesse social, para fins de reforma agrária, autoriza a União a propor a ação de desapropriação.


§ 3º Cabe à lei complementar estabelecer procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo judicial de desapropriação.


§ 4  O orçamento fixará anualmente o volume total de títulos da dívida agrária, assim como o montante de recursos para atender ao programa de reforma agrária no exercício.


§ 5  São isentas de impostos federais, estaduais e municipais as operações de transferência de imóveis desapropriados para fins de reforma agrária.”


“Art. 185. São insuscetíveis de desapropriação para fins de reforma agrária:


I – a pequena e média propriedade rural, assim definida em lei, desde que seu proprietário não possua outra;


II – a propriedade produtiva;


Parágrafo único. A lei garantirá tratamento especial à propriedade produtiva e fixará normas para o cumprimento dos requisitos relativos a sua função social”.


No capítulo atinente aos direitos sociais, a Constituição Federal de 1988 reconhece os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais e os equipara (artigo 7º)[26]. Vê-se que longe vai a distância entre a Constituição formal e aquilo que de fato ela realiza.


A Lei n. 10.406/2002, que intituiu o Novo Código Civil e entrou em vigor em janeiro de 2003, dispõe, no caput do seu artigo 1.228, que “o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha”. Assim dito, cumpre considerar que o direito de propriedade, aqui neste trabalho especificamente tratando do imóvel rural, não possui limites, tendo, ainda, como características o absolutismo[27], a exclusividade[28] e a perpetuidade[29].


Determina o parágrafo primeiro do dispositivo acima citado, in verbis:


“Art. 1.228. (…)


§ 1º – O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”


Tal norma demonstra que a visão tradicional, que promove as características do direito de propriedade, encontra-se relativizada pelo instituto da função social. Ele não é mais ilimitado e ainda não pode mais continuar a ser visto. A função social é um conceito antigo, mas que tem importância vital para a sociedade, e que por isso mesmo, pela sua importância, sempre se fez pouco valer.


O Novo Código Civil passou afirmar a supremacia do princípio da função social da propriedade em detrimento de convenções quaisquer. Verifica-se mesmo uma intervenção estatal no direito subjetivo do proprietário e do contratante, visto a preponderância do interesse social. É o princípio da heteronomia da vontade que se entende como limitador da autonomia da vontade. Assim, conforme Pontes de Miranda, o direito de propriedade não constitui direito fundamental[30], mas sim garantia institucional[31]. E mais. Comete ato ilícito, por força do artigo 187 do Novel Código Civil[32], quem não cumprir a função social da propriedade que detém.


Tepedino (2001:39) afirma que se deve a Leon Duguit a difusão do termo função social da propriedade[33], surgindo como antítese ao direito subjetivo à propriedade. A função social da propriedade se traduzia em uma tarefa, um dever imposto ao proprietário, e não mais um direito subjetivo do mesmo. Entretanto, o termo se flexibilizou, tendo um caráter reformulador do direito subjetivo do proprietário. Cumprir a função social da propriedade é não prejudicar os interesses da coletividade; é não ver atendido somente os interesses do seu titular.


O proprietário tem direito sobre a coisa e contra terceiros, mas também possui o dever de atender às necessidades sociais. A propriedade pode ser utilizada da forma que mais convier ao seu titular. Sem dúvida. Mas para manter seu título, deverá atender à sua função social, que caso não seja cumprida, além de não possuir qualquer garantia constitucional e não ter direito às ações possessórias, ainda assim poderá ser expropriado. Deste modo, não se quer dizer que o domínio deva atender exclusivamente ao interesse social nem retirar do direito subjetivo o atendimento às necessidades individuais de seu titular, mas sim se atribuiu ao direito subjetivo uma capacidade expansiva, no sentido de que atenda aos interesses do proprietário bem como aos dos que não são.


Enfim, a propriedade privada é plena, desde que atenda às expectativas de uma sociedade mais justa e inclusiva. E, neste sentido, pode-se afirmar que somente a propriedade rural que acolha a dignidade da pessoa humana e, em consequência, cumpra sua função social, é que estará amparada na Constituição e na legislação infraconstitucional.


O art. 186 da Constituição Federal de 1988 estabelece os requisitos essenciais, cumulativos e não taxativos[34], ao atendimento da função social da propriedade rural, quais sejam,o aproveitamento racional e adequado; utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores”.


Só a União Federal possui competência material para promover a desapropriação por descumprimento da função social do imóvel rural (caput do art. 184), bem como para legislar sobre os requisitos a serem atendidos (caput do art. 186). E conforme o artigo 2º da Lei 8.629, de 25/02/93, a atribuição para ingressar no imóvel rural, em nome da União, para fins de levantamento de dados, é realizada por intermédio de “órgão federal competente” (§2º do art. 2º), cabendo, pois, ao INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária. Nada indica, porém, que essa atribuição de controle tenha sido atribuída com exclusividade à União, motivo pelo qual se afigura válida a possibilidade de delegação a Estados-membros, Distrito Federal ou a municípios[35].


A Constituição, no caput do art. 186, previu que esses requisitos fossem fixados por lei, de modo a atender às peculiaridades da região onde se situa cada imóvel rural. E essa tarefa foi confiada à Lei 8.629/93, atualmente alterada pela MP 1.577, de 11/06/97, e reedições (atualmente, MP 2.183-56, de 24/08/2001). Corroborando com os requisitos constitucionais de atendimento à função social, previstos no art. 186, o art. 9º da Lei acima citada estabelece, in verbis:


Art. 9º A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo graus e critérios estabelecidos nesta Lei, os seguintes requisitos:


I – aproveitamento racional e adequado;


II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;


III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;


IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.


§ 1º Considera-se racional e adequado o aproveitamento que atinja os graus de utilização da terra e de eficiência na exploração especificados nos §§ 1º a 7º do art. 6º desta Lei.


§ 2º Considera-se adequada a utilização dos recursos naturais disponíveis quando a exploração se faz respeitando a vocação natural da terra, de modo a manter o potencial produtivo da propriedade.


§ 3º Considera-se preservação do meio ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.


§ 4º A observância das disposições que regulam as relações de trabalho implica tanto o respeito às leis trabalhistas e aos contratos coletivos de trabalho, como às disposições que disciplinam os contratos de arrendamento e parceria rurais.


§ 5º A exploração que favorece o bem-estar dos proprietários e trabalhadores rurais é a que objetiva o atendimento das necessidades básicas dos que trabalham a terra, observa as normas de segurança do trabalho e não provoca conflitos e tensões sociais no imóvel.”


Já o artigo 6º do mesmo diploma legal dispõe sobre o que seja uma propriedade produtiva:


Art. 6º Considera-se propriedade produtiva aquela que, explorada econômica e racionalmente, atinge, simultaneamente, graus de utilização da terra e de eficiência na exploração, segundo índices fixados pelo órgão federal competente.


§ 1º O grau de utilização da terra, para efeito do caput deste artigo, deverá ser igual ou superior a 80% (oitenta por cento), calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel.


§ 2º O grau de eficiência na exploração da terra deverá ser igual ou superior a 100% (cem por cento), e será obtido de acordo com a seguinte sistemática:


I – para os produtos vegetais, divide-se a quantidade colhida de cada produto pelos respectivos índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;


II – para a exploração pecuária, divide-se o número total de Unidades Animais (UA) do rebanho, pelo índice de lotação estabelecido pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea;


III – a soma dos resultados obtidos na forma dos incisos I e II deste artigo, dividida pela área efetivamente utilizada e multiplicada por 100 (cem), determina o grau de eficiência na exploração.


§ 3º Considera-se efetivamente utilizadas:


I – as áreas plantadas com produtos vegetais;


II – as áreas de pastagens nativas e plantadas, observado o índice de lotação por zona de pecuária, fixado pelo Poder Executivo;


III – as áreas de exploração extrativa vegetal ou florestal, observados os índices de rendimento estabelecidos pelo órgão competente do Poder Executivo, para cada Microrregião Homogênea, e a legislação ambiental;


IV – as áreas de exploração de florestas nativas, de acordo com plano de exploração e nas condições estabelecidas pelo órgão federal competente;


V – as áreas sob processos técnicos de formação ou recuperação de pastagens ou de culturas permanentes.


§ 4º No caso de consórcio ou intercalação de culturas, considera-se efetivamente utilizada a área total do consórcio ou intercalação.


§ 5º No caso de mais de um cultivo no ano, com um ou mais produtos, no mesmo espaço, considera-se efetivamente utilizada a maior área usada no ano considerado.


§ 6º Para os produtos que não tenham índices de rendimentos fixados, adotar-se-á a área utilizada com esses produtos, com resultado do cálculo previsto no inciso I do § 2º deste artigo.


§ 7º Não perderá a qualificação de propriedade produtiva o imóvel que, por razões de força maior, caso fortuito ou de renovação de pastagens tecnicamente conduzida, devidamente comprovados pelo órgão competente, deixar de apresentar, no ano respectivo, os graus de eficiência na exploração, exigidos para a espécie.


§ 8º São garantidos os incentivos fiscais referentes ao Imposto Territorial Rural relacionados com os graus de utilização e de eficiência na exploração, conforme o disposto no art. 49 da Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964.”


A função social da propriedade rural não se confunde com seu aproveitamento econômico, sendo este apenas um dos requisitos, desde que associada à promoção de valores existenciais, consagrados pela Lei Maior. Neste sentido, Tepedino (2001:42) salienta que


“A mera produtividade econômica não resguarda a propriedade, se não restarem atendidos os valores extra-patrimoniais que compõem a tábua axiológica da Constituição. O latifúndio utilizado para fins especulativos, ainda que produtor de alguma riqueza, estará descumprindo sua função social, por desrespeitar as situações jurídicas existenciais e sociais nas quais se insere. Não merecerá, por conseguinte, a tutela jurídica, devendo ser desapropriado, em caráter prioritário, para fins de reforma agrária”.


Entretanto, interessante notar que da mesma forma que a Constituição garante a desapropriação para fins de reforma agrária de terra que não cumpre sua função social (art. 184), contradiz-se em seguida para impedir que a mesma seja desapropriada caso seja produtiva (art. 185). O legislador tentou restringir a possibilidade de desapropriação ao conceito de produção da terra, limitando a potencialidade da expressão função social, conforme aqui exposto.


Como já afirmado, cumprir a função social da propriedade é garantir seu título de justificação. Se o parâmetro surgiu para legitimar a propriedade privada, sua ausência, isto é, se a propriedade não a cumpre, não a atende, também deve legitimar a retirada da proteção jurídica dominical. Neste sentido, o proprietário de terras que, apesar de produzir, não está em dia com suas obrigações fiscais, deixa, por conseguinte, de cumprir com a função social, pois a produção, por si só considerada, tem relação direta com o lucro do produtor e somente indireta com a alimentação do povo, constituindo, pois, uma função social indireta.


Foi nesta linha de pensamento que a 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, ao decidir o agravo de instrumento (n.º 598.360.402) interposto por José Cenci e outros contra a ordem de expedição de mandado de reintegração de posse (processo n.º 25782, oriundo da 2ª Vara Cível da Comarca de São Luiz Gonzaga) a favor da empresa Merlin S/A Indústria e Comércio de Óleos Vegetais, concluiu que a arrendatária da Fazenda Primavera, objeto da lide, não cumpria sua função social, contrapondo os interesses, de um lado, da empresa arrendatária, inadimplente de obrigações tributárias, em gerar riquezas e, de outro, o interesse de cerca de 600 famílias acampadas em constituir moradia e trabalhar, para atingir o mínimo de dignidade social, que, conforme o próprio acórdão, foi lhes negado pelo Estado. É a atuação do Poder Judiciário no âmbito da legalidade cosmopolita[36].


Assim, as ocupações realizadas pelo MST são legítimas, pois buscam dar efetividade às normas constitucionais que visam equalizar a distribuição de terra, tendo em vista o não cumprimento da função social por parte de alguns proprietários, reiterando-se que não se pode restringir tal função ao mero aproveitamento econômico, pois se assim fosse estaríamos indo de encontro ao interesse público, amplamente defendido pela nossa Carta Magna.


Interessante analisar, entretanto, a redação do parágrafo 6º, inserido no artigo 2º da Lei n.º 8.629/93, por força da MP 2.183-56/2001, cabendo ressaltar que a edição desta medida provisória se deu em razão da ocupação pelo MST às terras de parente do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso:


Art.2º (…)


§ 6o O imóvel rural de domínio público ou particular objeto de esbulho possessório ou invasão motivada por conflito agrário ou fundiário de caráter coletivo não será vistoriado, avaliado ou desapropriado nos dois anos seguintes à sua desocupação, ou no dobro desse prazo, em caso de reincidência; e deverá ser apurada a responsabilidade civil e administrativa de quem concorra com qualquer ato omissivo ou comissivo que propicie o descumprimento dessas vedações.”


Como se pode observar, a Lei acaba por proibir, por dois anos, a vistoria para verificação de descumprimento da função social e a sua conseqüente desapropriação, por ter sido objeto de ocupação, que é, como já mencionado, um instrumento de pressão para forçar a realização da reforma agrária. Dentro deste raciocínio, este dispositivo legal acaba por validar a gleba que não cumpre sua função social e, que por isso foi ocupada. Acaba, por dois anos, permitindo que o proprietário continue não cumprindo a função social, o que vai de encontro à própria Constituição[37].


O indeferimento da ADIN deveu-se às razões conservadoras e de permanência no processo de criminalização em relação às ocupações coletivas, associando-as às infrações civis e penais de esbulho possessório. Entende-se, data venia, esta decisão contrária aos preceitos constitucionais por todas as razões já expostas, nas quais a Constituição visa atender aos interesses coletivos ao determinar a necessidade de que a propriedade cumpra sua função social. É ir além do individualismo. Aquele proprietário de terras que não dá à mesma garantia de sua função social, no sentido de que ela não tem que render somente para o seu titular, mas para toda a coletividade também, enquanto fim último e precípuo, igualmente não merece garantia de manutenção de seu título de propriedade, devendo, conforme determina a Constituição e nos termos da legislação infraconstitucional, a terra ser expropriada para fins de reforma agrária.


Neste sentido, impedir que a terra seja vistoriada, por dois anos, para a implementação da reforma agrária, colide com os fins da Constituição, nos moldes do que foi exposto, além de ser clara a intenção de desmobilizar o movimento social com seu instrumento de luta, que é a ocupação coletiva. É por meio dela que o MST, especificamente tratando, colocou a reforma agrária na agenda política do país e conseguiu a implementação de vários assentamentos ao longo destes anos de árdua caminhada.


No julgamento da ADIN-MC n.º 2.213, o Ministro Sepúlveda Pertence, em voto vencido, afirma que a norma em questão, que impede a vistoria em imóvel ocupado, acaba criando uma nova hipótese de imunidade à desapropriação. Acresce uma às duas já existentes e previstas no artigo 185, da Constituição Federal, já neste trabalho citadas. Assim, entende o E. Ministro que o § 6º, do artigo 2º, da Lei n.º 8.629/93, encontra-se mesmo eivado de vício por colidir com a norma do artigo 185, da Carta Magna, engendrando, como se fossem poucas, uma sanção social. Afirma em seu voto, que


“Por outro lado – o eminente Ministro Ilmar Galvão enfatizou com propriedade – trata-se, a meu ver, essa imunidade temporária, dobrada em caso de reicidência do esbulho possessório ou da invasão decorrente de conflitos agrários, segundo o § 6º, de uma estranha sanção: é uma sanção difusa, uma sanção de classe social. Não se sancionam os partícipes da invasão. Sancionam-se todos os excluídos da propriedade rural, que reivindicam o acesso à terra, mediante um prêmio ao proprietário, por menos que a sua propriedade seja produtiva, por mais distante esteja essa propriedade do cumprimento de sua função social, condição constitucional de sua proteção. Premia-se o proprietário com a imunidade e se pune difusamente a quem quer que possa ter a expectativa de expropriação desta propriedade morta, socialmente morta para fins de reforma agrária”.


O Min. Marco Aurélio, também vencido em seu voto pela inconstitucionalidade do dispositivo, faz salutar comparação, que merece aqui ser revista:


“Fiquei, aqui, a imaginar, quando o ministro Sepúlveda Pertence citou a problemática da greve, qual a proclamação do Supremo Tribuanl Federal se viesse à baila um dispositivo qualquer que revelasse a impossibilidade de a Justiça do Trabalho atuar normativamente nos dissídios coletivos de natureza econômica, na hipótese de greve. A situação é semelhante. Inviabiliza-se como ressaltei, no caso, o exame das circustâncias reinantes anteriores à invasão da propriedade e daquelas que resultaram dessa mesma invasão, tendo em vista esse prazo de dois anos, durante o qual se afastará a possibilidade de fazer-se a vistoria necessária à conclusão sobre se tratar ou não de propriedade improdutiva.”


É, neste sentido, inconstitucional, também, pois, se se realiza a ocupação em terra que não cumpre sua função social, para justamente chamar a atenção do poder público para a reforma agrária e exigir, em concreto, a desapropriação da terra para este objetivo, impedir que a mesma seja vistoriada e que seja implementada a reforma agrária nesta propriedade, por dois anos, é permitir que a mesma, por pelo menos dois anos, continue nos moldes individualista e sem atender à função social; trata-se de um período de imunidade, de isenção para o cumprimento da função social, que por este período dará as costas aos interesses coletivos e ao povo do Brasil.


V – Considerações Finais


Mesmo na época do Brasil colônia, já se tinha a noção de que a propriedade deveria atender à sua função social, ainda que não tivesse essa nomenclatura e ainda que se limitasse a um dos seus aspectos atuais: o aproveitamento do solo. Ainda assim, seu espírito já estava presente: se não vai a utilizar, outro irá. Entretanto, não passava de texto escrito, nada mais.


A terra sempre foi objeto de luta e palco de violência, mas a busca pela reforma afrária surgiu posteriormente e permanecemos há mais de 500 anos com uma estrutura fundiária desigual, excludente e intocável, mas os camponeses não se encontram, como nunca se encontraram, de braços cruzados. A opressão gera resistência e vários movimentos vieram e vem se mobilizando no decorrer destes séculos na luta pela dignidade humana, na luta não só pela terra, mas também por moradia, por educação, por saúde, por trabalho, por financiamento, pela soberania alimentar e nutricional, pela vida.


O princípio da dignidade da pessoa humana é sustentáculo da República brasileira, conforme já mencionado com a colação do dispositivo constitucional respectivo, e dele decorrem direitos fundamentais como educação, trabalho, moradia. A reforma agrária é apenas o primeiro passo para uma mais justa redistribuição de terra.


O MST utiliza-se das ocupações coletivas, que ocorrem em prédios públicos ou em imóveis rurais que não cumprem sua função social, como forma de garantir visibilidade à questão rural e pressão ao Poder Público para que realize a reforma agrária necessária. As ocupações já foram responsáveis por diversos assentamentos, tendo relação direta. Reprimir as ocupações significa diminuir o número de assentamentos. Não deveria ser assim. O Governo tem obrigação de realizar a reforma agrária, mas só faz sob pressão e o meio empregado é a ocupação de terras.


Assim, importa reiterar à exaustão que as terras que não cumprem a sua função social como acima tratado, não são titulares da proteção constitucional ou mesmo infraconstitucional, devendo, sim, ser desapropriada para fins de reforma agrária. O direito de propriedade privada, em terra que frustra, de qualquer modo, a sua função social, não deve prevalescer sobre o direito de milhares de família sem terra, sem eira nem beira, sem qualidade de vida, sem ter onde viver e como plantar e, portanto, sobreviver.


A Constituição Federal, assim como o Novo Código Civil de 2002, possuem uma visão de sociabilidade, deixando de lado o caráter individualista da propriedade, sendo necessário buscar-se o equilíbrio entre os interesses individuais e os da coletividade, garantindo primazia à dignidade da pessoa humana e todas as consequências e aportes que seu respeito impõe.


 


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Lei n.º 10.406, de 2002. – Código de Processo Civil Brasileiro

Lei n.º 10.469, de 25 de junho de 2002

Medida Provisória n.º 2.183-56, de 24 de agosto de 2001

Lei n.º 8.629, de 25/02/93

Lei complementar n.º 76, de 06/07/93

Lei n.º 8.629, De 25 De Fevereiro De 1993

Lei n.º 4.504, de 30/11/64 (Estatuto da terra)

Lei n.º 601, de 1850 (terras devolutas do Império).

Ações Judiciais

Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI/MC nº 2213 – DF.

Agravo de Instrumento n.º 598.360.402, julgado pela 19ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul.

 

Notas:

[1] Importante lembrar, somente como breve nota, que os indígenas que já viviam no Brasil, antes da chegada dos colonizadores portugueses, foram os primeiros sem-terra.

[2] Significava dizer que era homem com família, dinheiro, escravos e gado.

[3] Cabe ressaltar que o dízimo era devido em razão de as terras brasileiras pertencerem à Ordem eclesiástica, mas era cobrado pela Coroa.

[4] Os estrangeiros passaram a poder obter concessões de sesmarias com o advento do Decreto de 25 de novembro de 1809.

[5] Tem-se nota que tais limites eram, não raras vezes, desfalcados, visto as servidões de passagem, de aqueduto etc. e outros, a graças do soberano, passava da metragem máxima.

[6] Gonçalves Chaves era português radicado no Brasil e entregou seu trabalho aos deputados brasileiros, em 1822, nominado Memórias economopoliticas sobre administração pública do Brasil.

[7] Terras devolutas recebem este nome em razão de serem as mesmas devolvidas ao seu original doador no caso de seu não aproveitamento, que era o sentido empregado quando do regime das sesmarias. Mesmo após a extinção deste modelo de distribuição de terra, a acepção da expressão permaneceu como terra não aproveitada, acrescendo o sentido de ser terra pertencente ao poder público.

[8] É o caso do denominado direito de fogo morto, que constituía no direito que o colono tinha de, ao tratar a terra brava e inculta e torná-la produtiva, não ser expulso da mesma pelo seu proprietário (in, LIMA,1954:51).

[9] As sesmarias foram abolidas em 1822.

[10] Vale registrar que a grilagem é um processo de aquisição oficiosa de terra. O grilo recebeu este nome porque ricos possuidores forjavam o título de propriedade daquela terra indevidamente possuída e, para dar aparência mais verossímel à escritura falsa, colocavam-na em uma caixa com grilos, que, em pouco tempo, ganhava uma aparência amarelada e mais credível aos intentos do grileiro.

[11] CARDOSO, Fernando Henrique. Autoritarismo e democratização. Paz e Terra, 1975.

[12] Entretanto, impossível olvidar que antes mesmo dos quilombolas, sempre houve também a luta dos indígenas, expoliados de sua terra desde o ano de 1500, perdurando até os dias de hoje, com a expansão feroz do agronegócio.

[13] Sobre a reforma urbana, não se tratará neste Ensaio, por exceder seus limites.

[14] Para citar alguns movimentos antecendentes, podemos citar Canudos, Master, Ligas Camponesas etc.

[15] O Decreto nº 91.214, de 30.04.1985, cria o Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD). Por meio do Decreto de 30.04.1985, foi designado o Ministro de Estado Extraordinário para Assuntos Fundiários para responder pelas funções de Ministro de Estado do MIRAD. A Lei nº 7.319, de 11.06.1985, cria o cargo de Ministro de Estado da Reforma e do Desenvolvimento Agrário e extingue o cargo de Ministro de Estado Extraordinário para Assuntos Fundiários. O Decreto nº 95.074, de 21.10.1987, dispõe sobre a Estrutura Básica do Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD). A Lei nº 7.739, de 16.03.1989, torna extinto o referido Ministério, e transfere os assuntos pertinentes a reforma e desenvolvimento agrário para a competência do Ministério da Agricultura. Informação obtida no site do Planalto federal: www.planalto.gov.br em 24 de junho de 2004.

[16] Informação obtida no site do Incra: www.incra.gov.br em 20 de maio de 2004.

[17] Neste governo, foram implementados o Projeto Novo Mundo Rural, responsável pela reforma agrária e pela reestruturação fundiária, e o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar – Pronaf, executados no âmbito do Ministério do Desenvolvimento Agrário. O balanço desses instrumentos para o meio rural brasileiro tem caráter compensatório e pontual para seus beneficiários, confirmando-se como iniciativas impotentes para romper uma trajetória de empobrecimento e precariedade social no campo, sem ter realizado mudanças na concentrada estrutura agrária brasileira.  

[18] Naquele ano, 500 famílias tinham ocupado uma fazenda no município de Corumbiara e, por ordem da Justiça, 300 policiais realizaram o despejo das famílias de forma violenta, resultando a morte de 10 sem-terra e dezenas de feridos e desaparecidos.

[19] Nesta feita, centenas de famílias sem-terra caminhavam por uma rodovia em direção à cidade de Belém, quando foram surpreendidas pela ação policial. Resistiram e foram massacradas. A ação violenta da Polícia Militar causou 19 mortes e dezenas de feridos. A caminhada tinha como objetivo pressionar o governo para que as famílias fossem assentadas. O MST denominou o dia 17 de abril como o Dia Internacional da Luta Camponesa.

[20] Finalidades extraídas do site www.incra.gov.br em 20 de maio de 2007.

[21] Em nota oficial do Ministério de Desenvolvimento Agrário, o Governo afirma ter implementado ainda cinco elementos complementares: a qualificação dos assentamentos, como construção de estradas e pontes; o acesso ao conhecimento, como acesso à educação; o acesso à luz elétrica; crescimento do crédito de apoio e instalação em 2006; e qualidade na gestão do Incra com novas superintendências e contratação de 40% a mais de servidores na autarquia.

[22] As terras da Macali eram remanescentes das lutas pela terra da década de sessenta, quando o MASTER organizara os acampamentos na região. Simultaneamente, surgiam ocupações de trabalhadores rurais nos demais estados do Sul, Mato Grosso e em São Paulo Em 1980, no Estado de Santa Catarina, 300 famílias conquistam a Fazenda Burro – Branco e em São Paulo, na região de Andradina, 400 famílias ocupam a Fazenda Primavera; em 1981 no Rio Grande do Sul 700 famílias acampam em Encruzilhada Natalina, município de Ronda Alta.

[23] O MST não é o primeiro nem o último movimento à lutar pela terra. Como já dito, a luta pela terra tem sua marca nos quilombolas, podendo-se ainda indicar como antecedentes de luta a Liga Camponesa, Canudos e o Master (Movimento dos Agricultores Sem Terra).

[24] Baldez (2003) traz três características básicas acercadas ocupações coletivas. Afirma que tem como primeira característica tratar-se de ato necessariamente coletivo, no sentido de que os trabalhadores compreendem não fazerem diferença sozinhos, mas somente de forma coletiva; a segunda característica é a ruptura que provoca no contratualismo, essência do regime burguês da venda e compra; e a última característica é a quebra do conceito de propriedade privada, aqui em perfeita consonância com a conquista institucional da função social da propriedade, que pressupõe a função social da posse.

[25] Tepedino (in Renap, 2001:44) afirma que a função social também se aplica à posse, pois esta, “como exercício do direito de propriedade, justifica-se pelo desempenho de sua função social. Como expressão de atividade privada, exercida independentemente e em face do domínio alheio, justifica-se pela função social da livre iniciativa de seu titular, de acordo com os interesses de que é portador – habitação, trabalho, educação de seus filhos, formação da família -, que deverão estar comprometidos, indissociavelmente, com a tutela da dignidade da pessoa humana”. Tal posicionamento, entretanto, não é unânime, pois há doutrinadores que não reconhecem a obrigação de cumprimento da função social às posses, por falta de previsão constitucional e legal. Entendemos que esta negação não faz sentido, pois a posse cumpre forte papel na sociedade e neste sentido igualmente deve cumprir sua função social.

[26] Art. 7º, CF/88: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social.”

[27] Diz que o direito de propriedade é absoluto por poder, o seu titular, livre uso, fruição e disposição, sendo oponível erga omnes.

[28] É exclusivo o direito de propriedade, pois somente cabe ao proprietário, podendo excluir a turbação ou esbulho de outrem

[29] A perpetuidade está inscrita na possibilidade de extinção somente pela vontade de seu titular.

[30] Entende-se por direitos fundamentais aqueles incondicionados, típicos dos indivíduos e invioláveis pelo Estado, do que são exemplos os direitos à vida e à liberdade

[31] Leão (2007) define garantia institucional como sendo “o reconhecimento constitucional de determinadas instituições jurídicas como fundamentais para o desenvolvimento pacífico das relações jurídicas de uma dada sociedade, submetida a uma determinada Constituição, do que são exemplos os sindicatos, a família e, portanto, a propriedade”.

[32] Art. 187. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.

[33] Duguit afirmava que a propriedade não é direito do proprietário, é a sua função social (Renap, 2001:38).

[34] Segundo Tepedino (Renap, 2001), o rol de requisitos do art. 186 constitui expressão exemplificativa devendo observar o princípio da dignidade da pessoa humana.

[35] Encontra-se em vigor a MP 2.183-56/2001, cujo artigo 2º promove alteração na redação do art. 6º do Estatuto da Terra (Lei n.º 4.504/1964), com a exata finalidade de deferir ao INCRA competência para, mediante convênio, delegar aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios o cadastramento, as vistorias e avaliações de propriedades rurais situadas no seu território, bem como outras atribuições relativas à execução do Programa Nacional de Reforma Agrária, observados os parâmetros e critérios estabelecidos nas leis e nos atos normativos federais.

[36] Para maior conhecimento acerca da legalidade cosmopolita, ver Santos, 2003.

[37] Apesar de contrariar claramente a Constituição, na Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI/MC nº 2213 – DF, proposta pelo Partido dos Trabalhadores – PT e pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura – CONTAG, em que se questionava a validade, dentre outras, da norma suso transcrita, o Supremo Tribunal Federal se posicionou, em sua maioria, favoravelmente à sua constitucionalidade.  


Informações Sobre o Autor

Cristiane de Souza Reis

advogada, Mestre em Ciências Criminais pela Universidade Cândido Mendes (Rio de Janeiro/Brasil) e Doutora em “Direito, Justiça e Cidadania” pela Universidade de Coimbra (FEUC/FDUC- Portugal) . Foi professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Cândido Mendes e foi assessora da presidência da Junta Comercial do Estado do Rio de Janeiro. É, ainda, Membro do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto (IJI/FDUP)


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