Nova política criminal e controle do crime de tráfico ilícito de drogas

Resumo: Neste artigo, são analisadas algumas questões políticojurídicas relativas à nova descrição típica do crime de tráfico ilícito de drogas, positivada no art. 33, caput e em seu § 1º, incisos I a III, da Lei nº 11.343/2006. O estudo inicia com uma abordagem acerca do conceito jurídicopenal da expressão tráfico ilícito de drogas para, em seguida, examinar a opção, em termos de Política Criminal, pelo aumento da pena mínima, agora cominada ao tipo penal sob exame. O estudo prossegue com a análise dos tipos penais equiparados ao tráfico ilícito, tipificados nos três incisos do § 1º, do art. 33, da Lei Antidrogas e termina analisando a conveniência política da nova causa de redução de pena, aplicável ao traficante primário e de bons antecedentes.

Abstract: In this article, some political and legal matters related to the new description of the drug traffic crime are analyzed, inserted by the art. 33, caput, and in its first paragraph, items I to III, of the Law Number 11.343/2006. The study initiates with an aproach about penal law concept of the expression ilegal drug traffic, and after that, to examine the option, in terms of Criminal Politics, for the increase of the minimum penalty for five years of reclusion, now imposed to this crime under examination. The study continues with the analysis of the criminal types equalized to the illicit traffic, characterized at the three items of the first paragraph, in the art. 33, of antidrug Law and finishes analyzing the political convenience of reducing the penalty applicable to the primary dealer with a good record.

Sumário: 1. Introdução. 2. Nova Política Criminal para o Controle das Drogas? 3. Conceito Jurídicopenal de Tráfico Ilícito de Drogas. 4. Nova Descrição Legal para o Tipo Básico. 5. Aumento da Pena Mínima para o Crime de Tráfico. 6. Demais Formas Típicas Equiparadas ao Tráfico Ilícito de Drogas. 7. Causa de Redução de Pena. 8. Considerações Finais. Bibliografia.

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Palavras-Chave: Controle Penal. Crime de Tráfico. Drogas. Lei 11.343/2006. Política Criminal. Política Jurídica. Substância Entorpecente. Tóxicos. Tráfico.

1. Introdução

Em artigos anteriores, examinamos as normas da Lei 11.343/06 – aqui denominada de Lei Antidrogas – que tratam do crime de porte para uso pessoal de drogas e das infrações intermediárias ali positivadas. Estas últimas são aquelas condutas típicas situadas entre o simples porte (art. 28) e o crime maior de tráfico ilícito de drogas (art. 33, caput), da nova lei.

Houve mudanças na forma legal de estabelecer o controle das modalidades típicas mais graves. A primeira delas consistiu no aumento da pena mínima para o tipo básico de tráfico e, em conseqüência, para os que lhe são equiparados.

Em contrapartida, houve, também, abrandamento de situações típicas antes tratadas com a mesma sanção prevista para o tipo básico do crime de tráfico ilícito de substância entorpecente. Portanto, ao elaborar e aprovar a Lei Antidrogas, o legislador fez sua opção por uma política criminal que entendeu ser a mais adequada e necessária – no atual momento histórico – para o enfrentamento do problema relacionado ao uso e ao tráfico de drogas ilícitas, pelo poder estatal.

Fica claro que o legislador, navegando em águas revoltas pela polêmica doutrinária existente em torno do assunto, abrandou o sistema punitivo onde havia reclamos neste sentido, mas também adotou alternativas de maior severidade, em determinadas questões pontuais do novo controle penal sobre a matéria.

2. Nova Política Criminal para o Controle das Drogas?

A categoria denominada Política Criminal deve ser vista como um ramo da Política Jurídica. Esta, no entender de Osvaldo Ferreira de Melo, desempenha um importante papel corretivo epistemológico, ideológico e operacional em sua interrelação com o sistema jurídico vigente. Sua função essencial é a de “buscar o direito adequado a cada época, tendo como balizamento de suas proposições os padrões éticos vigentes e a história cultural do respectivo povo”.[1] Para o autor, Política e Direito são conceitos intimamente relacionados, devendo ser entendidos (apreendidos) sempre “num sentido ético-social, identificados, tanto quanto possível, com a idéia do justo, do correto, do legitimamente necessário (útil)”.[2]

Assim sendo, a Política Criminal, que tem por fim o estudo e a prática das ações mais adequadas ao controle da criminalidade, deve ser entendida como o conjunto de conhecimentos capazes de conduzir o legislador – no momento de gestação da norma penal – e o operador jurídico, no momento de sua aplicação e execução, a construir um sistema penal mais eficiente (útil) e legítimo (justo).

Não tem sido outro o conceito dos doutrinadores consultados quanto ao sentido políticojurídico da categoria Política Criminal. Assim, Heleno Cláudio Fragoso escreveu que a Política Criminal deve ser entendida como atividade que tem por fim determinar os “meios mais adequados para o controle da criminalidade, valendo-se dos resultados que proporciona a Criminologia”.[3] De modo mais objetivo, porém menos jurídicopenal e mais vinculado à Sociologia, Mireille Delmas-Marty entende a Política Criminal como sendo “o conjunto dos procedimentos através dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal”.[4]

Para Eugênio Raúl Zaffaroni e José Henrique Pierangelli, toda norma jurídica surge e é filha de uma decisão política. E definem a Política Criminal como a  ciência ou a arte de selecionar os bens (ou direitos) que devem ser tutelados jurídica e penalmente e escolher os caminhos para efetivar tal tutela, o que iniludivelmente implica a crítica dos valores e caminhos já eleitos” (grifo no original).[5] Em seu estudo de Criminologia, Günter Kaiser define a Política Criminal como sendo o conjunto sistematizado “das estratégias, táticas e instrumentos de controle social da delinqüência”.[6]

Em seu estudo monográfico sobre esta categoria políticojurídica, Fernando Galvão define Política Criminal como o “conjunto de princípios e recomendações que orientam as ações da justiça criminal, seja no momento da elaboração legislativa ou da aplicação e execução da disposição normativa”.[7]

Neste artigo e com base no conceito de Política Criminal acima exposto, examinaremos algumas questões jurídicas relacionadas ao crime de tráfico ilícito de drogas (art. 33 , caput) e aos três tipos penais que lhe são equiparados, descritos nos incisos I a III, do seu § 1º, da Lei Antidrogas.[8]

3. Conceito Jurídicopenal de Tráfico Ilícito de Drogas

Quanto ao conceito ou significado jurídicopenal de tráfico ilícito de drogas, a exemplo da lei anterior, também a atual Lei Antidrogas não indica expressamente qual a conduta (ou condutas) portadora deste nomen juris. Nem o art. 33, seus parágrafos e incisos, nem nenhum outro dispositivo incriminador são assinalados com a rubrica ou a denominação legal  de tráfico de drogas. Ainda na vigência da Lei Antidrogas anterior, acertadamente, Alberto Silva Franco já havia assinalado que “inexiste, no direito penal brasileiro, figura típica que atenda pelo nomen júris de tráfico ilícito de entorpecentes”. [9]

Portanto, a lei positiva não adotou um nomen juris para, de forma unívoca, designar o tipo penal em estudo. Cremos que isto se explica pela multiplicidade de verbos utilizados para demarcar as ações proibidas sob a ameaça de pena criminal. Na verdade, tratando-se de crime de ação múltipla, torna-se difícil reduzir a uma única denominação jurídicopenal o sentido e o espaço de proibição representado por esse tipo penal tão multiforme.

No entanto, a doutrina penal e a jurisprudência têm utilizado, de forma corrente e sem divergência, a expressão tráfico ilícito de drogas para denominar o crime anteriormente descrito no art. 12, caput, da Lei 6.368/76 e agora tipificado no art. 33, caput, da Lei Antidrogas. Embora a comercialização da droga não seja a marca absolutamente obrigatória da ação criminosa, cremos que o que carateriza o tráfico é a idéia de que a conduta incriminada – expressa por meio de qualquer um dos dezoito verbos da descrição típica – seja praticada com a vontade de que a droga seja transferida ou colocada na posse de terceiros para consumo.

Portanto, a finalidade da conduta típica deve estar relacionada à idéia de comercialização escusa ou fraudulenta da droga ou, ao menos, a uma certa forma de mercancia, mesmo que indireta, acessória ou preparatória de um futuro negócio ilícito de venda de drogas.

Assim sendo, em termos conceituais e de semântica jurídicopenal e seguindo a terminologia doutrinária corrente, podemos continuar denominando tráfico ilícito de drogas ao crime tipificado no art. 33, caput, da Lei Antidrogas.

Já as modalidades típicas previstas no seu § 1º, incisos I a III e que têm a mesma cominação penal, devem ser denominadas de crimes equiparados ou assemelhados ao tráfico ilícito de drogas, que constitui o típico básico. São, também, formas típicas de tráfico ilícito de drogas.

A Lei Antidrogas tipificou, ainda,  condutas que, por ultrapassarem o espaço normativo das infrações de médio e de menor potencial ofensivo, podem ser denominadas de infrações complementares ou vinculadas ao crime de tráfico ilícito de drogas. Estas estão previstas nos arts. 34, 35, 36 e 37, da Lei Antidrogas.

4. Nova Descrição Legal para o Tipo Básico

Com mudanças pontuais, na forma descritiva do tipo básico ou fundamental,[10] a nova lei manteve a incriminação do tráfico ilícito de drogas em seu art. 33, caput, com a seguinte dicção normativa:

“Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 50 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Verifica-se que a nova descrição típica é mais objetiva, em comparação com o texto do art. 12, da lei revogada. Na verdade, em termos de conteúdo semântico e jurídico, o texto anterior foi objeto apenas de um pequeno ajuste de redação e de sintaxe. No novo dispositivo, a expressão “ainda que gratuitamente” está descrita após a série de verbos. Isto significa que todas essas ações recebem a marca da tipicidade penal e devem ser consideradas crime de tráfico ilícito, mesmo quando praticadas sem o objetivo de lucro. O essencial é que o agente atue com a finalidade de transferir para outro a droga ilícita.

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Em termos de linguagem jurídica, portanto, a correção tornou o novo texto legal mais coerente com a regra da taxatividade em matéria penal.

Mesmo assim, continuam os dezoito verbos indicadores das ações capazes de realizar o tipo objetivo (desde o ato de importar, até o de fornecer drogas, ainda que gratuitamente).  Por isso, para a devida compreensão do sentido jurídicopenal de cada um dos inúmeros núcleos verbais (tipo objetivo ou forma objetiva de realização do tipo penal), que integram o texto do dispositivo penal em exame, remetemos o leitor à extensa bibliografia já publicada sobre a matéria.[11]

5. Aumento da Pena Mínima para o Crime de Tráfico

Além disso, coerente com a nova terminologia utilizada em todo o seu texto, a atual Lei Antidrogas abandonou a complicada expressão “substância entorpecente ou que determine dependência física ou psíquica”, adotada no texto revogado do referido art. 12, caput, da Lei 6.368/76. Já vimos que se trata de expressão que havia causado muita discussão a respeito de seu verdadeiro significado jurídicopenal, além de estar completamente superada nos discursos médicopsiquiátricos e dos organismos internacionais da ONU relacionados à saúde.[12]

Assim sendo, o novo texto legal refere-se apenas às drogas, como objeto material de uma das múltiplas ações configuradoras do tráfico ilícito. Neste ponto, é preciso reconhecer que o conteúdo normativo do novo art. 33, caput, ficou mais simples de ser interpretado, pois o conceito legal de drogas encontra-se positivado no art. 66, da própria Lei Antidrogas.

De maior significado penal, no entanto, foi o aumento da pena mínima de três para cinco anos de reclusão e da pena pecuniária (500 a 1.500 dias-multa), a serem aplicadas ao traficante, agente da forma básica do tipo penal em exame.

A nosso ver, o recrudescimento da repressão ao tráfico representa uma resposta do legislador ao sentimento de insegurança e de medo que impera nos grandes aglomerados urbanos de nosso país. Ninguém pode desconhecer a realidade urbana e delinqüencial brasileira. Zonas ou bairros periféricos, marginalizados ou favelizados de nossas grandes cidades, geralmente, são espaços urbanos tomados (ou de circulação controlada) por quadrilhas organizadas do tráfico ilícito de drogas.

O mais grave é que a criminalidade ali verificada não se restringe apenas e propriamente ao crime de tráfico. Este tem sua operacionalização intimamente associada – seja como causa ou conseqüência – à violência sempre crescente dos assassinatos e execuções, que são responsáveis por verdadeiros genocídios da marginalidade urbana. Estes, por sua vez, são componentes inevitáveis das violentas guerras urbanas travadas entre quadrilhas rivais pelo do comando da sinistra rede de distribuição das drogas.

É evidente que o verdadeiro consumidor da droga, geralmente, não habita esse espaço urbano degradado ou da exclusão social. Mas, é ali que o usuário de drogas, residente dos bairros “de bem estar social”, vai encontrar o produto proibido para suas viagens psicodélicas de devaneios e de delírios. É nesse espaço de exclusão social, portanto, que o tráfico opera e impõe a sua contracultura da marginalidade e da violência.

Isto, sem dúvida, assusta e gera insegurança coletiva. E explica, também e, em parte, a resposta da lei em favor do aumento da pena mínima, de três para cinco anos de reclusão, para o crime de tráfico ilícito de drogas. Aqui, a nova lei insiste na equivocada e ilusória crença de que a solução está na adoção de pena mais rigorosa.[13]

Cremos que o aumento da pena mínima representou, também, uma reação à tendência do judiciário de fixar a sanção punitiva em seu mínimo legal. Esta, aliás, tem sido uma reação reiterada em alguns momentos legislativos da construção do subsistema punitivo representado pela legislação dos crimes hediondos – LCH – da qual o crime de tráfico era um dos integrantes ou, como quer boa parte da doutrina, um crime assemelhado aos crimes hediondos.

Se houve aumento da pena mínima cominada, é preciso ressaltar que, em contrapartida, houve também abrandamento da repressão legal em relação ao condenado primário e de bons antecedentes. Em conseqüência, a Lei Antidrogas criou uma causa de redução de pena – de um sexto a dois terços (art. 33, § 4º) – para beneficiar o delinqüente do primeiro crime e distingui-lo do traficante reincidente e integrante de quadrilhas ou organizações criminosas. Assim sendo, a lei garante ao primário e de bons antecedentes um incentivo penal para abandonar a prática do tráfico.

Com a Lei Antidrogas, o crime de tráfico ganhou plena autonomia em relação às normas de maior rigor penal previstas LCH. A partir de agora, essas normas especiais e de maior rigor – no que diz respeito ao crime de tráfico e aos que lhe são equiparados – estão positivadas no texto da própria Lei Antidrogas. Em conseqüência, no tocante aos crimes relacionados às drogas, cremos não ser mais  possível recorrer àquela fonte tão polêmica, que é a Lei 8.072/90.

É preciso ressaltar que, com o aumento da pena mínima, algumas questões ficaram superadas. Agora, aplicada a pena mínima de cinco anos de reclusão, não haverá mais discussão sobre o cabimento do sursis ou a substituição por uma pena restritiva de direitos.  No entanto, não há proibição expressa de se conceder o sursis ao condenado por tráfico e que tenha sido beneficiado com a referida causa de redução de pena. Já a  conversão da pena detentiva por restritiva de direitos, há proibição expressa, prevista no próprio dispositivo legal positivador da minorante (art. 33, § 4º).

Quanto à pena pecuniária, o aumento de seus patamares mínimo e máximo foi ainda significativamente maior. Neste caso, a atual Lei de Drogas parece refletir a tendência da nova Política Criminal, comprometida com a idéia de se buscar alternativas à prisão, sendo uma delas a crença na maior eficácia de medidas patrimonializadoras do sistema punitivo.

6. Demais Formas Típicas Equiparadas ao Tráfico Ilícito de Drogas

A mesma pena prevista para o autor do crime tráfico ilícito de drogas, descrito no caput do art. 33, é também cominada para sancionar as formas típicas descritas no § 1º e seus incisos. Assim, incorre também na pena de reclusão de cinco a quinze anos, quem:

I – importa, exporta, remete, produz, fabrica, adquire, vende, expõe à venda, oferece, fornece, tem em depósito, transporta, traz consigo ou guarda, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, matéria-prima, insumo ou produto químico destinado à preparação de drogas;

II – semeia, cultiva ou faz colheita, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, de plantas que se constituam em matéria-prima para preparação de drogas;

III – utiliza local ou bem de qualquer natureza de que tem a propriedade, posse, administração, guarda ou vigilância, ou consente que outrem dele se utilize, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, para o tráfico ilícito de drogas.

Portanto, tais condutas típicas devem ser consideradas como equiparadas ao crime de tráfico de drogas e assim podem ser juridicamente denominadas.

Cabe ressaltar que a atual Lei de Drogas não alterou apenas a redação dos incisos que se encontravam distribuídos em dois parágrafos da lei antiga, mas também o conteúdo do direito repressivo ali positivado. Agora, num só parágrafo e três incisos, foram descritas as modalidades típicas equiparadas ao tipo penal básico.

Na vigência da lei anterior, eram cinco os tipos penais equiparados ao crime de tráfico, agora reduzidos aos três acima transcritos. Isto significa que, uma forma típica antes equiparada ao tipo básico, com a nova lei, recebeu tratamento legal distinto e bem mais brando: induzimento ou auxílio ao uso indevido de droga (art. 33, § 2º). Para esta modalidade típica, a pena, antes cominada entre o mínimo de três e o máximo de quinze anos de reclusão, é agora de detenção de um a três anos e a pena pecuniária de cem a trezentos dias-multa.

Indiscutivelmente, houve um significativo abrandamento do controle penal em relação a uma conduta que, na vigência da lei anterior, era punida com a mesma carga punitiva cominada ao crime de tráfico ilícito de drogas. Já não se trata mais de um tipo penal equiparado ao crime de trafico, mas de um crime que, embora relacionado às drogas, ganhou uma indiscutível autonomia normativa.

Tratando-se de norma repressiva mais favorável ao infrator, sua eficácia retroativa deve ser reconhecida para beneficiar todos os acusados que estejam respondendo a processo criminal ou os condenados que, ainda, estejam cumprindo pena, desde que o crime tenha sido cometido durante a vigência da Lei 6.368/76.

Outra forma típica, antes também equiparada ao crime de tráfico – contribuição ou incentivo para o uso de droga – não foi objeto de incriminação expressa pela nova lei. Na verdade, a conduta de “contribuir de qualquer forma para incentivar ou difundir o uso indevido ou o tráfico ilícito de substância entorpecente”, até então incriminada no § 2º, inciso III, da Lei 6.368/76, dependendo do caso concreto, agora, pode ser enquadrada na moldura típica do crime de tráfico ilícito ou no crime, bem menos grave, de induzimento ou  auxílio ao uso indevido de drogas.

Afinal, no tocante ao concurso de pessoas, nosso Código Penal adotou a teoria monista (art. 29, caput), para a qual quem contribui, de qualquer modo, para a realização do crime, incide nas penas a ele cominadas.

7. Causa de Redução de Pena (art. 33, § 4º)

A atual Lei Antidrogas trouxe uma importante inovação, que certamente irá contribuir para o abrandamento  do controle penal em relação ao condenado do primeiro tráfico e que apresente um perfil criminológico de menor potencial ofensivo em relação ao bem jurídico protegido, que é a saúde pública. Trata-se da causa de redução de pena, de um sexto a dois terços, criada para beneficiar  o condenado primário, de bons antecedentes e que “não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa” (art. 33, § 4º).

Parece-nos que o objetivo maior da minorante em exame é o de permitir ao juiz um instrumento mais racional e mais justo, em termos de aplicação e de individualização da pena, para enfrentar essa camisa de força imposta pela adoção da teoria monista, adotada por nosso Código Penal, em termos de concurso de pessoas. Como o tráfico, geralmente, é praticado por quadrilhas ou, ao menos, em concurso de pessoas, nem sempre é juridicamente justo ou razoável tratar o traficante primário –  quando for o caso de um simples passador ou distribuidor da droga, é claro – com a mesma carga punitiva a ser aplicada aos principais agentes do crime.

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Além de primário e dos bons antecedentes, o condenado deve demonstrar que, descontando sua atuação no tráfico, não se dedica às atividades criminosas e nem pertence a uma organização criminosa. Neste último caso, organização criminosa somente pode ser aquela a que se refere – embora sem defini-la – a Lei 9.034/95. Cremos que a minorante foi criada para beneficiar o traficante primário e de bons antecedentes que,  isoladamente, na ponta da cadeia criminosa, faz seu trabalho à margem (ou, ao menos, sem contato direto) dos principais integrantes da quadrilha ou organização e que são os verdadeiros responsáveis pelo sinistro negócio do tráfico de drogas.

No entanto, cabe ressaltar que a norma em exame proíbe expressamente que a pena privativa de liberdade aplicada – embora possa ser objeto de  redução – seja convertida em restritiva de direitos. Verifica-se, portanto, que a opção por um controle penal mais brando para o traficante do primeiro crime não o livrou do efetivo cumprimento da pena reclusiva.

A Lei Antidrogas, no entanto, não proíbe a aplicação do regime inicial aberto. Por isso, no caso de a pena aplicada ser reduzida para quatro anos ou menos de reclusão, o regime inicial aberto é perfeitamente cabível, pois se há merecimento penal para a redução da reprimenda haverá, necessariamente, merecimento também para a concessão do regime prisional mais benéfico; se a pena reclusiva for fixada acima de quatro até oito anos, o regime prisional inicial deve ser o semiaberto.

Também não há proibição expressa de concessão do sursis. Assim, se o condenado primário e de bons antecedentes tiver sua pena reclusiva reduzida para dois anos ou menos, a nosso ver é cabível o benefício da suspensão condicional da penal.

8. Considerações Finais

No tocante ao crime de tráfico ilícito de drogas, a nova Lei Antidrogas trouxe algumas inovações em termos de controle penal desta preocupante conduta. Operou, também, alguns ajustes em termos de linguagem descritos dos tipos penais acima examinados.

Em termos de Política Criminal, as inovações mais significativas consistiram no aumento da pena mínima, de três para cinco anos de reclusão, na previsão de uma causa de redução de pena para o traficante do primeiro crime e de bons antecedentes e, ainda, na redução, de seis para três, das hipóteses típicas equiparadas ao tráfico. Se, no primeiro caso, a lei nova optou por uma resposta penal mais severa, nas duas últimas prevaleceu a opção política por um controle penal de maior flexibilidade e de abrandamento do sistema.

Se o legislador acertou na correção da legislação anterior e adotou regras de convivência mais adequadas para o enfrentamento da problemática relacionada ao uso e tráfico de drogas, só o tempo e a práxis poderão dar a resposta.

De qualquer modo, vale a lição de Osvaldo Ferreira de Melo ao afirmar que a Política Jurídica tem por  tarefa propor as necessárias correções na legislação vigente ou de descobrir as regras de convivência exigidas pelos chamados novos direitos, pois o Direito a ser produzido, com vistas à legalidade do futuro, deve “buscar renovar-se nas legítimas fontes das utopias.” [14]

 

Bibliografia
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ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 132.  
Notas:
[1] MELO, Osvaldo Ferreira de Melo. Temas Atuais de Política do Direito. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor-CPCJ/UNIVALI, 1998, p. 80.
[2] Idem, p. 129.
[3] FRAGOSO, Heleno Cláudio. Lições de Direito Penal – Parte Geral. Rio de Janeiro: Forense, 1995, p. 18.
[4] DELMAS-MARTY, Mireille. Modelos e Movimentos de Política Criminal. Rio de Janeiro: Revan: 1992, p. 24.
[5] ZAFFARONI, Eugênio Raúl e PIERANGELLI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. Parte Geral. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1997. p. 132.  
[6] KAISER, Günter. Introducción a la Criminologia. Trad. Rodriguez Devesa. Madri: Dykinson, 1988, p. 52.
[7] GALVÃO, Fernando. Política Criminal. Belo Horizonte: Mandamentos, 2002,  p. 23.
[8] Sobre o tema Política Criminal e controle penal do uso e do tráfico de drogas, ver: SILVEIRA, Renato de Melo Jorge. Drogas e Política Criminal: Entre o Direito Penal do Inimigo e o Direito Penal Racional. In REALE JÚNIOR, Miguel (Org). Primeiro Encontro de Mestres e Doutores do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Drogas – Aspectos Penais e Criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 25-52
[9] FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos. 5ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p. 146.
[10] Conforme já antecipamos acima, denominamos tipo penal básico ou  fundamental de tráfico ilícito de drogas ao tipo penal descrito no art. 33, caput,  da atual Lei Antidrogas. Na vigência da Lei Nº 6.368/76,  o crime em referência encontrava-se positivado no art. 12, caput. Cremos que a identificação se torna necessária para se estabelecer a distinção entre este tipo penal básico e suas formas legalmente equiparadas, previstas no § 1º e seus três incisos, do referido art. 33 e nos arts. 34 a 37, da atual Lei Antidrogas.
[11] Ver, entre outros autores, que comentam a atual ou a antiga Lei Antidrogas: DELMANTO, Celso. Tóxicos. São Paulo: Saraiva, 1982, p. 12 e segs.; GOMES, Luiz Flávio e outros. Nova Lei de Drogas Comentada – Lei 11.343, de 23.08.2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, especialmente, p. 145-165. GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos. Prevenção – Repressão. São Paulo: Saraiva, 1996,  p. 78 e segs.; GUIMARÃES, Isaac Sabbá. Tóxicos. Comentários, Jurisprudência e Prática à Luz da Lei 10.409/02. Curitiba: Juruá, 2003, p. 30 e segs.
[12] Política Criminal e a Lei 11.343/2006: Nova Lei, Novo Conceito de Substância Causadora de Dependência. Jus Navegandi. Teresina, Nº , de . Disponível em: http://www.jus2.uol.com.br/doutrinas
[13] Sobre o tema, ver: BOTTINI, Pierpaolo. In REALE JÚNIOR, Miguel (Org). Primeiro Encontro de Mestres e Doutores do Departamento de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP. Drogas – Aspectos Penais e Criminológicos. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 69-86.
[14] MELO, Osvaldo Ferreira de Melo. Temas Atuais de Política do Direito, cit., p. 72.

 


 

Informações Sobre os Autores

 

João José Leal

 

Livre Docente-Doutor – UGF/FURB. Professor dos Programas de Mestrado e de Doutorado do Curso de Pós-Graduação em Ciência Jurídica da UNIVALI – Itajaí – SC. Promotor de Justiça aposentado. Ex-Procurador Geral de Justiça de SC. Ex-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da FURB – Blumenau. Sócio do IBCCrim e da AIDP.

 

Rodrigo José Leal

 

Mestre em Ciência Jurídica – UNIVALI. Doutorando em Direito – Universidade de Alicante. Professor de Direito Penal – UNIVALI e UNIFEBE.

 


 

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