Resumo: Não há dignidade para a pessoa humana se privada do direito de defesa, mormente nas lides perante o Poder Judiciário. O princípio da dignidade da pessoa humana é hierarquicamente superior no sistema jurídico. Esse sistema dá ao Poder Judiciário competência precípua de guardar a Constituição e organizar seus órgãos. Dentre eles, estão as varas da infância e da juventude na sede civil de forma que os juízes que ali atuem cumpram a finalidade do Poder Judiciário: a jurisdição e a competência no bojo do devido processo legal. O sistema de justiça criminal, nas varas da infância e da juventude, está organizado para assegurar os direitos e as garantias constitucionais e legais ao adolescente autor de ato infracional. Porém, o mesmo sistema de justiça, na área dos direitos civis, nas varas da infância e da juventude carece dessa organização, resultando dessa omissão lesão ao direito fundamental à convivência familiar e comunitária.
Proposições: Que o Poder Judiciário guarde a Constituição, fundado no princípio maior – a dignidade da pessoa humana – e organize as varas da infância e da juventude na sede civil, destinadas à apuração da ameaça ou lesão de direitos fundamentais, civis, dos sujeitos criança e adolescente. Deve ainda o Poder Judiciário observar as normas do devido processo legal, e adotar como processo único na sede civil dessas varas o processo de destituição ou suspensão do poder familiar previsto nos artigos 155 a 163 da Lei no 8.069/90, e, em seu bojo, apreciar e decidir todos os direitos fundamentais da criança e do adolescente.
Sumário: Introdução. 1 Aspectos legais da história do menor no Brasil. 2 Criança e adolescente: matéria constitucional. 3 Proteção integral: paradigma do Direito pós-moderno. 4 Capacidade e legitimidade processual especial do sujeito em abandono familiar. 5 O devido processo legal nas varas da infância e da juventude. 6 A proteção jurídico-social e o advogado da criança e do adolescente. Conclusão
Introdução
Este trabalho tem como meta contextualizar o direito da criança e do adolescente à cidadania e à dignidade da pessoa humana. à luz dos princípios fundamentais do Estado Democrático de Direito.Tem ainda como objetivo demonstrar que o princípio da igualdade, inscrito no capítulo DOS DIREITOS E DAS GARANTIAS FUNDAMENTAIS, proíbe a distinção de qualquer natureza, mormente quando se trata de ameaça e de inviolabilidade dos direitos na apreciação do Poder Judiciário. Tem por finalidade propor a restauração do direito da criança e do adolescente violados primeiro pela família nas situações de abandono e abuso físico e/ou psicológico, e pelo juiz da VARA DA INFÂNCIA E DA JUVENTUDE, quando o coloca em medida de abrigo sem o devido processo legal, sem defesa técnica própria, permanecendo aquele sujeito indefinidamente privado do direito à convivência familiar e comunitária,
A Carta Maior de 1988, cabeça do sistema jurídico, organizou o Estado democrático explicitando um feixe de princípios que apóiam o equilíbrio do sistema sem superposição de um sobre outro, no tradicional sistema de freios e contrapesos. Alcança aos cidadãos as formas legais de segurança nas relações entre as instituições governamentais e as pessoas adultas, e a criança e o adolescente.
Disse o legislador constituinte que a oferta dos direitos fundamentais específicos da criança e do adolescente devido às suas condições de pessoas em desenvolvimento, arrolados na regra do artigo 227 e suas normas formativas da Carta Federal, são da responsabilidade da família, da sociedade e do Estado. É necessário compreender que as ações promovidas pelos responsáveis serão de forma integrada, oportunizando o acesso a todos, principalmente aquelas ações que tenham como meta assegurar o direito à convivência familiar e comunitária, mormente, por esse direito uma das finalidades da Lei no 8.069/90.
Destacaremos as diferenças entre o paradigma tradicional assistencialista e repressor do menor objeto do Estado-juiz revogado e o atual do direito pós-moderno, que vê a criança e o adolescente como pessoa integral, em desenvolvimento, e, por isso, credora da proteção integral em prioridade absoluta.
O desenvolvimento desta tese engloba um sumário com seis tópicos, sendo: 1 Aspectos legais da história do menor no Brasil, desde o tempo do direito imperial até o direito pós-moderno da Constituição Federal; 2 Criança e adolescente: matéria constitucional, no qual serão analisadas as necessárias modificações teóricas e práticas daí decorrentes; 3 Proteção integral: paradigma do Direito pós-moderno, no qual observaremos as diferenças conceituais de um menor olhado facetado e a criança e o adolescente visto como uma pessoa integral; 4 Capacidade e legitimidade processual especial do sujeito em abandono familiar, nele se demonstrará que a regra geral do Código Civil e do Processo Civil nesse tópico foi derrogada pela Lei Especial, porque esta se dirige a um sujeito em situação de vulnerabilidade familiar; 5. O devido processo legal nas varas da infância e da juventude, no qual se discutirá a igualdade dos direitos e das garantias constitucionais asseguradas a todos e o tratamento diferenciado dado pelo Poder Judiciário na área criminal e na área civil nas varas da infância e da juventude; 6 A proteção jurídico-social e o advogado da criança e do adolescente, no qual discutiremos a indispensabilidade de a criança e de o adolescente disporem de um advogado próprio à defesa judicial de seus direitos.
1 Aspectos legais e sociais da história do menor no Brasil
Desde o Código Penal do Império, qualquer ato praticado pela infância pobre, diferente do recomendado como certo pela autoridade e pela sociedade, era considerado reprovável, sendo “problema social, caso da polícia”. O menor com essa conduta, criança-problema, era recolhido em prisões estatais, longe dos olhos da sociedade, para, assim, livrar esta de seus atos e de suas presenças. Assim, o atendimento desses menores, nasceu sob o signo da mentalidade correcional-repressiva.
Melhor sorte não tinha a criança oriunda de gravidez indesejada e vergonhosa, resultado de relações de nobres senhores casados com escravas, índias ou ainda com “moças de família” que rejeitavam a criança e em segredo a escondia na “roda de expostos” à espera da benemerência de pessoa caridosa que o perfilhasse, conforme diz O século perdido de Irene Rizzini. (1)
Evoluíram a lei e os costumes e, no ano de 1927, o Decreto no 17.943-A, o chamado Código Mello Mattos, definiu que o Estado, através do Poder Judiciário, seria o responsável por administrar a vida do menor pobre, delinqüente e o abandonado, que passou a ser considerado menor objeto do Estado-Juiz, no dizer de Antônio Fernando do Amaral e Silva (2)
Não foi muito diferente o conteúdo da Lei no 6.697, de 1979, o Código de Menores. Este diploma legal adotou a doutrina da situação irregular para abarcar o menor pobre e deu continuidade à prática do assistencialismo, da repressão, da punição pela privação da liberdade, tendo como diretriz e método reformar o caráter do menor autor de atos anti-sociais e encaminhar o abandonado aos cuidados de terceiros.
Na adoção, havia clara preferência por casais estrangeiros, de posses materiais notórias, que se responsabilizariam em sustentar materialmente a infância pobre do Brasil, longe dos brasileiros e dos pais omissos e irresponsáveis. Historicamente, coube primeiro à Igreja, seguida pelas Santas Casas de Misericórdia, irmandades, congregações e confrarias, as obras de benemerência, que durante quatro séculos o Brasil responsabilizou para enfrentar a chamada questão do menor, conforme Antônio Carlos Gomes da Costa. (3)
No paradigma da situação irregular, doutrina adotada pelo Código de Menores, o governo, paralelamente a esse atendimento tradicional e benemerente, estatuiu a Política Nacional do Bem-Estar do Menor. Foram criadas a FUNABEM Federal, para emitir normas do Governo Central, e as FEBEMs, estaduais, órgãos executores das ações determinadas pelo sistema central federal.
Esse período marrom da legislação, da cultura e do costume brasileiro em desrespeitar a sua infância começou a mudar quando o Estado brasileiro participou de encontros internacionais patrocinados pelas Nações Unidas, que emitiram Declarações e sugestões aos países-membros. Neles, se alertava para a necessidade de voltar um novo olhar à criança e ao jovem como um ser no mundo integrante da sociedade.
2 A criança e o adolescente: matéria constitucional
O último regime ditatorial no Brasil que iniciou nos anos 60 se prolongou até a década de 80, quando iniciou a transição para a democracia, permitindo à sociedade não só desejar, mas se engajar na luta por mudanças legislativas que, além de assegurar direitos e garantias para todos e votasse um novo paradigma jurídico e social em cujo centro estivesse a dignidade da pessoa humana, modificasse o sistema de relações entre o Estado e as pessoas e entre as pessoas em geral, incluindo a criança e o adolescente como pessoa em peculiar condição de desenvolvimento e sujeito integral.
O momento de abertura política soprou ventos democráticos no Brasil, abrindo espaço à participação popular para encaminhar aos constituintes uma emenda incluindo a criança e o adolescente, a fim de abolir a denominação de menor – expressão aceita no Brasil como sinônimo de patologia, abandono, delinqüência e mazelas praticadas às crianças das classes mais abastadas, no dizer de Edson Seda. (4)
Após muitas tratativas, foi finalmente ouvida a sociedade pelo legislador constituinte, o qual introduziu a criança e o adolescente como matéria constitucional, assim reconhecida por constitucionalistas como José Afonso da Silva. Ele esclarece que qualquer tema que o constituinte julgar ser relevante e incluir na Constituição, passa a ser qualificado de constitucional, pouco importando seu conteúdo. (5)
O poder constituinte é inconfundível com o Poder Legislativo comum, e as normas constitucionais emitem comandos inovadores in casu atribuiu nome próprio de criança e de adolescente ao coletivo, população de zero a 18 anos, revogando a expressão menor. Alçou-os à categoria de sujeitos de direitos individuais e coletivos, lhes assegurou as garantias constitucionais e enumerou os direitos fundamentais específicos à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, na norma do artigo 227 da Constituição Federal e suas regras formativas. (6)
Todas essas definições fazem parte da norma jurídica constitucional e, por isso, na sua essência, contém coação e coerção, e compete à justiça produzir a igualdade nas relações humanas, assegurar efetivamente o devido a cada um no dizer de Maria Helena Diniz. (7) Assim, a supremacia da norma constitucional determina que o tratamento das questões envolvendo os direitos e as garantias constitucionais da criança e do adolescente sejam aplicadas com a grandeza que elas representam no mundo jurídico.
Já o disciplinamento dos direitos e das garantias constitucionais e processuais, os institutos judiciais pertinentes à sua situação especial de cidadãos em desenvolvimento, a previsão das políticas públicas em nível administrativo tiveram continuidade com o trabalho realizado, pela sociedade, junto aos legisladores federais na defesa da aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente que recebeu o número 8.069/90.
Esta é uma lei especial, um microssistema jurídico de Direito público, votada para a efetivação dos direitos da criança e do adolescente e não para beneficiar os interesses dos adultos. Contém não só o direito material, mas também as regras processuais do devido processo legal especial destinado a regular e implementar modificações nas relações entre os sujeitos envolvidos por laços multiformes.
A proteção integral, apontada no artigo primeiro da Lei no 8.069/90 indica o paradigma jurídico que regerá a defesa, a proteção e o atendimento dos direitos e das necessidades dos novos sujeitos.
O conceito-conteúdo desse paradigma espelha, desde o início, a indispensabilidade da integração de profissionais de diversos saberes para, de forma ágil, especializada, despida de prepotência e com humildade, reconhecer e aceitar a visão crítica do outro e as opiniões nem sempre convergentes, empreendendo ações conjuntas para levar adiante a consolidação dos direitos fundamentais. Dá-se destaque para o direito à convivência familiar e comunitária, condição essencial à efetivação do princípio constitucional da dignidade humana.
3 Proteção integral: paradigma do direito pós-moderno
O microssistema jurídico de direito público, a Lei no 8.069/90, é amplamente inovador e não se limita a genéricas declarações de direitos, mas detalha mecanismos de eficácia das normas estatuídas à contextualização do ser nominado de criança e adolescente, pela Lei Maior, ao se referir a um estado humano caracterizado por peculiares condições de desenvolvimento e que deve ser respeitado ontologicamente no dizer de André Eduardo Prediger. (8)
Importa destacar que o paradigma constitucional: o da proteção integral, em prioridade absoluta, dirigido aos sujeitos de direitos, criança e adolescente, coloca na mão do cidadão comum, do povo, considerado individualmente legítimo interessado, mecanismos legais não só para criar os serviços necessários a um desenvolvimento sadio em condições de liberdade e de dignidade. Ele investe também na criação de um comprometimento da sociedade como um todo com o ideal de proteção à infância.
Nesse sentido, a sociedade se insere como ingrediente indispensável à concretização dos direitos fundamentais. Sabe-se hoje que a tomada de decisões coletivas, quanto às propostas de fortalecimento da sociedade civil, da cidadania e de melhoria da qualidade de vida passam, necessariamente, pelo desenvolvimento da participação social – a fórmula necessária a dar efetividade ao paradigma jurídico e social em vigor há 17 anos.
Aliás, peca o Estado pós-moderno pela ausência de legitimidade em suas decisões. Isso se deve à falta de representatividade da vontade popular no poder, vez que não é chamada para discussão e participação notadamente no que diz respeito à extensa gama de direitos fundamentais a ser manejado pela criança e pelo adolescente, na consolidação da sua cidadania emancipatória.
Ainda no sentido da afirmação da cidadania emancipatória da criança e do adolescente, basta de omissão governamental e de inércia social, chega de aceitar a realidade como se fosse algo imutável como se a transformação dependesse somente do agir estatal. Após a Carta Federal, o comando legal é de integração entre a família, a sociedade e o poder público à promoção de direitos, alertando para os direitos da população conhecê-los para poder acessa-los, como também à utilização dos meios e os órgãos e entidades colocados à sua disposição para tanto. A constante luta por direitos da cidadania fará com que os direitos fundamentais ocupem a centralidade programática no movimento em favor criança e do adolescente brasileiro.
Mudanças teórico-praticas importantes ainda não aconteceram, embora já passados 17 anos da Constituição Federal que mudou o paradigma do menor objeto do Estado-juiz para o de criança e adolescente, sujeito com direitos e garantias. Vale lembrar que uma dessas garantias se refere à apuração da ameaça ou lesão de direitos fundamentais na área dos direitos civis nas varas da infância e da juventude que continua sendo, através de procedimentos administrativos, iniciada por ato de vontade do Estado-juiz, quando o sujeito, à semelhança do menor na época do Código de Menores, revogado, não tem defesa patrocinada por advogado próprio.
A proteção integral mantém vínculos estreitos com a dignidade humana: aquela qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos, diz Júlio Bernardo do Carmo, Juiz Vice-Presidente do TRT da 3a Região.
Assim, a proteção integral se define pela concretude de uma vida digna de quantos existam e pertençam a uma determinada sociedade, é o ser no mundo, a viver essencialmente relacionado com o referido ambiente e com o sistema jurídico que o rege. Nele o fim da justiça é coordenar as atividades e os esforços diversificados dos membros da comunidade e distribuir direitos, poderes e deveres entre eles, de modo a satisfazer as razoáveis necessidades e aspirações dos indivíduos e, ao mesmo tempo, promover o máximo de esforço produtivo e coesão social.
4 Capacidade e legitimidade processual especial do sujeito em abandono familiar
Ao se falar em capacidade da criança e do adolescente em situação de abandono familiar para estar em juízo nas varas da infância e da juventude sede civil, adotamos, como fundamento constitucional, o princípio da dignidade humana e, como fundamento legal, a regra do artigo 206 da Lei no 8.069/90.
A criança e o adolescente em abandono ou violência familiar busca a realização de seus direitos fundamentais específicos contidos na regra do artigo 227 e suas normas formativas, repetidos no artigo 4o da Lei no 8.069/90. É uma capacidade especial prevista na lei especial do sujeito apontado no artigo 98, I e II, dessa Lei.
Não se assemelha à capacidade geral prevista no Código Civil, na qual se define pela integração de alguns requisitos, tais como: se a pessoa pode adquirir direitos ou contrair obrigações por conta própria, se pode ou não celebrar contratos, emitindo validamente sua vontade sem a necessidade de representação ou assistência legal. A capacidade que se pleiteia reconhecimento para a criança e o adolescente em abandono familiar e social é o da dignidade humana, da cidadania emancipatória, do protagonismo como sujeito de direitos civis e participe da construção de sua história pessoal e comunitária.
Aliás, a Lei Especial no 8.069/90, de acordo com a Lei de Introdução ao Código Civil, modificou expressamente ou insitamente a disposição do Código Civil sobre a representação ou assistência legal para a população do artigo 98, I e II, em situação de abandono, cujas lides devem tramitar nas varas da infância e da juventude da área civil. Ao sujeito nessas situações, não cabe nomear-lhe curador como manda o artigo 90 do Código Civil, subsidiário da Lei Especial, nem tampouco o curador previsto no artigo 148, VII, f, dessa mesma Lei, porque o sujeito de direitos criança e adolescente tem direito a um advogado próprio que o represente e assista processualmente quando necessitar, e não de um curador para acompanhá-lo em alguns casos em que o juiz entenda necessário.
O sistema jurídico brasileiro garantista está fixado nos pilares fundamentais da República Federativa do Brasil, que tem na cidadania e na dignidade da pessoa humana os objetivos de construir uma sociedade livre justa e solidária, de acordo com o expresso no artigo 1o, incisos II e III, e artigo 3o, inciso I.
Dentre os direitos e as garantias da criança e do adolescente, aponta a igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza – direito fundamental e que a assegura à apreciação pelo Poder Judiciário, artigo 5o, inciso XXXV, as situações de ameaça ou violação de seus direitos no bojo de um processo judicialiforme, no qual se decidirá sobre os seus direitos fundamentais.
Assim, a capacidade e a legitimidade processual dos sujeitos descritos no artigo 98, I e II, da Lei no 8.069/90 em situação de abandono, negligência, abuso, físico, moral, psíquico, muitas vezes praticado pela própria família, devem de ser vistas pela ótica da Lei Especial do microssistema da Lei no 8.069/90, voltado comumente, a restaurar lesões traumáticas na área física e psicológica, diferentemente da norma geral do Código Civil que se destina a proteger direitos na família em lide.
O legislador federal não colocou na Lei Especial o artigo 206 para apenas ocupar um espaço, mas para suprir a ausência de um representante legal do menino e da menina que faz da rua sua moradia, do antigo menor da roda de expostos, que hoje rejeitado pela mãe e negado pelo pai, permanecendo esquecido em abrigos desde o seu nascimento, privado de seu direito à convivência familiar e comunitária. Quantos dentre os abandonados, explorados ou violados desejam saber quem são seus pais, através da investigação de sua filiação, direito imprescritível previsto no artigo 27 da Lei Especial, e que ,sem seus genitores para representá-los, ficarão privados de exercer esse direito, e a realização do moderno exame de DNA, para saber se um homem ou uma mulher apresentado à criança e ao adolescente são mesmos seus genitores.
Nesses casos, conforme os direitos e as garantias constitucionais, um advogado, artigo 133 da Carta, indispensável à administração da justiça ou o advogado previsto no artigo 87, V, deve prestar proteção jurídico-social por entidade de defesa dos direitos da criança e do adolescente, e o advogado dito no artigo 206 da Lei Especial deverá representar e assistir o sujeito integrando com ele o pólo ativo da relação processual. (9)
Nesse aspecto, não há conflito com as atribuições da Defensoria Pública previstas no artigo 134 da Carta, e sim representa uma integração entre os serviços prestados aos sujeitos por uma entidade pública e uma ONG. A proteção integral tem muitas facetas e exige integração e respeito para com os sujeitos criança e adolescente.
5 O devido processo legal nas varas da infância e da juventude
Impõe-se debater, entender, refletir e tomar decisões sobre as diferenças teóricas e práticas do paradigma: situação irregular do menor e sua família permeada por diretrizes assistencialista, autoritária e repressiva contidas no Código de Menores de 1979. Também é relevante a diretriz do paradigma do Direito pós-moderno: a proteção integral aos sujeitos com direitos e garantias constitucionais. Cabe destacar que a comparação mostrará a necessidade de revisar inúmeras convicções e certezas adquiridas ao longo da história da criança e do adolescente no Brasil.
No diploma legal, o Código de Menores revogado implicitamente pela Nova Carta e expressamente pela Lei Especial no 8.069/90, o Poder Judiciário representando o Estado-juiz, agia na forma da jurisdição voluntária ancorado em discursos do “sistema tutelar” e de “justiça protetora” para dirimir os conflitos com o menor em situação irregular, ou seja, abandonado pelos pais e pelo Estado, em procedimentos de cunho administrativo.
O advogado para exercer a defesa do menor era vedado. O promotor de justiça, por outro lado, apenas opinava acerca do que era melhor para o investigado, mesmo que o melhor fosse colocá-lo em privação da liberdade. Era, então, o menor objeto do Estado-juiz. A responsabilidade de seu atendimento e a recuperação do seu caráter eram da responsabilidade do Estado-executivo, a quem cabia organizá-los e suprir suas carências até a idade de 18 anos.
Nessa época, a sociedade não estava incluída na lei entre os responsáveis pelos problemas sociais de abandono, negligência e maus tratos os quais eram submetidos os menores pobres sabidamente e culturalmente responsabilidade do Governo.
Diferente é o sistema jurídico encabeçado pela Constituição Federal de 1988 com regras e princípios e baseado em um princípio-matriz, a dignidade humana, do qual emerge todo o ordenamento constitucional e via hierárquica, todo o ordenamento jurídico brasileiro.
Desde as Declarações de Direitos do século XVIII, a manutenção da vida digna a todos quantos existam e pertençam a uma determinada sociedade está atrelada às ofertas dos direitos fundamentais com acesso às políticas públicas condizentes. Nesse mister, constata-se que a Carta Federal colocou os direitos fundamentais dispersos por todo o texto, reconhecendo, porém, o legislador que a criança e o adolescente são pessoas em peculiar estado de desenvolvimento físico, mental, moral, social e espiritual e , portanto, merecem atenção especial. Assim, foram conferidos a ela direitos específicos com status de direito fundamental, com todas conseqüências e efeitos que derivam desta especialíssima espécie de direitos.
Mas a essa previsão de direitos fundamentais em nível constitucional, não basta para modificar a realidade, diminuir o fosso entre o ideal e o real. É necessário concretizar o conteúdo da lei, definindo a quem compete a tarefa de zelar pelo efetivo respeito aos ditames legais e pela implementação no mundo dos fatos do conteúdo dos direitos.
Certamente, a primeira figura nessa rede de responsabilidades é o Estado, através do Poder Legislativo, Poder Executivo, Poder Judiciário e os seus órgãos constituídos. Em termos de competência para conhecer e julgar os conflitos de interesses ameaça e lesão de direitos, merece destaque nesta tese o Estado-juiz.
Ao Poder Judiciário, guardião da Constituição, cabe rever a forma de jurisdição voluntária que adotava para intervir na solução dos conflitos do menor abandonado, negligenciado, mal tratado e substituir essa modalidade para a do devido processo legal. E isso porque, com a vigência da Constituição de 1988, que tratou da criança e do adolescente como tema constitucional e status de direitos fundamentais, revogando a denominação de menor, tornando-o credor da proteção integral, elevando-os a categoria de sujeitos de direitos iguais aos demais cidadãos a forma de apreciar e dirimir os conflitos, deverá ser a forma que a Lei Maior determina no Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais, Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos, qual seja o devido processo legal, escrito no artigo 5o, inciso LVI.
Conforme afirmam os incisos XXXV e LIV, ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal. E mais: aos litigantes em processo judicial ou administrativo, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com todos os meios e recursos a ela inerentes, inciso LV. Ora, se a todos os sujeitos foi assegurado direito fundamental de buscar no Poder JJudiciário a apreciação de lesão ou ameaça a direito próprio, é meridiano que, pelo princípio básico da hermenêutica, a criança e adolescente, sujeito de direitos, não podem estar excluídos desse contexto constitucional. Conhecido é o brocardo pelo qual se entende que, quando a Lei Maior torna os cidadãos iguais, ao intérprete é vedado tratá-los desiguais.(10)
Com base nos princípios constitucionais analisados, e forte no princípio hierarquicamente superior, a dignidade humana, se impõe ao Poder Judiciário, guardião precípuo da Constituição, a organização de seus serviços judiciais na sede civil das varas da infância e da juventude na área dos direitos civis, obedecendo à determinação constitucional, para que todos procedimentos tramitando de forma administrativa adotem a forma judicialiforme, restaurando os direitos fundamentais dos sujeitos, criança e adolescente, já tramitando e resguardando o mesmo direito dos que ali chegarão.
Há de ser considerado pelo Poder Judiciário tornar o procedimento de destituição ou suspensão do poder familiar previsto nos artigos 155 a 163 da Lei no 8.069/90 um processo único nos moldes do devido processo legal na sede civil das varas da infância e da juventude, no bojo do qual serão apreciados e julgados todos pedidos solicitados e trazer o mundo dos fatos para o mundo do direito, garantindo ao sujeito ameaçado ou lesado a segurança do efetivo reconhecimento da sua igualdade perante a lei em condições de dignidade e liberdade.
Imprescindível é entender que não se poderá falar em Estado Democrático de Direito que tem o princípio da dignidade humana como centro do sistema jurídico se a criança e o adolescente ainda forem tratados como objeto do Estado-juiz e não sujeitos de direitos fundamentais e civis representados e assistidos por advogado especialista em processo judicialiforme, especial previsto na Lei no 8.069/90.
Ao Ministério Público, reservaram a Constituição e a Lei infraconstitucional um agir no processo especial na sede civil das varas da infância e da juventude igual ao exercido nas varas da infância e da juventude na área criminal.
O papel do promotor não é mais o de opinar o que era o melhor para o menor, como fazia nos procedimentos administrativos da doutrina do Código de Menores. Sua posição hoje é zelar pelo efetivo respeito aos direitos e garantias constitucionais e legais asseguradas à criança e ao adolescente, artigo 201, VIII. Essa atuação do Ministério Público está presente na sede criminal das varas da infância e da juventude. Porém, na sede civil, o Ministério Público não desempenha o papel de fiscal, até porque, passados 17 anos de vigência constitucional e 16 anos da Lei, ainda não reivindicou a mudança de procedimentos administrativos para a do devido processo legal na sede civil das varas da infância e da juventude. Tanto é assim que o Ministério Público repete sua posição de opinar nos procedimentos administrativos do Estado-juiz, apenas sobre o que é melhor para a criança e para o adolescente, mesmo que seja permanecer em entidades de abrigo até completar 18 anos, abdicando da sua nobre função de instituição permanente, essencial à função jurisdicional, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, artigo 127 da CF.
É preocupante verificar a desigualdade com que é tratado o adolescente que pratica ato infracional, que tem na sede criminal o devido processo legal, o contraditório, presente o promotor no papel de fiscal da lei, a ampla defesa por advogados, defensores públicos, observadas todas as garantias processuais e recursos legais. E qualquer que seja a gravidade do delito por ele praticado permanece privado da liberdade pelo prazo máximo de três anos, enquanto que a criança e o adolescente já punidos pelo abandono da família, da sociedade e do Estado, são punidos diretamente pelo Estado-juiz com a privação da liberdade e convivência familiar e comunitária, desde o nascimento e em geral até os 18 anos.
Decorrente de seus direitos não serem discutidos no bojo do devido processo legal, a criança e o adolescente não têm advogado próprio e presente processualmente para defender os seus direitos e interpor recurso das decisões ali tomadas. Também não têm a figura do Ministério Público como órgão fiscalizador para exigir que se cumpram as garantias constitucionais e processuais, na forma do artigo 202 da Lei no 8.069/90, que nos processos em que não for parte, atuará obrigatoriamente o Ministério Público na defesa dos direitos e interesses de que cuida esta Lei.
Toda a mudança se estabelece na medida em que se aplica a definição das atribuições de cada órgão, instituição e entidade na diretriz de integração e na linha de ação entre o poder público e a sociedade.
Assim, se aos conselhos de direitos cabe formular as políticas em níveis federal, estadual e municipal, compete a estes chamar as entidades governamentais e não-governamentais, à execução dessas políticas. Ao Poder Judiciário, cabe conhecer e julgar os pedidos formulados pelas partes e fiscalizar a execução dos projetos e as entidades de abrigo, juntamente com o Ministério Público e o Conselho Tutelar, artigo 95 da Lei.
Os programas desenvolvidos nos abrigos, bem como a administração de seus serviços ao executar a manutenção dos vínculos familiares e comunitários, buscando o retorno da criança e do adolescente em medida de proteção à família ou à comunidade é de inteira responsabilidade da própria entidade, artigo 90 da Lei. É atribuição das entidades de abrigo, orientadas pelos conselhos dos direitos da criança e do adolescente, desempenhar o trabalho de manutenção dos vínculos familiares e comunitários independente do controle do juiz de direito das varas da infância e da juventude.
É importante ter presente o hermeneuta na interpretação da Lei no 8.069/90 para sua finalidade maior constante na regra do artigo 6o e que são os fins sociais, orientados pelo princípio-mor da Constituição Federal, a dignidade da pessoa humana, ou seja, a convivência familiar e comunitária, observado o respeito aos direitos individuais, direitos civis, escritos nos artigos 15, 16, 17, a liberdade, o respeito e a dignidade, e manifestar sua opinião e expressão.
Poderíamos afirmar que as causas da não-aplicação do princípio fundamental do Estado democrático de direito, a cidadania emancipatória e da dignidade da pessoa humana, para a criança e para o adolescente na sede civil das varas da infância e da juventude se deve ao não-reconhecimento de sua atual condição de sujeitos de direitos iguais a todos os demais cidadãos e ao desconhecimento do poder público e da sociedade de suas responsabilidades na implantação da proteção integral da qual esses sujeitos são titulares. A Lei no 8.069/90 é protetiva e investe na cidadania emancipatória dos sujeitos por ela abarcados, diferente da lei anterior, que era tutelar e impositiva.
6 A proteção jurídico-social e o advogado da criança e do adolescente
A compreensão das diferenças entre o momento legislativo e social vigente na doutrina da situação irregular do Código de Menores e o atual, a partir da Carta que adotou a doutrina da proteção integral em prioridade absoluta contida na Convenção Internacional dos Direitos da Criança de 1989 da qual o Brasil é signatário, mostra indubitavelmente a essência da mudança de uma para outra.
O advogado e a defesa do menor não existia. Hoje o advogado é essencial à administração da justiça, artigo 133 da Carta Federal. Está presente no processo especial na sede civil da infância e da juventude desde a propositura de ações, intervir em todos os atos processuais e interpor recursos das decisões que entende prejudiciais ao sujeito criança e adolescente. Não encerra o advogado sua atividade com a prolação da sentença, mas permanece vinculado à rede da política de atendimento na proteção integral da pessoa humana e orientação pessoal do sujeito, inclusive requerendo outros direitos fundamentais contidos na lei.
A proteção jurídico-social expressa na regra do artigo 87, V, da Lei no 8.069/90, os centros de defesa da criança e do adolescente, representa a integração do poder público com a sociedade na defesa, proteção e atendimento desses sujeitos, conforme a política formulada nos artigos 87 e 88 da Lei. A sociedade dessa forma se compromete a e assegura a proteção jurídico-social por entidade de defesa constituída na forma da Constituição e integrada por advogados especialistas nos procedimentos especiais que representam e assistem os sujeitos na efetivação de seus direitos, numa afirmação clara que a responsabilidade pela criança e pelo adolescente se efetiva através de um conjunto de ações governamentais e não-governamentais.
Sustentamos que da representação e assistência de responsabilidade da sociedade há de ser entendido à luz a dignidade da pessoa humana, do direito da igualdade, e na peculiaridade da situação do sujeito inscrito no artigo 98, I, e II, que está privado da representação legal e em situação de abandono familiar nas mais variadas formas.
Finalizando, cabe destacar que não existe conflito entre a atuação do advogado da ONG, CEDECA está nominado no artigo 133, da CF, combinado com a regra do artigo 206 e 87, V, da Lei no 8.069/90, e os advogados da Defensoria Pública, cujas atribuições estão definidas no artigo 134 da CF.
Entretanto, enquanto o Poder Judiciário e o Ministério Público não efetivarem a mudança no sistema de justiça, nas varas da infância e da juventude, instaurando o devido processo legal, a criança e o adolescente estarão privados do seu direito de usufruir as ações do advogado da criança e do adolescente nos moldes da Constituição e da Lei no 8.069/90.
Por derradeiro, conclamamos para que o Poder Judiciário, o Ministério Público e as entidades de defesa dos direitos ocupem e desempenhem suas atribuições, cumprindo os ditames da Lei Maior e do microssistema jurídico, a Lei no 8.069/90 para dar concretude à proteção integral, isto é, levando o mundo dos fatos para o mundo do direito. Importa para isso dirigir um novo olhar à criança e ao adolescente por seu valor intrínseco de ser humano, ostentar a condição especial de pessoa em desenvolvimento e tipificar o valor prospectivo como portadora da continuidade de seu povo e da espécie, reconhecendo suas vulnerabilidades pessoais, familiares e sociais.
Conclusão
O acesso à justiça do sujeito criança e adolescente titular da proteção integral e dos direitos fundamentais, mormente ao Poder Judiciário, o Estado-juiz, na área dos direitos civis nas varas da infância e da juventude, deverá ser processado no bojo do devido processo legal. Ali será assegurado ao sujeito a defesa técnica por advogado próprio, o contraditório e a mais ampla defesa com todos meios a ela inerentes na apreciação e no julgamento da ameaça ou lesão de direitos.
Necessária é a integração do poder público e da sociedade como um todo, e cada cidadão, individualmente considerado, para cumprir o dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor, escrito na regra do artigo 18, complementado pela norma do artigo 70 da mesma Lei que afirma ser dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente. Esse é o caminho para materializar os direitos fundamentais na oferta de políticas públicas necessárias ao desenvolvimento do sujeito integral, oportunizando seu desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade.
Conclamamos como indispensável os eleitores do Conselho Tutelar, e em especial do Ministério Público, nos moldes do artigo 127 da CF, a fiscalização sobre as ações do Conselho Tutelar na sua função de zelar pela violação de direitos da criança e do adolescente e na sua atribuição do acompanhamento e assistência às famílias, para evitar o abandono, a negligência e o abuso a seus filhos.
Informações Sobre o Autor
Maria Dinair Acosta Gonçalves
Mestre em Direito do Estado PUC 2001, com concentração em Direito da Criança e do Adolescente. Diretora do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, IARGS. Defensora Pública. Consultora jurídica. Autora dos livros: Programa de abrigos, princípios e Diretrizes da Lei 8069/90, e Proteção Integral,Paradigma multidisciplinar do direito pós-moderno.