Sumário: 1. Introdução; 2. Perspectiva histórica; 3. A taxa no Sistema Tributário Nacional de 1988. Competências; 4. A taxa como espécie tributária. Tributo vinculado; 5. Diferentes espécies de taxa; 5.1. Poder de polícia. Nota sobre a essencialidade; 5.2. Serviço público; 6. Requisitos da taxa de serviços; 6.1. Especificidade e sua merecida crítica; 6.2. A divisibilidade; 7. A divisibilidade na taxa cobrada em razão de serviço público posto à disposição; 8. Conclusão; 9. Bibliografia.
1. Introdução
O presente estudo tem por objetivo deitar critérios mais científicos que justifiquem a divisibilidade na cobrança da taxa instituída em razão de serviço público tornado disponível ao público. Aqueles (serviços) cuja utilização apenas potencial, nos termos do art. 145, II, da Constituição da Republica, assim como no art. 77 do CTN, seria suficiente para a instituição da correlata taxa.
Para tanto, será necessário analisar as decisões do Supremo Tribunal Federal, onde se tem assentado como critérios da divisibilidade, em tal espécie de serviço, a fruição deste, prestigiando a posição doutrinária que os divide em serviços usufruídos ut singuli e serviços de interesse ut universi, critérios estes que foram, por exemplo, decisivos para a declaração de inconstitucionalidade da antiga taxa de serviço de iluminação pública.
Precisar o que vem a ser o requisito constitucional da divisibilidade que dá azo à cobrança de tal espécie tributária, mais especificamente naqueles serviços cuja fruição potencial já seria o bastante à tributação, é tarefa em que a doutrina mais prestigiada muito se controverte, não tendo ainda chegado a uma justificativa suficientemente convincente do ponto de vista técnico-jurídico, que é o que interessa.
Por estar a taxa umbilicalmente ligada ao conceito de serviço público, extraído do direito administrativo, forte será a presença de noções buscadas nessa seara, o que, a nosso ver, tem sido um dos pontos cuja falta (pela doutrina do direito tributário) contribui para a imprecisão técnica que se pretende, guardada as limitações de experiência e formação acadêmica do articulista, atenuar.
2. Perspectiva histórica
Foi a partir da Constituição de 1891 que se deu um tratamento específico às taxas, como espécie tributária distinta dos impostos. Todavia, os contornos jurídicos da taxa, tal como atualmente estipulado no Código Tributário Nacional e na Constituição vigente, foram introduzidos pela Emenda Constitucional nº 18/65, que alterou profundamente o texto da Lei Fundamental de 1946, dispondo, inclusive, sobre a proibição de deter a taxa base de cálculo idêntica à de imposto.
As Constituições brasileiras de 1934, 1937 e 1946 seguiram religiosamente as linhas gerais da primeira Constituição republicana, como anota Baleeiro[1].
3. A taxa no Sistema Tributário Nacional de 1988. Competências
Como sabido, o Sistema Tributário Nacional constante da Carta de 1988 encontra-se composto de normas de três dimensões. Uma dimensão positiva, outra negativa, e as normas que prevêem as transferências e repartição de receitas financeiras entre os entes que compõem a Federação, sendo estas impropriamente positivadas em tal capítulo, já que se tratam de normas de direito financeiro e não de direito tributário.
Competência é o desenho constitucional do poder de tributar. A Constituição Federal reserva determinado campo de atuação a cada ente político e estes, dentro desse terreno, podem (ou melhor, devem, já que a Lei de Responsabilidade Fiscal – Lei Complementar nº 101/00, recrimina a não instituição dos tributos previstos na competência do ente[2]), mediante lei ordinária, instituir os tributos previstos na parcela de competência que lhe foi reservada.
No que toca aos impostos, a Constituição os dividiu de maneira expressa e exaustiva entre os entes, estabelecendo que cabe à União a instituição de impostos no exercício da competência residual, mediante as limitações previstas no art. 154, I, da CF. Em relação às contribuições sociais, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios apenas são competentes para cobrá-las, dos seus servidores, para o custeio, em benefício destes, do regime de aposentadoria (art. 149, §1º, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 41/2003, o que já se achava previsto no parágrafo único do artigo, na redação original). Também quanto a estas, contribuições sociais, a competência residual toca à União, nos termos do art. 195, §4º, da CF[3].
As normas de cunho negativo correspondem às limitações constitucionais ao poder de tributar (arts. 145, §1º, 150, 151 e 152, dentre outros, da CF), mais notadamente às imunidades e aos princípios constitucionais tributários, que se apresentam como um plexo de garantias dos contribuintes frente à atuação do Estado na imposição de tributos, que, na relação jurídica tributária, apresenta-se no seu poder de império, em posição não linear para com o contribuinte.
O Supremo Tribunal Federal, ao analisar a constitucionalidade do antigo Imposto Provisório sobre Movimentação Financeira – IPMF, hoje sucedido pela Contribuição Social sobre Movimentação Financeira – CPMF, teve a oportunidade de afirmar que os princípios constitucionais, postos como normas de proteção dos contribuintes, dizem respeito à cláusula de abertura do art. 5º, §2º, da Constituição, correspondendo a inequívocos direitos fundamentais (seriam os direitos de 1ª dimensão revestidos sob outra roupagem) previstos fora do catálogo do art. 5º, retirando-os do poder de reforma constitucional previsto no art. 60 da Lei Fundamental.
Vê-se, portanto, que a competência tributária, a despeito de estar positivada em normas de cunho positivo, porquanto atribui o poder de tributar, também detém uma perspectiva negativa, já que a Constituição, ao atribuir a competência para a instituição de determinado imposto ao um ente (à União, por exemplo), consagrando-a na sua feição positiva, está, sob outro ângulo, em verdade, vedando a instituição do mesmo imposto em relação ao ente diverso que o previsto para atuar no campo de incidência material reservado à União (no exemplo), aí se revelando o aspecto negativo da competência.
Veja-se que o que acima se disse se referiu a imposto. No que toca à taxa isto não ocorre, porquanto – e aqui se chega ao ponto principal que ensejou a abertura do capítulo – a competência prevista quanto à instituição da taxa está estritamente ligada à competência material pela mesmo atribuída à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios (art. 80, CTN).
Ou seja, para se saber a competência de determinado ente para instituir taxa relacionada a determinado serviço, ou à parcela do poder de polícia que lhe toca, faz-se mister examinar se a matéria (o serviço e o poder de polícia) se acha elencado dentre os previstos para a União (art. 21, CF), ou se o mesmo é de competência dos Municípios (referindo-se ao interesse local de que trata o art. 30, I, da CF, ou a algum serviço expressamente previsto no citado artigo), ou se, ao revés, é de competência dos Estados membros, ou ainda, se se refere à competência material comum (art. 23, CF), cujo exercício – e a instituição da taxa correlata – dar-se-á de forma conjunta.
E, aqui, a regra linhas acima dita se inverte. Quanto a taxas – diferentemente do que ocorre em relação aos Estados – a competência residual, ou remanescente, se se prefere[4], não pertence à União, mas, sim, ao contrário, aos Estados membros, conforme previsto no §1º, do art. 25, da CF, segundo o qual são reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição.
Tal abordagem da distribuição de competência na Carta de 1988 se mostra imprescindível a qualquer estudo tributário, mormente quando específico às taxas, que se ligam a noções de direito administrativo.
4. A taxa como espécie tributária. Tributo vinculado
Há pouca divergência no que pertine à afirmação de que, enquanto os impostos despontam como tributos não vinculados a uma atuação do Estado, as taxas, ao revés, têm como hipótese de incidência justamente a atuação de um serviço público, ou atividade de poder de polícia, igualmente desempenhada, como não poderia ser diferente, pelo Poder Público.
Os impostos ligam-se a atividades praticadas pelos particulares, pouco importando que o Estado esteja efetuando serviço que lhes acarrete alguma espécie de benefício. Na verdade, se vislumbrássemos o Estado mínimo proposto por Adam Smith, no seu A riqueza das nações, em que atuação estatal fosse mínima, por igual os indivíduos continuariam pagando impostos, já que estes não se apresentam como uma contraprestação a serviços do Estado.
Pode-se dizer, portanto, que as taxas são uma contraprestação aos serviços, ou expressão do poder de polícia, do Estado, apenas sendo devidas pelos indivíduos que estão, de alguma forma, se beneficiando da atuação estatal. Mostra-se, então, aí, presente outra característica de tal espécie tributária: a divisibilidade, que, por sua vez, está fortemente ligada ao conceito de justiça fiscal.
Todavia, a idéia de contraprestação pode imprimir a incorreta apreensão de que a taxa só será devida se houver efetivamente um benefício ao indivíduo. Na verdade, a utilidade que do serviço público advém não necessita de comprovação empírica para que a taxa seja devida.
O tributo cujo fato gerador está umbilicalmente ligado a um benefício acarretado, por sua vez, de obra pública (e não de serviço público) é a contribuição de melhoria, cuja análise foge ao âmbito deste estudo.
São pertinentes as anotações, a este respeito, de Hugo de Brito Machado, para quem a contraprestação tem que ser entendida conjuntamente com a referibilidade, ou seja, a taxa será devida porque ligada a um serviço prestado mais ao indivíduo enquanto tal (ut singuli), do que à coletividade em geral (ut universi)[5] (conceitos mais adiante analisados), independentemente de que o montante que haja sido empregado pelo Estado na prestação do serviço equivalha ao valor da taxa cobrada.
Tem-se, destarte, que seu caráter sinalagmático, divisibilidade e justiça fiscal são conceitos intrinsecamente ligados, que devem ser analisados em conjunto no presente estudo.
5. Diferentes espécies de taxa
5.1. Poder de polícia. Nota sobre a essencialidade
Da leitura do sobredito art. 145, II, da CF[6] (reproduzido pelo art. 77, do CTN) observa-se que a taxa pode ser classificada em 3 (três) espécies.
A primeira corresponde à taxa cobrada em razão da atividade de poder de polícia, classificada pelo art. 78 do CTN. Como se sabe, o poder de polícia é expressão tradicional da Administração Pública, traduzindo-se como atividade típica desta, cujo nascimento diz com o próprio surgimento do Estado moderno.
Por tais palavras, já se revela que a essencialidade do serviço, ou da atividade do Estado, não se mostra como critério correto para distinguir a parcela da atividade estatal à vista da qual se poderia instituir a taxa, como advogado por alguns. Ou seja, ainda que essencial, a atividade pode ser custeada por taxa, e não necessariamente por impostos.
A atividade de polícia é ontologicamente típica da Administração Pública, mostrando-se como essencial, isto é, só pode ser prestada pelo Estado, nunca sendo delegável a particulares (que podem ser credenciados para sua fiscalização e cobrança, o que ocorre com as lombadas eletrônicas, por exemplo, como explica Celso Antônio Bandeira de Mello[7]).
Não obstante a nota sobre sua essencialidade, o poder de polícia pode dar azo à instituição de taxa, já que a essencialidade não soa estranha à taxa.
Observe que, da leitura do CTN ou da Constituição Federal, tem-se que sequer a especificidade e a divisibilidade, a que se referem os respectivos dispositivos, dizem com a taxa do poder de polícia, tendo em vista a redação dos mesmos, que os posicionou com referência apenas aos serviços. Para esta – taxa do poder de polícia -, bastaria, apenas, que sua hipótese de incidência se refira realmente a uma expressão do poder de polícia do Estado.
Não é bem assim, todavia, não obstante tal interpretação advenha da análise isolada do art. 145, II, da Constituição Federal.
Segundo Luciano Amaro, a divisibilidade da taxa de poder de polícia decorre da provocação individual da atividade do Estado. A divisibilidade estaria ligada à solicitação. São suas essas palavras: “Esses direito (de construir, de portar arma, de viajar etc.), porque podem afetar o interesse da coletividade, sofrem limites e restrições de ordem pública. A taxa de polícia é cobrada em razão da atividade do Estado, que verifica o cumprimento das exigências legais pertinentes e concede a licença, a autorização, o alvará etc. Por isso, fala-se em taxas cobradas pela remoção de limites jurídicos ao exercício de direitos. A atuação fiscalizadora do Estado, em rigor, visa ao interesse da coletividade e não ao do contribuinte da taxa, isoladamente. É esta, porém, que provoca a atuação do Estado, sendo isso que justifica a imposição da taxa. Por essa razão – recorda Gilberto de Ulhôa Canto – foram criadas, a par das taxas pela prestação de serviços ao contribuinte, as taxas pelo exercício do poder de polícia, que, a exemplo daquelas, se referem a atos divisíveis do Estado, justificando-se, por isso, custeá-los também com receitas específicas, e não com impostos[8]”.
Discorda-se. A provocação individual da atividade do poder de polícia (requerimento de um alvará de licença de construção, por exemplo) não pode ser erigida como critério que a dote de divisibilidade. Ainda que individualmente solicitada, a licença deferida será muito mais usufruída pela coletividade como um todo do que pelo particular que a obteve, já que, na sua concessão, examinar-se-á justamente a segurança que advirá para toda a coletividade, seu impacto frente às normas de urbanismo etc., embora o particular em questão será forte e individualmente (enquanto indivíduo não inserido no todo social) beneficiado pela licença.
Na verdade, tal discussão, a respeito da referibilidade do benefício decorrente do poder de polícia, é descabida, até porque o constituinte, na forma de positivação no art. 145, II, não incluiu a divisibilidade como requisito da taxa do poder de polícia, tampouco tal requisito estaria previsto no art. 78 do CTN.
O que se tem, ao reverso, é que examinar a Constituição sistematicamente, como um todo harmônico, repudiando-se a sua interpretação aos pedaços, na linguagem de Eros Roberto Grau: “A Constituição não é um mero agregado de normas; e nem se a pode interpretar em tiras, aos pedaços”[9].
O poder de polícia como poder de polícia não precisa ser divisível para ensejar a taxa, já se disse. Agora, se a parcela do poder de polícia mereceu tratamento díspare pela Lei Fundamental, que determinou fosse prestado pelo Estado gratuitamente, ou a positivou como direito de todos, a taxa é descabida, excepcionando-se a regra.
5.2. Serviço público
Chega-se às taxas cobradas em razão de serviço público. Serviço público e poder de polícia não se confundem, embora digam respeito a manifestações do Estado. Esta última se caracteriza justamente por seu cunho negativo, isto é, o Estado limitando a atuação dos particulares em prol do interesse público, mostrando-se como atividade típica e essencial do Estado, indelegável a particulares, como já se mostrou.
Serviço público é manifestação positiva do Estado, são prestações de cunho positivo que o Poder Público desempenha para desincumbir-se de seu mister constitucional, que pode ou não ser essencial do Estado, pode ou não lhe ser atividade típica, indelegável para particulares.
Assim, dentre os serviços públicos que o Estado desempenha, há aqueles essenciais, mas que podem ser também desempenhados por particulares (educação e saúde, por exemplo), os essenciais cuja execução é intransferível (atividade jurisdicional do Estado), bem como os que não são essenciais e que podem ser executados pelo Estado ou por particulares, ou por ambos.
Em todas as categorias, nos serviços essenciais ou não essenciais, há serviços que se apresentam como divisíveis, e outros que não se revestem de tal qualidade, donde se reforça a conclusão que a essencialidade é estranha à taxa.
Hely Lopes Meirelles[10] endossa a clássica divisão, empregada pelo Supremo Tribunal Federal[11], de que há os serviços públicos ut singuli e os ut universi.
O conceito de divisibilidade defendido nesse trabalho detém uma sutil diferença em relação ao sustentado por Hely Lopes e pelo Supremo. Estes entendem (ou ao menos não fazem referência à dimensão de aproveitamento do serviço, que acreditamos relevante) que divisível (ut singuli) é o serviço com usuário determinado, ou seja, que pode ser dividido em unidades autônomas de benefício.
Referido critério, todavia, não é bem aceito pelos serviços apenas disponíveis, pela simples razão de que, estando à disposição de todos, é complicado identificar os eventuais utilitários. Os beneficiados, seguindo tal raciocínio, só seriam identificados quando solicitado o serviço. Ocorre que, mesmo antes da solicitação, a taxa já pode ser cobrada.
Entendemos que divisível (aceitamos para tal o emprego da expressão ut singuli, apesar da pequena divergência conceitual) é o serviço prestado tendo em vista mais o indivíduo enquanto tal, do que o indivíduo como componente da coletividade. Ou seja, o serviço interessa imediatamente ao indivíduo e, mediatamente, à coletividade de que faz parte. Indivisível, ao revés, seria o serviço prestado à coletividade, à sociedade mesma enquanto sociedade, apenas beneficiando o indivíduo em uma segunda dimensão.
6. Requisitos da taxa de serviços
6.1. Especificidade e sua merecida crítica
É inimaginável a situação de um serviço público divisível e não específico. Se o serviço público detém contornos próprios que o torna divisível, obviamente, o mesmo se mostrará específico. Ademais, se o serviço for específico, mas indivisível, a taxa não será cabível, como ensina Luciano Amaro, com quem, ao menos nesse ponto, concordamos: “Diante dessa colocação é ocioso dizer que os serviços, sobre serem divisíveis, precisam ser específicos para que se sujeitem a taxação. Os serviços gerais ou indivisíveis (como a gestão patrimonial do Estado, a defesa do território, a segurança pública etc.) são financiáveis com a receita de impostos e não de taxas de serviço, pois configuram atividades que o Estado desenvolve em atenção a toda coletividade, sem visar a este ou àquele indivíduo, sendo irrelevante saber se tais atividades são ou não específicas. Já no caso dos serviços que ensejam a cobrança de taxa, sua necessária divisibilidade pressupõe que o Estado os destaque ou especialize, segregando-os do conjunto de suas tarefas, para a eles vincular a cobrança de taxas. A partir do momento em que o Estado se aparelha para executar o serviço, está atendida a exigência da ‘especificação’. Se (específico embora) o serviço for indivisível, descabe taxa-lo; se divisível, a taxa pode ser instituída. Ou seja, o que importa é a divisibilidade, e não a especificidade do serviço[12]”.
6.2. A divisibilidade
A divisibilidade da taxa cobrada em razão do poder de polícia já foi examinada quando se procurou registrar que a essencialidade – seja do serviço público, seja da atividade do poder de polícia – é irrelevante à instituição da taxa, posto que o que realmente é importante para a taxa ligada a serviço público é a divisibilidade, que é estranha à taxa correlata ao poder de polícia.
Na verdade, não merece relevo toda esta discussão acerca da essencialidade (que seria própria dos serviços indivisíveis) que tornaria por afastar a instituição de taxas, dando ensejo à instituição de impostos.
O serviço essencial, no mais das vezes, é indivisível, como, por exemplo, o serviço de segurança nacional. Todavia, também há os serviços essenciais, estruturais, relacionados com a soberania da República Federativa brasileira que, por serem divisíveis, ou seja, por dizerem respeito mais ao indivíduo do que à coletividade em geral, podem, ainda que essenciais, ensejar a cobrança de taxa.
E assim o é, por exemplo, o serviço de prestação jurisdicional com coerção. Quem ajuizar uma ação, se não for isento, pagará a taxa judiciária, já que se estará a utilizar serviço que mais lhe aproveita do que à coletividade em geral.
Isto, obviamente, se não fossemos analisar a questão do ponto de vista da teoria geral do direito, já que, aí, teríamos clara a noção de que o monopólio estatal da jurisdição é um dos pilares do Estado moderno, ou, na visão de João Maurício Adeodato, é um dos pressupostos sociológicos do direito dogmático moderno[13].
Sob tal aspecto, em que a jurisdição serve como sustentáculo do próprio Estado e, portanto, da coletividade que lhe dá legitimação, não se teria como classificar o serviço sob exame como prestado ut singuli, porquanto se colocaria como próprio pressuposto do Estado, aqui sendo entendido como depositário do interesse da coletividade.
Tal análise, muito embora intrigante, ao que parece, não chamou a atenção do pragmatismo jurisprudencial. Ao menos, o Pretório Excelso vem, iterativamente, endossando a natureza jurídica das custas e emolumentos judiciais como taxas, diferenciando-as dos impostos, que representam a fonte natural de custeio dos serviços prestados ut universi (como dá notícia o aresto proferido na ADIN nº 1145/PB, Rel. Ministro Carlos Velloso, DJ de 12/11/2002).
A divisibilidade dos serviços efetivamente prestados tem seu fundamento no fato de que apenas será cobrada a exação quando verificada a prestação material solicitada pelo contribuinte. Após a prestação do serviço, deve o contribuinte que utilizá-lo efetivamente, e só este, ou estes, recolher a respectiva exação, desde que, evidentemente, seja o serviço ontologicamente divisível, ressaltando a possibilidade de um serviço passar de divisível a indivisível, principalmente quando a reforma do Estado é notícia corrente[14].
7. A divisibilidade no serviço público disponível como requisito para instituição da taxa
O presente capítulo mereceu atenção especial por referir-se ao puctun saliens deste estudo. Como visto, a divisibilidade não está presente como requisito constitucional para a imposição da taxa correlata ao poder de polícia (aqui nos afastamos do ponto de vista da maior parte da doutrina), até devido à forma de sua positivação na ordem constitucional.
Os serviços efetivamente prestados, por sua vez, detêm sua divisibilidade aferida quando são solicitados.
O problema da divisibilidade aparece mais crítico quando se analisa alguma taxa cobrada em razão de serviço publico tornado disponível. Hugo de Brito Machado critica, com razão, dissemos, o caráter sinalagmático da taxa, posto que, para o autor, o critério aferível seria o da referibilidade, dado que o contribuinte não precisaria empiricamente beneficiar-se do serviço para ter que pagar a taxa, tampouco a identidade entre custos e receitas se colocaria como empecilho a sua validade.
Cremos que o autor, ao registrar sua crítica, estava a discorrer sobre a taxa relacionada a serviço público apenas posto à disposição. É que quando o serviço público necessita ser efetivamente prestado, para que se dê a cobrança da taxa, a noção do tributo como contraprestação do benefício usufruído se mostra mais presente. Paga taxa quem solicitou o serviço efetivamente prestado.
Tal não se dá com os serviços postos à disposição. Aqui, a taxa é devida ainda que o particular não usufrua o serviço. Posto à disposição o serviço de coleta de lixo, ainda que o particular (sendo, por exemplo, um hotel, que detenha um triturador industrial de lixo) não utilize o serviço público, terá o mesmo que recolher a taxa, pois a mera disponibilidade do serviço a fundamenta.
Nem se diga que a própria disponibilidade do serviço, per se, constitua um benefício (como entendido por Luciano Amaro[15]) que comprove a presença da divisibilidade nesta espécie de taxa.
Veja-se: a mera disponibilidade do serviço é bastante à cobrança da taxa, mas isto não quer dizer que o fato de estar o serviço disponível traga à tona a contraprestacão e, por conseguinte, a divisibilidade da taxa, qual ocorre com a taxa relacionada ao serviço efetivamente prestado. Tal interpretação, a nosso ver, contribui para confusão conceitual das espécies de taxa.
O serviço de segurança nacional, ninguém duvida, pelo simples fato de encontrar-se disponível a toda coletividade, também acarreta um benefício ao indivíduo. Mas tal utilidade não significa dizer que o mesmo pudesse ensejar a cobrança de taxa que lhe fosse tida como uma contraprestação.
É que a divisibilidade da taxa relacionada a serviço público disponível advém predominantemente do critério da referibilidade (serviços ut singuli e ut universi), que, muito embora também esteja fortemente presente na taxa de serviço efetivamente prestado, é o único critério que serve à taxa de serviço disponível.
Ou seja: a divisibilidade da taxa de serviço público prestado decorre tanto da referibilidade como do caráter sinalagmático, enquanto que a divisibilidade da taxa de serviço disponível advém apenas da referibilidade.
O fato de estar o serviço disponível como bastante à tributação tem o negativo aspecto de confundir as espécies tributárias (taxa e imposto) que devem ser utilizadas no seu custeio, o que motivou a crítica de Dino Jarach e Hector Villegas, “para quem a taxa de serviço não utilizado efetivamente seria um imposto e não uma taxa de serviço, como nos dá notícia Luciano Amaro[16].
O serviço efetivamente prestado quase sempre o é com o caráter ut singuli, ao passo que o serviço disponível se inclina a ser, em tese, ut universi. Deve-se, pois, analisar se o móvel do mesmo, assim como a sua finalidade, refere-se mais ao interesse da coletividade do que ao interesse do indivíduo enquanto tal. Esse parece ser o entendimento de Misabel Derzi[17]. Tal critério, também, em linhas gerais[18], utilizado pelo Supremo, merece, pois, ser seguido.
Luciano Amaro tem uma posição singular, no que se refere ao serviço posto à disposição. Para o autor, cobrar taxa apenas de quem tem o serviço disponível, e não de toda a comunidade, é uma questão de justiça fiscal, de modo que se o serviço é posto à disposição de toda a comunidade, e não só de um determinado distrito, cobrar-se taxa ou imposto seria uma questão meramente de eleição política, como se tal se inserisse na discricionariedade do Governo: “Nessa perspectiva, se o serviço estatal, posto à disposição de um grupo de usuários, se expande e passa a atender a toda a comunidade, cobrar taxas de todos (pela mera disponibilidade) ou financiar o serviço com a receita de impostos tornar-se, do ponto de vista financeiro, uma opção neutra: num modelo ótimo, em que o Estado consiga levar os serviços públicos a toda a comunidade, a opção que poderia caber seria entre financia-los com a receita de impostos ou com taxas cobradas dos usuários efetivos[19].
Mais uma vez, discorda-se. O raciocínio, que impressiona numa primeira leitura, finda por contrariar o requisito da divisibilidade da taxa de serviço. É que, ainda que o serviço esteja disponível a toda a comunidade (coleta de lixo, por exemplo), se o mesmo for divisível, isto é, for prestado em unidade possível de destaque, atendendo mais ao particular do que ao interesse da coletividade como um todo (ut singuli), o mesmo só poderá ser custeado por taxa, e não por imposto, mormente em princípio da estrita legalidade administrativo-tributária, que não cede espaço à discricionariedade da Administração Pública.
8. Conclusão
O tema, como visto, é ao mesmo tempo intricado e apaixonante. Aparentemente tranqüilo, envolve discussões acirradas, justamente por se encaixar numa seara interdisciplinar, que combina direito administrativo, principalmente o conceito de serviço público, e o direito tributário.
Justamente a falta de tratamento da matéria como tal – interdisciplinar – fez do tema ponto de embate entre os doutrinadores, servindo a evolução acadêmica a seu respeito enorme favor à prática do dia a dia dos operadores do direito, dos que no foro litigam, aos que empenham a delicada função judicante. Esperamos ter para isso contribuído.
Notas:
Informações Sobre o Autor
Ernani Medicis
10º Período da graduação do Curso de Direito da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE
Integrante de Wanderley, Monteiro, Rocha e Uchôa Cavalcanti advogados e consultores – adc
Recife-PE