O paradoxo em torno da democracia em tempos de globalização

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Resumo: Esse artigo é uma aproximação ao tema da crise que assola o Estado contemporâneo, a partir dos efeitos da globalização ou extraterritorialidade da soberania, ao mesmo tempo em que se busca analisar a possibilidade da Democracia, enquanto espaço privilegiado do político vir a ser uma alternativa para essa crise.

Sumário: 1) Introdução; 2) Das Tradições Históricas da Democracia: Uma breve reflexão histórica quanto a evolução do conceito; 3) O Estado Democrático de Direito e o Estado Democrático Constitucional – O paradoxo da atualidade; 4) Conclusão;  5) Notas e 6) Bibliografia.

Introdução

Este é tempo de partido, tempo de homens partidos. Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua, os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto e escreve-se na pedra. 1

Ao se falar em democracia deve-se partir de uma premissa fundamental: enquanto signo do político, seu sentido é multiforme e eminentemente contestável.

Multiforme, porque enquanto signo, pertence ao social, isto é, sofre todas as influências dos conflitos, das contradições e das significações que esse campo vem apresentando ao longo dos séculos.

Sinal dessa inter-relação com o social tem sido o fato de que, enquanto espaço de produção privilegiado do universo político, o campo social, ao definir outros conceitos no campo político, obrigou a conjunção da democracia com esses outros signos, alguns desses até contraditórios, e que agregados, emprestaram-lhe significações que, não raro, vem exigindo dela uma elasticidade de adequação, que em última instância, apresenta como efeito mais evidente, a pasteurização de sua própria natureza.

Assim, ao longo de seu devir histórico, a democracia se viu mesclada com a tradição republicana, com os princípios do liberalismo, bem como com os do socialismo, do elitismo, etc. De poder do povo, enquanto representante de uma pólis, ela se viu conduzida para o reconhecimento do indivíduo, identificado esse com a imagem da Nação, para, logo após, ser confundido com o próprio mercado econômico. Mais tarde, acabou por ser a legitimação de uma crítica política à desigualdade do capital, que assentou os sonhos de toda uma geração revolucionária. Finalmente, acabou por se ver reduzida, ao final do século XX, como uma estratégia de dominação demagógica de grupos que a transformaram em um mero discurso partidário visando obter, através do voto, e da transformação do Estado em um simples cenário de espetáculo mercadológico, o fim último de uma acirrada disputa, qual seja, àquela pelo poder político.

Agora, na abertura do novo milênio, onde a marca é a crise do Estado como a grande questão teórica, fruto da expansão do capital em sua fase virtual e extraterritorial, bem assim enquanto efeito da globalização, a democracia, (re)aproximando-se de forma mais definitiva do espaço jurídico, busca na figura da Constituição, e nos seus princípios que fundamentam os direitos fundamentais, um fôlego para resistir a fragmentação que seduz os campos do político e do social, e que cria um estranhamento nos sujeitos em relação aos tradicionais institutos que organizam a relação Estado/Sociedade/Indivíduo.

Em seu segundo elemento, a democracia é contestável, e é exatamente esse elemento ao qual se submete que lhe cria a figura do paradoxo. Ao longo do processo de sua evolução, a democracia se viu utilizada por diferentes forças sociais e políticas, a tal ponto que a sua captura foi em muitos sentidos, o principal objetivo de algumas correntes políticas. É o caso, em que se destaca aqui, da “democracia liberal”, bem como da “democracia popular”.

A primeira, a “democracia liberal” teve por intuito maior o objetivo de destacar os direitos individuais dos cidadãos. Queria, assim, alçar à democracia o corolário teórico do liberalismo, onde se por um lado se sobressaia a figura do sujeito-indivíduo, em sua máxima plenipotência, por outro lado, para justificar a competição que na prática nunca se dá em condições iguais de disputa, desenvolveu o conceito englobante de cidadania, criando assim, uma sensação de homogeneidade social. Tal pretensão não permitiu que na realidade do campo social, os indivíduos deixassem de perceber a existência de uma lógica cruel de desigualdades que em muito veio a desgastar a opção democrática.

A segunda, a “democracia popular”, que pode ser percebida desde uma tradição rousseauriana, buscou demarcar à democracia os elementos da soberania, da vontade popular (em teoria absoluta), e de uma idéia, ainda resgatável em muitos autores, do contrato social. Nessa engenharia política, a democracia seria um exercício do poder popular que, a partir da gênese contratual, fundava a legitimidade do exercício político do Estado na soberania. E essa, em última razão, pertenceria ao sujeito histórico, muito pouco definido, conhecido, simplesmente, por “povo”.

A “democracia popular” não raro acabou por estabelecer contradições tão intensas que permitiu a metamorfose da democracia em sistemas autoritários, e que, particularmente, na América Latina acabou por ganhar o desenho dos chamados sistemas populistas.

Destarte, em que pese que se busque e aceite a democracia como forma política mais desejável, tal reconhecimento não tem o condão de eliminar a contestação que surge do seu interior, pois, quanto mais se enaltece as qualidades democráticas, mais intensas e robustas se torna a controvérsia em torno de seus limites e ocasos, a tal ponto que, tal como o mito de Pandora, encerra esperanças que espalham males maiores, mas que nem por isso, são evitáveis ou (in)desejáveis na busca da construção de uma sociedade moralmente igualitária e responsável.

Portanto, chega-se, dessa maneira, ao silogismo final, qual seja: para se enfrentar o problema da democracia, é necessário confrontar-se as duas formas em que ela, na atualidade, está associada: O Estado Democrático de Direito, e o ainda não bem detalhado, Estado Democrático Constitucional. Em se permitindo o conflito dessas duas formas, fica mais clara a figura do paradoxo que envolve a Democracia.

Das tradições históricas da democracia: uma breve reflexão histórica quanto a evolução do conceito.

Introdução

Nossa constituição não copia as leis de outros estados; nós somos um modelo para os outros e não imitadores. Nossa administração favorece aos “muitos” ao invés dos “poucos” e é por isso que é chamada de democracia. Se olharmos as nossas leis, elas asseguram justiça igual para todos nos seus litígios privados; o progresso na vida pública depende da reputação de capacidade e as considerações sobre classes não podem interferir com o mérito; se um homem é capaz de bem servir ao estado ele não é impedido pela obscuridade de sua condição.

A liberdade que gozamos no nosso sistema de governo estende se também para a nossa vida em sociedade. Nós não exercemos uma invejosa espionagem uns sobre os outros (…) embora toda esta liberalidade nas relações privadas não nos torne cidadãos que não respeitam as leis. Este temor (desobediência às leis) é a nossa principal salvaguarda. Ele nos ensina a obedecer aos magistrados e às leis, tanto as que estão impressas em documentos, como as que integram aquele código que, embora não seja escrito, não pode ser quebrado sem causar conhecidas desgraças (lei natural).2

Nesse capítulo primeiro se busca dar uma breve síntese histórica da democracia. Objetivamente, se quer apenas permitir que o tema seja situado enquanto resultado de uma historicidade que em muito definiu a sua natureza e que desembocou naquelas formas que se pretende confrontar no segundo capítulo (Estado Democrático de Direito x Estado Democrático Constitucional).

Note-se que essa abordagem é uma aproximação ao tema, sem ter, assim, qualquer pretensão em esgotar a problemática complexa que envolve a historicidade da figura da democracia.

As Tradições Históricas

Quando se atenta para a questão da democracia, o intérprete fica tomado pelo impulso de resgatar o extenso passado formador dessa forma política. Em assim o fazendo, corre o risco de apenas apresentar uma imagem positivista, pois o corte inicial, obrigatoriamente, deveria ser a experiência da Pólis grega. Não é essa a intenção que se quer aqui desenvolver.

Para o tema pretendido, e que tem os limites da disciplina Teoria Constitucional, interessa mais a visão contemporânea da democracia, na qual, inegavelmente, convergem três fundamentais tradições:

a) a teoria clássica;

b) a teoria medieval;

c) a teoria moderna, a qual está associada à imagem da emergência da forma moderna do Estado.

Em relação à primeira dessas tradições, a teoria clássica, o fio condutor são as observações de Aristóteles, baseada em sua percepção das três formas de governo. Aqui, a democracia ganha sentido quando confrontada com a Monarquia e a Aristocracia. Se a Monarquia é o sistema do poder concentrado em uma só figura, e a Aristocracia é aquele em que o poder político pertence a alguns poucos, que se autoproclamam em “melhores”, a Democracia é o governo do povo, de todos os cidadãos, isto é, daqueles que gozem de direitos políticos.3

Em relação à segunda, a da tradição da teoria medieval, é importante destacar a influência que a sociedade do medievo recebeu do universo romano (que delimitou ao conceito de República um outro significado, no que tange a sua ampliação ao universo de “coisa pública”, isto é, uma definição mais política, mas não menos pragmática do espaço do público), bem como da tradição da Igreja Católica. Essa, mesmo que mantendo o conceito da democracia ausente dos estudos medievais, acabou anotando por volta dos séculos XII a XIV, já sobre a influência do pensamento tomista/ aristotélico, e das bases do pensamento renascentista, a discussão em torno da questão da soberania.

Ainda que não tratando explicitamente do conceito de democracia, a preocupação medieval em torno do conceito de soberania veio a apoiar, enquanto reflexão do conceito de poder político, o resgate que o conceito da democracia acabou por sofrer a partir do século XVIII.  Discutindo a soberania, o medievo preparou o caminho para toda uma tradição que se inicia com a obra de Maquiavel, que ao romper com a visão aristotélica do poder associado à moral, permitiu a política (4) desenvolver o seu espaço com a formatação atual e que, ao natural, possibilitou a emergência do conceito democrático, a tal ponto que ele veio a ser a expressão da mais contundente crítica ao antigo sistema.

É, assim, que surgem, na Idade Média, as percepções de uma soberania ascendente (popular), e descendente (elitista). A primeira forma de soberania é aquela que se sustenta na tese de que o poder deriva do povo, e dele é representativo, enquanto a segunda se funda na tradição que predominou na época medieval, isto é, a soberania descendente deriva do príncipe, e é transmitida por delegação de um ente superior a um inferior. (5)

Finalmente, observa-se a terceira das tradições, a teoria moderna. Nessa, a Democracia emerge como uma das formas de República, usada, igualmente, como estratégia na crítica ao poder absoluto dos reis. Tal associação acarretou graves prejuízos ao conceito democrático, pois reduziu o seu universo, já que ela passou a se constituir como meio para se alcançar um fim determinado (a república), em oposição à monarquia que se pretendia derrubar.

Porém, atada ao conceito de República, a Democracia se viu, ao longo do século XIX, frente as correntes liberais e socialistas. Se a primeira buscava resguardar a figura do indivíduo, e os seus valores mais importantes (a propriedade, o mercado e o capital), a segunda busca, através da contestação àquele modelo liberal, criar uma sociedade que efetivamente venha a ser popular, e nesse sentido, passa a utilizar o ideal democrático como resistência a sociedade individualista e geradora das graves diferenças sociais.

Nos estudos da escola marxista, elege-se um agente reformador, força propulsora da história, o proletariado, em conflito constante com o outro agente histórico, a burguesia. Assim, se essa tinha reduzido a democracia ao papel de discurso legitimador das desigualdades entre os indivíduos, ao propor o direito a livre iniciativa, a competição, ao domínio do capital, a crítica socialista-marxista redefinia a direção do discurso democrático, evocando o poder popular, organizado em conselhos que, transformando o Estado como o ente responsável pela grande transformação a ser realizada, ao longo do exercício do poder, acabou por envenenar a sua própria matriz, transmudando-se em um Estado autoritário e, a partir de 1929, de raízes totalitárias.

Num olhar mais aproximado, o fator que mais distingue a democracia socialista da democracia liberal diz respeito ao processo de democratização do Estado. Nesse sentido, chama a atenção o fato de que para o socialismo, o sufrágio é apenas instância inicial, pois propicia a criação de um espaço popular no universo político, e através do voto, a cidadania passa a ser amplamente experimentada, mas não fica a ela reduzida. Já para o liberalismo, a questão do sufrágio é fim, e não meio, pois é através do voto, da vitória nas urnas que o sistema alcança o máximo no quesito do exercício do poder político, conseqüentemente, da cidadania.

O liberalismo se preocupa em determinar as regras do como educar a vida política do cidadão, e não com o que escolher. A conseqüência mais nefasta dessa visão utilitarista da democracia será o seu crescente desinteresse para diversas camadas do social, ao mesmo tempo em que irá reduzir o Estado a um cenário de espetáculo de forma e quase nenhuma substância.

Encastelando-se nessa visão típica de mercado, já que o poder passa a ser um produto da competição entre os grupos, tal como qualquer outro produto do capital, o liberalismo, homeopaticamente, desenvolveu estratégias para que a exclusão se tornasse uma regra, aceita e, de certa forma, praticada por todos os membros do campo social.

Todavia, hodiernamente, pode-se anotar uma quarta tradição que se está fortalecendo, mas que já tem sobre o conceito da Democracia uma substancial influência. Está se falando da teoria da pós-modernidade.

A pós-modernidade tem se apresentado como uma fase de fragmentação e desconstrução dos velhos paradigmas nas ciências sociais. Tal fragmentação, observada no campo do político vem mais aguda a partir dos efeitos que esse campo vem sofrendo do fenômeno da globalização.

A globalização é mais do que a vitória de um país, de um modelo de mercado, de um desenho do capital, mas é uma visão ideológica que, apesar de buscar expandir as fronteiras do velho Estado nacional, traz em si a máxima da exclusão intra e extra Estado, mesmo que isso pareça contraditório a quem tem pretensões de construir uma nova significação para os conceitos de nacional, território e cidadania.

A globalização não tem nenhum respeito aos espaços tradicionais do Estado-nacional, pois o capital busca romper toda e qualquer limitação ao seu movimento, num movimento contrário àquele vivido pelos campos ingleses no século XVIII, conhecido como enclousers, ou cercamento dos campos. O capital globalizado transnacional pretende derrubar toda e qualquer cerca, muro, fronteira ou restrição a sua expansão. Dessa forma, o mercado virtual mundial trabalha num espaço e numa noção de tempo completamente ágeis e bastante maleáveis, para não dizer inseguras, e que exigem uma redefinição dos conceitos políticos tradicionais, entre eles os do Estado, da política e do político, ao mesmo tempo em que, num movimento contrário, permitem aos seus críticos, levantar como bandeira contra essa expansão imoral, mais uma vez, o tema da democracia.

Tal processo não busca, assim, um ideal de igualdade entre as nações do planeta, pelo contrário, a globalização é um novo reordenamento da velha divisão social do trabalho, quer dizer: alguns países mantêm o controle da dívida externa, dos investimentos, da tecnologia e da possibilidade de dividir benesses aos seus nacionais, enquanto uma grande maioria é o campo de exploração, marcados e massacrados pela dívida, pela falta de investimentos, tecnologia e de cruel concentração de riqueza, o que gera conflitos sociais que minam, de forma concreta, qualquer possibilidade da sobrevivência da democracia enquanto ideologia, apesar dela ser propalada como ator principal do espetáculo político.

Tal influência, independente de ser mais ou menos nefasta para os sujeitos sociais, principalmente àqueles dos países dependentes, vem não só ameaçando o próprio Estado Democrático de Direito, como também está a induzir aos intelectuais, a busca por uma alternativa para essa crise que é, infelizmente, igualmente, uma crise do discurso, da linguagem, pois se pode constatar o esgotamento dos signos tradicionais e que em muito têm trazido fragilidades para a capacidade da circulação dos conceitos, através dos intelectuais orgânicos. No discurso que esses têm travado com os setores populares, a comunicação apresenta sérios ruídos que afastam desses mesmos setores da sociedade, os próprios valores democráticos que se quer apresentar como alternativa para a crise do social.

Por conseguinte, se numa esfera se busca utilizar a figura da democracia como um antídoto contra os efeitos da globalização, em outra esfera esse mesmo antídoto parece dar mostras de esgotamento, justificando o afastamento de amplos setores sociais do debate em torno da importância daquela. É, portanto, que ao se olhar essa quarta tradição, se pode sentir a emergência do paradoxo da democracia, e isso porque se a democracia é o antivírus para a crise atual, ao mesmo tempo, essa sociedade eqüitativa e solidária, transformada em estratégia do político, continua a afastar aqueles que não interessam a lógica dos grupos dominantes e que, ainda, parecem dar mostras de se apresentar como representantes daqueles que acabam por excluir. (6)

O estado democrático de direito e o estado democrático constitucional – o paradoxo da atualidade.

Introdução

O Direito Constitucional contemporâneo põe-se no turbilhão das mutações, oferece-se ao destino das transformações dos homens, desde que não se perca o seu centro e a sua razão maior: o valor homem e os valores dos homens, leal aos quais se persiste a buscá-los no traçado dos novos caminhos, seguindo-se as novas vertentes. (7)

Nesse capítulo se pretende abordar essa duas formas, ressaltando o esgotamento do chamado Estado Democrático de Direito, e a alternativa proposta como Estado Democrático Constitucional.

Em relação ao primeiro, os elementos que se pretende observar são os da soberania, cidadania e a tradicional forma da participação política, que acabou por se impor ao cenário político nos últimos 100 anos, qual seja, o voto, e os seus efeitos objetivos na metamorfose que fez emergir a figura do Estado Espetáculo.

Já em relação ao segundo tipo, se tentará uma abordagem através daqueles elementos que o formam, tais como a Constituição, em sua oposição a lei; os princípios constitucionais como valores que ampliam o espaço de atuação da Constituição, e o papel dos direitos fundamentais como instrumentos concretos para recuperar à democracia a sua capacidade privilegiada de incorporação da diferença, numa tentativa para reduzir o estranhamento de amplos setores do social em relação ao próprio discurso democrático.

Por fim, se pretende refletir quanto ao paradoxo da própria questão democrática, uma vez que apesar de se propor a ser uma resistência contra a tendência da fragmentação que atualmente agudiza a desigualdade social, em muitos sentidos ela própria é geradora dessa situação.

1. O Estado Democrático de Direito

O Estado Democrático de Direito tem sido aclamado como a grande resultante do processo político que teve reconhecido o seu momento inaugural com a queda do absolutismo, no já distante século XVIII. Em primeiro lugar, a figura da democracia, aqui, está posta como contraponto ao sistema político anterior. Ela é, assim, discurso de desconstrução do antigo espaço político e social. Poder do povo, sujeito fundamental da concretude do social, a democracia é resgatada pelo discurso político como o mais apropriado à associação com as pretensões liberais/burguesas.

Apesar do corolário da igualdade, imortalizado na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, o grupo dirigente se apressou em criar as condições para a manutenção da diferença e da exclusão. Os conceitos de mercado, capital, propriedade, voto e, infelizmente, da democracia, acabaram por seduzir os grupos sociais, mantendo-os, dessa forma, teimosamente voltados a olhar indefinidamente para o reflexo da imagem na caverna.

Um dos pilares para a sedução da diferença, e que veio ao encontro do discurso democrático, foi o amplo e flexível conceito de cidadania.

A cidadania, conseqüência dessa estratégia em legitimar a exclusão, permitiu aos grupos dirigentes, amenizar a percepção dos grupos dominados dos limites e equívocos da nova sociedade. Tal conceito teve mesmo a virtude de ao reforçar a idéia de que os cidadãos são aqueles que pertencem a uma mesma cultura e território, criarem a visão do outro, responsável, mesmo que oculto, pelas contradições de sua própria sociedade. Olhando o outro, se permitia um afastamento das questões nacionais, e dessa forma, servindo como válvula de escape às contradições internas, a democracia e a guerra estiveram enlaçadas durante boa parte do século XX.

Em sua jornada, a cidadania passou a exigir que alguns direitos fossem entregues aos setores mais pobres, e nesse sentido, ao longo do século XIX, acabou por sofrer a sua completa politização: a cidadania passou a ser percebida como característica do exercício do direito político, e para torná-lo palpável, tal direito político passou a ser entendido como a participação política no Estado, através do voto, do processo eletivo, etc.

Essa politização, desde o início paradoxal, pois já apresentava a justificativa para se aceitar todos aqueles que permaneceriam e permanecem afastados dessa participação cidadã, acabou por lançar a democracia para o universo do mercado, do capital. Quer dizer, se a cidadania passou a se definir como exercício político, e esse, por sua vez, passou a ser visto como meio para se alcançar o poder político, através do processo eletivo, as regras para organizar tal participação passaram a ser aquelas do universo econômico. Cidadania, voto, direito político, democracia, foram reduzidas a justificar os valores da competição, do individualismo, enfim, de uma nova exclusão, agora, mais camuflada.

Ao mesmo tempo, e paralelo ao desenrolar do conceito de cidadania, um outro conceito, o de soberania, resgatado da tradição medieval, mas agora, modernizado pelos teóricos do iluminismo, iniciava a sua aproximação com a democracia, sem que em tal processo de envolvimento se diminuíssem os efeitos nefastos das desigualdades sociais.

Esse conceito tinha como função explicar que o verdadeiro detentor do poder político vinha a ser o povo. Por óbvio, como não era possível a todos os membros da nação exercer, ao mesmo tempo, o papel dirigente do Estado, justificava-se a distinção entre governantes e governados pela tese de que se a direção do órgão estatal pertencia a uns poucos, o poder que lhes permitia tal exercício pertencia a todos, a tal ponto que eles só estavam no papel de membros efetivos do aparelho estatal, por autorização implícita de todos os membros da nação.

Também a soberania acabou sucumbindo às regras mercadológicas do mercado e do capital, e outra vez se criou uma fundamentação que, aceita por todos, preparou o consentimento para a exclusão. Na crítica que se estabeleceu a esses argumentos excludentes, mais uma vez, e igualmente, associada a cidadania, a idéia de nação e ao conceito de nacionalismo, a soberania veio a ser utilizada para construir a figura do outro, aquele que, não fazendo parte da mesma gênese do poder político nacional, do pacto social original, ameaçava a sobrevivência e a independência dos valores nacionais.

Mais uma vez, portanto, um elemento fundamental da democracia veio a ser reduzido como meio para se legitimar o poder político, e reiterando o discurso ideológico da igualdade do sistema democrático, criou-se um novo mecanismo para a exclusão.

Não é, desse modo, surpresa a crítica que se passou a lançar a democracia, vista não pelas suas virtudes de eqüidade e solidariedade, mas como mero sistema submetido aos interesses do capital. Nesse sentido, Schumpeter a percebe como um espaço político profundamente submetido à direção e as regras do universo de mercado. (8)

Mesmo que em se aceitando a crítica desse autor, não se pode deixar de reconhecer o fato de que muitos têm tentado dissociar essa nefasta relação entre a democracia e o universo do mercado. Não por acaso, através da aproximação da democracia com a Constituição, se tem buscado, através dos princípios formadores que cercam aquela, e que justificam a expansão dos direitos fundamentais, estender os campos da soberania, da cidadania, da solidariedade, enfim, da eqüidade, mesmo que para que isso se torne viável venha ser necessário transformar a própria percepção do Estado nacional.

2. O Estado Democrático Constitucional

A vida política é feita dessa oposição entre decisões políticas e jurídicas que favorecem os grupos dominantes e o apelo a determinada moral social que defende os interesses dos dominados ou minorias e é escutado porque contribui também para a interação social. Portanto, a democracia nunca será reduzida a procedimentos, nem tampouco a instituições; mas é a força social e política que se esforça por transformar o Estado de direito em um sentido que corresponda aos interesses dos dominados, enquanto o formalismo jurídico e político a utilizam em um sentido oposto, oligárquico, impedindo a via do poder político às demandas sociais que coloquem em perigo o poder dos grupos dirigentes. O que, ainda hoje, opõem um pensamento autoritário a um pensamento democrático é que o primeiro insiste sobre a formalidade das regras jurídicas, enquanto o outro procura descobrir, atrás das formalidades do direito e da linguagem do poder, escolhas e conflitos sociais. (9)

O desafio da democracia está colocado, hoje em dia, na (im)possibilidade de estender ou não a amplos setores sociais, concretas e possíveis condições de inclusão, através de uma revitalizada cidadania, de uma difícil soberania compartilhada, e de uma quase utópica eqüidade e solidariedade entre os sujeitos políticos.

E, não deve tal desafio, ficar restrito a determinados espaços nacionais, pois que a regionalização continental desse processo, em última instância só pode levar tal projeto a soçobrar frente aos espaços que por ventura, não forem por ele tocados.

Mas em que sentido é possível a construção dessa nova/velha democracia? Em primeiro lugar, é necessário abandonar a idéia que vigora de que a lei é, igualmente, procedimento, forma de um discurso que oferece a amplos setores da sociedade, um verdadeiro exercício da igualdade de participação.

Entretanto, como a lei é em síntese um discurso ideológico bastante formal, e que busca dar essa sensação de segurança jurídica, deve ser confrontada por um outro discurso ideológico que só encontra existência dentro do universo do dever-ser, isto é, a Constituição, que é lei, mas que deve ser sobreposta a toda e qualquer outra norma, de tal forma que o poder constituinte venha a se determinar ao poder constituído.

E o caminho para se ordenar esse conflito somente pode se dar através do uso elástico que se pode fazer dos princípios constitucionais, e dos sujeitos que o enunciam. Dessa forma, os princípios constitucionais, mais amplos que a própria lei, alcançam, hoje em dia, um caráter principalista, quer dizer, apresentam uma natureza de formação, de explicação, de interpretação e de supletação (entendido esse como a capacidade de suprir, completar aquilo que a própria lei não consegue fazer).

A partir dessa exigência para um novo papel da Constituição, através da capacidade dos seus princípios em alongar a sua influência sobre os limites da lei, a Carta Constitucional passa a exercer um caráter não apenas declarativo ou político, mas normativo. E em assim o fazendo, dá a democracia condições para se revigorar, já que através da Constituição, e da definição dos direitos fundamentais, como poder do indivíduo para limitar a ação estatal, o sujeito social pode reconstruir um discurso que, rompendo com as condições do campo econômico, reduza a exclusão e objetive o processo para validar a inclusão.

Nesse sentido, afirma Maria José Fariñas Dulce que: “El cambio de perspectiva, o si se quiere de paradigma jurídico, hacia lo que ya se viene denominado com cierta asiduidad como Estado constitucional de Derecho, há ocorrido paralelo a las transformaciones em la concepción de la soberania estatal y su fuente jurídica de máxima autoridad o jerarquía, que ha passado de ser la lei como producto del poder legislativo, a la Constitución como texto supremo que contiene los critérios básicos de ordenación política y los derechos fundamentales que se encuentran en la cúspide del sistema jurídico”. (10)

Por conseguinte, a democracia assenta a sua legitimidade, enquanto sistema político, na capacidade da Constituição em ampliar as possibilidades dela em diminuir os espaços da exclusão, seja econômica, racial, sexual, cultural, etc.

E, para que tal projeto não se choque em teorias regionalizantes ou comunitárias, que só buscam manter o discurso da democracia atrelada ao jogo político tradicional, é imperativo que a estratégia dessa redefinição político/jurídica se dê através de uma ofensiva global. E essa ofensiva, somente é possível através dos direitos fundamentais, inclusos nas constituições, e importantes para a teoria do constitucionalismo atual.

Os direitos fundamentais buscam redefinir uma nova visão do sujeito, resgatando o conceito da cidadania, pois que a entende não somente como direito a participar no jogo político pelo poder, através do voto do cidadão. Mas é a cidadania, enquanto influenciada por esses direitos, uma participação mais ampla, no próprio tecido social, regatando aqueles valores de primeira, segunda e terceira geração.

Nesse mesmo sentido, a soberania não pode se manter como baluarte de um discurso que cria o outro, adversário interno ou externo e que desvia a atenção para o fato de que o poder deve ser mais compartilhado, o que significa dizer que os espaços entre os blocos dirigentes e dos dirigidos devem diminuir, sensivelmente, para que num esforço conjunto entre uma nova soberania e cidadania, não se busque a imagem do Estado Nacional, mas de um novo Estado, organizado sob um novo controle, onde o poder monolítico e pouco afeito à dividir-se, se espalhe pelo corpo social, transformando-se numa verdadeira microfísica do poder democrático.

A democracia, calcada no constitucionalismo, base desse Estado, deve, assim, transformar a noção da cidadania, vista até agora como participação política, numa objetiva participação social, através do universo amplo dos direitos fundamentais.

Todavia, os desafios para a emergência desse Estado Democrático Constitucional, não são poucos. É preciso romper a visão fragmentada das comunidades, das disparidades culturas, do jogo econômico, da lógica do capital virtual e, fundamentalmente, redirecionar o processo da globalização não como estratégia de expansão do mercado, mas como extensão de condições para a presença da eqüidade e da solidariedade.

Restam, infelizmente, algumas questões que devam ser enfrentadas, para que se possa, objetivamente, afastar a matiz utópica dessa pretensão: como legitimar uma democracia em um espaço além do território nacional? E quem há de enunciar as bases epistemológicas desses direitos fundamentais? Finalmente, como romper o elo que atrela a democracia, os direitos fundamentais, a Constituição, aos interesses do capital?

Reside na (in)capacidade de se responder a esse conjunto de questões a emergência ou não do paradoxo democrático, pois que se é possível, no universo da filosofia, estabelecer as condições para a sobrevivência da democracia, é preciso enfrentar-se a dúvida de como construir esses elementos no universo concreto e cotidiano da sociedade, onde predomina o senso comum, e onde as pretensões, em muitos casos, se encerram simplesmente em ter ou não ter esgoto, luz, comida, etc.

Destarte, não se pode afastar a possibilidade de que a democracia, enquanto sistema político, sempre aceitou a presença do discurso da exclusão, pois enquanto discurso político, ela sempre foi um olhar sobre o campo social, a partir do jogo político que os grupos vêm travando. E como todo o olhar é sempre um olhar engajado, para que tal Estado Democrático Constitucional se firme, obrigatoriamente a velha ordem deverá submergir, e nesse processo, mais uma vez, uma nova safra de excluídos haverão de ser constituídos.

Conclusão

“(…) temos necessidade ao mesmo tempo de reanimar o pensamento crítico e a imaginação política. O pensamento crítico não é o verdadeiro sempre negativo sobre o presente, em benefício da nostalgia das soluções mitológicas do passado; a imaginação não é a edificação de um modelo de sociedade projetado sobre o futuro. O pensamento crítico comporta necessariamente uma parte autocrítica e conduz aos problemas de fundo. A imaginação tem por tarefa inventar um possível, mesmo se ele é hoje improvável. Os dois estão legados: a crítica chama a imaginação e a imaginação chama a crítica”. (11)

O Estado Democrático de Direito vive a crise, aprofundada pelos efeitos do processo da globalização, é um fato. Mas, tal crise não permite aos apocalípticos de plantão afirmar, igualmente, o fim do Estado, ou mesmo da democracia.

É sem sentido declarar a morte do Estado, pois esse é, ainda, o cenário privilegiado da política. Mesmo que não se negando que as exigências do efeito da transterritorialidade vem cobrando um alto custo na capacidade desse em exercer o controle do jogo político e dos sujeitos políticos, sua importância para o campo social sobrevive. Como estabelecer as condições para o exercício de uma regulamentação política é o desafio que se impõe a sua existência.

Já a democracia, única forma em que se acredita ser possível a enunciação da política, tem desafios mais robustos e que se não confrontados, podem decretar a transformação dessa ou mesmo o seu abandono por parte de amplos e extensos setores do campo social.

Isso, porque, não há de se falar em democracia sem a obrigatoriedade de uma política de inclusão que venha a ser mais eficiente do que uma política de exclusão. E, nesse escopo, a cidadania e a soberania são peças fundamentais para determinar a estratégia dessa para alcançar a desejada sobrevivência.

A cidadania, não mais amarrada e limitada ao universo da identidade com o nacional, com a nação, deve buscar, através da figura dos princípios constitucionais, abrir espaços para que o cenário de atuação dos indivíduos cresça em forma e substância, libertando-os de viver, apenas, na margem da participação política, através da disputa eleitoral pelo poder político, à margem de outros cenários de participação.

Se a perda do lugar tradicional do Estado, nesse momento de globalização, veio a colocar em cheque o próprio poder constitucional do agente político tradicional, pois, paulatinamente ele vai perdendo as condições para o exercício do controle da função política, é através dessa cidadania mais abrangente, e que convoca os indivíduos a uma maior participação, que será possível operacionalizar uma redefinição do controle, da regulamentação, enfim, da governança, pois, obrigando-se o campo social a atuar como produtor de políticas que atendam as suas próprias necessidades, o Estado, menos oprimido pela imperatividade de responder à sociedade, deverá recuperar melhores condições de funcionalidade e, assim, se preparar para as exigências dessa nova ordem global.

A soberania, por sua vez, confundindo-se com os direitos fundamentais, e somente nessa condição, pode passar a ter forças para reeducar e disciplinar a relação entre os sujeitos políticos, bem como ao próprio Estado, ainda nação, mas pouco nacional.

Essas exigências históricas, e que acabam por exigir uma ressignificação dos conceitos políticos, das relações sociedade/Estado, não tem, entretanto, potência para afastar da democracia uma das suas características intrínsecas: a da indeterminação.

A democracia é uma nebulosa, perceptível por diferentes sujeitos em diferentes espaços do social, o que lhe dá essa aparência maleável e insegura. Se, por um lado ela detém os sentidos de uma política que permita o desenvolvimento do processo de inclusão, por outro lado ela é um conceito ideológico, e nesse sentido, incapaz de permitir a entrada de todos no bloco histórico dirigente.

Dessa forma, é ela a opção possível para o espaço sócio-político dos países dependentes, de terceiro, quarto e quinto mundo?

Ao se fixar a atenção nessas nações, não por acaso a maioria das nações, se percebe que ali, as condições históricas que propiciaram a emergência da democracia não tiveram tempo de respeitar todas as fases fundantes, todas as etapas de maturação que, nos países de 1º mundo, foram cumpridas. E, em sendo assim, tal discurso em torno da democracia, pode representar aquelas mesmas nações dominantes, aqueles mesmos espaços dirigentes, pode ser, assim, antevista como um discurso novo na perspectiva da dominação. É, nesse sentido que se entende o paradoxo da democracia.

Por um lado, é a alternativa para se enfrentar a miséria, a exclusão de todos os tipos, a ameaça ao ambiente, o esgotamento das fontes de vida no planeta, e até mesmo a figura do atual terrorismo. Mas por outro lado, a democracia também é um rearranjo de estratégias que não tem por tradição, estender à totalidade das benesses a todos, mas apenas, buscar a pacificação da ordem, enfim, do mercado.

Possível alternativa para crise, mas, igualmente, uma possível estratégia de um novo domínio (neo)neocolonial, ainda mais perverso, pois que fundado no discurso do constitucionalismo e de seus elementos universais da figura do homem.

Nessa crise de significados, de discursos, definido está apenas a figura do paradoxo da democracia, que se impõe de forma banalizada entre os que a defendem e aqueles que não a entendem e que, por isso, não a podem praticar.

Notas
[1]Carlos Drummond de Andrade. “Nosso Tempo”.
2Discurso funerário de Péricles.
3É importante ressaltar que a concepção grega de cidadania é, na verdade, uma concepção bastante reduzida, pois ela parte da aceitação da exclusão para alcançar a sua definição. Dessa forma, a cidadania da pólis grega, que permitia o pleno exercício dos direitos da democracia, estavam, tradicionalmente, limitados a um pequeno grupo de habitantes da cidade-estado (pólis). Em Atenas, o caso mais citado como exemplo da democracia do mundo antigo, com exceção das mulheres, dos menores de idade do sexo masculino, filhos de pai e mãe ateniense, dos estrangeiros e dos escravos, apenas os homens maiores de idade, filhos de ascendentes jônicos, portanto 8 a 10% da população total da pólis é que existiam no espaço democrático, com plenos direitos políticos. E tal visão não é exceção, mas sim a regra dessa sociedade. Até mesmo entre os principais pensadores, como Sócrates e Platão, essa era a imagem que predominava. Não é por acaso que Platão, ao mesmo tempo em que denunciava os Sofistas, que pretendiam uma quebra da (i) moralidade desse sistema político, em seu grande escrito, A República, definiu uma sociedade ideal baseada em três verdadeiros estamentos: os filósofos, senhores, os militares, instrumentos para a proteção do sistema e, os agricultores, responsáveis em abastecer a sociedade, mas sem nenhum direito político. A opção pelo conceito de República, aqui, não deve permitir que se agregue a ela os significados da tradição romana, mas foi escolhida como forma política oposta a Tirania, que era um governo radicalmente popular, e a Oligarquia, forma degenerada da Aristocracia.
4O espaço da política é aqui entendido como distinto do campo político. A política é gênero, e o político, a espécie, portanto, englobado por aquela. A primeira se estende para além do espaço concreto do social, já que se confunde com a própria visão ideológica dos sujeitos. Ela acontece, assim, no espaço discursivo dos sujeitos, enquanto o segundo é eminentemente manifestado no espaço do público, já que representa a disputa pelo exercício do poder político, elemento da primeira. Igualmente fruto de discursos, aqui é o grupo, partido ou representante que enunciam os conceitos para os sujeitos, a tal ponto que mesmo que partindo do indivíduo e retornando a ele pelo espaço do público, é em um novo sentido, o que reafirma a influência do político sobre a política, até porque, na divisão do espaço público sobre o privado, apesar de vários fluxos em que um ou outro predominou, se assiste, hoje em dia, através da explosão dos espaços da mídia, uma reafirmação do público sobre o privado. É assim que Claude Lefort, em seu estudo A Democracia e a Teoria Política ratifica tal distinção, afirmando que “(…) a política se refere a estratégias manifestas e empíricas do sujeito, enquanto o político denota a matriz constitutiva, quase-transcendental da vida política, isto é, o espaço público que permite o mise-em scène (ou encenação) da política”.
5Durante o largo e rico período medieval, que se estende dos séculos V a XV, o poder político foi entendido como um preceito delegado pela figura de Deus a alguns homens, que por ventura, eram senhores das propriedades. Para se evitar a contestação, usou-se do discurso ideológico da Igreja Católica, que impôs uma visão platônica ao poder, quer dizer, predominantemente moralista, buscando, dessa forma, reduzir a incidência dos conflitos sociais. Em muito colaboraram as figuras do livre arbítrio, da santíssima trindade nesse período, para reduzir as revoltas campesinas. Entretanto, enquanto sociedade de transição, na crise da sociedade medieval, as jacqueries acabaram não por favorecer a gênese da soberania ascendente, mas a teoria contrária da soberania descendente, não de nobres feudais, mas dos reis, os melhores entre os nobres, e que na tradição da taumaturgia, eram ungidos por vontade divina. Somente no ocaso do absolutismo é que a Democracia vai recuperar espaço entre os setores burgueses/populares, e usada como instrumento de um discurso revolucionário, passar a construir uma nova concepção de sociedade e poder político.
6Essa é uma questão fundamental para se aceitar o paradoxo da Democracia: os mesmos que pretendem usá-la como instrumento para fazer frente aos elementos que justificam a fragmentação e a exclusão do grupo social, ainda detêm condições para se apresentarem como porta-vozes dos sujeitos sociais, excluídos ou não. E o poder de ser porta-voz, usando e abusando do conceito político da democracia, acaba por esterilizar qualquer possibilidade dela se apresentar como um discurso verdadeiramente englobante. Pierre Bourdieu, em seu livro Coisas Ditas, reflete sobre a questão vital da figura do porta-voz nas sociedades atuais: “(…) como o porta-voz se vê investido do pleno poder de agir e falar em nome do grupo que ele produz pela magia do slogan, da palavra de ordem, da ordem e por sua simples existência enquanto encarnação do grupo? A exemplo do rei nas sociedades arcaicas, Rex, que, segundo Benveniste, é encarregado de regere fines e regere sacra, de traçar e dizer as fronteiras entre os grupos e, por essa via, de fazê-los existir enquanto tal, o dirigente de um sindicato ou de um partido, o funcionário ou o expert investidos de uma autoridade estatal são igualmente personificações de uma ficção social a que eles dão existência, na e por sua própria existência, e da qual recebem de volta seu próprio poder. O porta-voz é substituto do grupo que existe somente através dessa delegação e que, age e fala através dele. Ele é o grupo feito homem”.  É, assim, que a democracia se vê na obrigação, por um lado, de buscar um distanciamento do universo político, ainda que tal tentativa possa, desde já, correr o risco de ser vã, ao mesmo tempo em que, por outro lado, refugiando-se na aliança com a Constituição (espaço elementar dos princípios constitucionais, de grande força englobante, bem como na teoria dos direitos fundamentais, único espaço capaz de construir um discurso verdadeiro e com força para pôr fim ao exercício da exclusão), ela busque eleger um outro emissor, mais legitimado para recuperar todos os que iludidos, desinteressados, decepcionados, ajudem a reorganizar o fio condutor de um novo campo do político, menos predisposto ao jogo tradicional do mercado e do seu sujeito, o capital, e que só teve como fim, alcançar a plenitude do poder. Nessa aliança com o discurso jurídico-politizado, será fundamental a construção, igualmente, de novos centros de controle, sem o quê, qualquer discurso em torno da revitalização da democracia corre o risco de ser vazio em sua razão de ser.
7Cármen Lúcia Antunes Rocha. O constitucionalismo contemporâneo e a instrumentalização para a eficácia dos direitos fundamentais. pág. 10, texto disponível na Internet.
8Schumpeter explica o funcionamento do jogo democrático como sendo o do próprio mercado competitivo: a democracia representativa é um procedimento para a seleção e troca das elites governantes que competem pelo voto de maneira análoga àquela dos produtores que buscam o controle e competem pelo mercado, de maneira a oferecer ou vender seus programas políticos como se fossem meras mercadorias. Portanto, os partidos competem entre eles, enquanto consumidores do produto, e os eleitores, como consumidores passivos, elegem entre as opções as melhores que lhes são apresentadas. A luta política é apresentada, assim, como uma livre competência entre líderes para conseguir os votos do eleitorado, competência essa que está diretamente envolvida com a capacidade dos partidos em estabelecer um melhor discurso, ou, como já se disse, espetáculo. Essa versão tecnocrática da democracia põe de manifesto muitas características reconhecíveis nas modernas democracias ocidentais, como a luta profundamente competitiva pelo poder político entre os partidos políticos, e o importante papel das burocracias públicas. Igualmente, destaca o sentido da liderança política, a relação entre a política moderna e as técnicas publicitárias, da legitimação da exclusão de amplos setores sociais, etc.
9 Alain Touraine, O que é a Democracia? pág. 37, Editora Vozes, Petrópolis, 2ª Edição, 1996.
10Maria José Fariñas Dulce, ciudadanía universal versus ciudadanía fragmentada, in: El vínculo Social: Ciudadanía y Cosmopolistismo. pág. 183, Turant lo Bllanch, Valência, 2002.
11. Egar Morin, in Javier de Lucas, pág.86.
Bibliografia
BENTHAM, J. Fragmento Sobre El Gobierno. Madri: Aguilar Ediciones, 1973.
1.      BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990.
2.      CHOMSKY, Noam. A minoria Próspera e a Multidão Inquieta. 2 ed.  Brasília: UnB, 1999.
3.      DAHL, Robert A . Sobre a Democracia. Brasília: UnB, 2001.
4.      EISENBERG, José. A Democracia depois do Liberalismo. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
5.      FLÓREZ, Fernando Carrillo. El Constitucionalismo para la democracia. www.bibliotecadocongressoamericana.com. Texto de 1997.
6.      GÓMEZ, José María. Política e Democracia em Tempos de Globalização. Petrópolis: Vozes, 2000.
7.      GUÉHENNO, Jean-Marie. O Fim da Democracia. 2 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
8.      HELD, David. La Democracia y el orden global. Buenos Aires: Paidós, 1997.
9.      LUCAS, Javier de (y otros). El vínculo social: ciudadanía y cosmopolitismo. Valência: Tirant lo Blanch, 2002.
10. SOUZA, Jessé (organizador). Democracia Hoje. Novos Desafios para a teoria democrática contemporânea. Brasília: UnB, 2001.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Antonio Marcelo Pacheco

 

Advogado criminalista do Escritório Amadeu Weinmann. Professor de Direito Penal e Processo Penal de cursos preparatórios para concursos públicos e seleção para OAB, mestrando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, licenciatura e bacharelado em História e Filosofia, especialista em Ciência Política pela UFRGS.
Cidade de domicílio do autor: Porto Alegre/RS.

 


 

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