A Internet – manifestação concreta da globalização – conta com os seguintes atores: provedores de página, de acesso e usuários. Pelo seu caráter mundial, observou-se, como dificuldades de responsabilização: que estes atores não se encontram, em sua maioria, sob a mesma jurisdição nacional; que, no Brasil, não há legislação específica sobre responsabilidade civil na Internet, aplicando-se legislações de forma análoga.
I. Introdução
O final do séc XX é emblemático de profundas transformações, pois reflete nos mais diversos planos e, dentre eles, no plano jurídico. A globalização representa muito mais do que uma integração dos países no sentido de uma sociedade internacional, na medida em que pressupõe a redefinição de cada Estado no tocante às suas tradições e, logicamente, ao seu ordenamento jurídico. Mais propriamente, a globalização não poderia se realizar sem instrumentos úteis e eficazes que pudessem exprimir o seu propósito. É neste contexto que surge o papel preponderante da Internet, pois ela possibilita a integração do mundo em rede, fornecendo trocas de informações just in time.
A Internet não se apresenta de forma aleatória, visto que obedece a um determinado esquema estrutural que possibilita a sua realização. Compõe-se, basicamente, de dois tipos de provedor: o provedor de acesso e o provedor de página. O primeiro possibilita ao usuário o acesso à rede global, ou seja, permite ao usuário estar conectado a todos os sites e informações contidas na rede. O segundo é responsável por manter os arquivos de um site (páginas, imagens, etc.) armazenados em um servidor, tornando o site disponível à visitação e, portanto, disponível para acesso.
Dentro desse complexo sistema de rede interligada surge o problema de quem seria responsabilizado por eventuais danos que ocorram durante o seu uso[1], Em outras palavras, surge a problemática de a quem seria atribuída a responsabilidade civil de tais danos. Acentuando essa questão temos a insuficiência da legislação brasileira no que concerne à observância da responsabilidade civil destes provedores. Tendo em vista que não há leis específicas que definam de quem é a responsabilidade nos problemas que ocorrem na rede, surgem indagações do tipo: quem seria responsável, o provedor de acesso ou o provedor de página? Se um dos provedores fosse responsável por tudo, será que acarretaria falta de provedores, pois estariam desestimulados a prestar tal serviço por não quererem arcar com as eventuais conseqüências? O usuário deveria ser responsabilizado pelo que faz e acessa? Enfim, quem realmente deve ser responsabilizado?
Nos casos apresentados, cabe a consagrada máxima de que a sociedade muda mais rápido que as leis, ou seja, temos um processo dinâmico da vida social que ainda é estranho ao mundo jurídico. O processo de globalização e, mais especificamente a Internet, ainda não foi o centro de grandes debates em nossa legislação. Justifica-se, assim, a sua reflexão.
II. Aspectos doutrinários da responsabilidade civil
A ordem jurídica, para a consecução de seus objetivos, estabelece deveres que, conforme a natureza do direito a que correspondem, podem ser positivos ou negativos. Dever jurídico, neste sentido, é a conduta externa de uma pessoa imposta pelo direito positivo, de modo que a sua violação configura o ato ilícito que, em grande parte, acarreta dano a outrem, gerando um novo dever jurídico, que é o de reparar o dano.
Segundo o jurista Sérgio Cavalieri Filho[2]:
É aqui que entra a noção de responsabilidade civil. Em seu sentido etimológico, responsabilidade exprime a idéia de obrigação, encargo, contraprestação. Em sentido jurídico, o vocábulo não foge dessa idéia. Designa o dever que alguém tem de reparar o prejuízo decorrente da violação de um outro dever jurídico. Em apertada síntese, responsabilidade civil é um dever jurídico sucessivo que surge para recompor o dano decorrente da violação de um dever jurídico originário
Assim, a responsabilidade civil é a reparação de dano causado a outrem, devido ao descumprimento de um dever jurídico. Ou seja, responsável é a pessoa que deve ressarcir o prejuízo decorrente da violação de uma obrigação através do seu descumprimento. Para se atingir o dever de indenizar – e ser, conseqüentemente, responsável – são necessários alguns pressupostos, que são: o ato ilícito, a conduta culposa, o dano e o nexo causal.
Cumpre ressaltar que não é pacífica a questão, pois existem divergências sobre tais pressupostos. Uma corrente de juristas[3] entende como pressupostos a conduta culposa, o dano e o nexo causal. Desta forma, excluem o ato ilícito, pois admitem a possibilidade de ocorrer responsabilidade também com ato lícito. Uma outra corrente[4] atribui ao ato ilícito o status de pressuposto, pois sustentam que a obrigação de reparar sem culpa não é caso de responsabilidade. Vejamos, pois, os pressupostos enumerados:
Os atos ilícitos são os que emanam direta ou indiretamente da vontade, ocasionando efeitos jurídicos que são contrários ao ordenamento. O ato ilícito, neste sentido, traduz-se em um comportamento voluntário que transgride um dever. Deste modo, não basta a imputabilidade do agente para que o ato lhe possa ser imputado, pois a responsabilidade subjetiva exige também o elemento culpa. Em decorrência disto, a vítima de um dano só poderá pleitear ressarcimento de alguém se conseguir provar que este agiu com culpa[5].
Mais especificamente, só não constituem conduta os atos em que não intervém a menor parcela de vontade[6]. Desta forma, tanto no dolo como na culpa há conduta voluntária do agente: no dolo, o agente quer a ação e o resultado, ao passo que na culpa ele só quer a ação, vindo a atingir o resultado por desvio acidental de conduta decorrente de imperícia, negligencia ou imprudência.
Vale dizer: não basta que o agente tenha praticado uma conduta ilícita; tampouco que a vítima tenha sofrido um dano. É preciso que esse dano tenha sido causado pela conduta do agente, ou seja, que exista entre ambos uma necessária relação de causa e efeito. Daí a relevância do chamado nexo causal.
III. Provedor de acesso e provedor de página
Provedor de acesso é, como o próprio nome sugere, um “organismo” comercial, educacional ou governamental que conecta as pessoas à internet, ou seja, é aquele que possibilita o acesso à internet. Tais provedores, que funcionam sob diferentes planos de serviço, possuem conexões de alta velocidade com a Internet (backbones) e oferecem aos seus clientes conexões dedicadas ou acesso discado via modem. O provedor pode, ainda, estar conectado diretamente à Internet ou pode estar ligado a um “provedor maior”, geralmente uma companhia de telecomunicações. Essas companhias mantêm as principais conexões da Internet, que são os chamados backbones[7].
Qualquer pessoa ou empresa pode ser provedor de acesso à internet no Brasil, pois não existe legislação que impeça ou que exija certificação técnica. Mesmo assim, praticamente todos os provedores no Brasil oferecem suporte técnico de atendimento ao cliente. Não obstante, a prestação desse serviço de acesso à internet exige a manutenção de sistemas de back-up e sistemas redundantes, que evitam perdas de prestação de serviço por parte de clientes. Assim todo provedor, ao se constituir em empresa com o objetivo de prover acesso à Internet, deve estabelecer equipes técnicas.
No que concerne à sua regulação, o provedor de acesso está vinculado à política implementada pelo Comitê Gestor Internet, criado pela Portaria Interministerial n. 147, de 31 de Maio de 1995, que consolida a seguinte diretriz:
tornar efetiva a participação da Sociedade nas decisões envolvendo a implantação, administração e uso da Internet, com a participação da MC e MCT, de entidades operadoras e gestoras de espinhais dorsais, de representantes de provedores de acesso ou de informações, de representantes de usuários, e da comunidade acadêmica.
Os provedores de página, por sua vez, são websites com uma grande infra-estrutura por trás do empreendimento, tais como: sites de notícias, de busca, Internet Bankings, corretoras de valores, leilões e etc. As páginas também são comumente chamadas de portais. Interessante notar que provedor de página é o mesmo que provedor ou servidor de hospedagem[8].
Para uma página poder ser acessada, ela deve estar localizada num servidor ou provedor de página ou hospedagem, podendo ser no provedor de acesso ou não. As atualizações no site são feitas por quem administra a página, e depois enviadas ao servidor. O provedor, além de armazenar o site, se propõe a mantê-lo em segurança, com backup diário e com serviço de manutenção.
IV. Responsabilidade civil e temas controversos
Por falta de legislação específica a respeito, a legislação que rege o mundo físico é transportada pra o virtual. De início, deve-se dizer que o causador direto do dano deverá ser o primeiro a ser responsabilizado, mas muito ainda se discute sobre a eventual solidariedade e co-autoria dos provedores que fizeram circular os dados ou informações que provocaram danos a terceiros
Apesar do Código Civil não conter um capítulo específico disciplinando as questões inerentes à esfera digital, alguns dispositivos podem ser diretamente aplicados no que concerne aos atos jurídicos ocorridos na Internet. Assim, diversos entes que figuram no meio virtual podem ser responsabilizados civilmente, como os provedores e aqueles que enviam mensagens não solicitadas pelos usuários da rede.
Relação contratual entre provedor e internauta
Na medida em que se constitui como um meio utilizado para configuração de uma relação jurídica, a internet representa um instrumento de declaração de vontade entre as partes contratantes. Em decorrência disto, as declarações de vontade de qualquer tipo se regulam pelo Código Civil em seu artigo 104, que consagra que, para a validade de determinado ato jurídico faz-se mister que o agente seja capaz, o objeto lícito e forma prescrita ou não defesa em lei.
Mais especificamente, a relação entre provedor e internauta é contratual: os internautas contratam um provedor de acesso para que este lhe forneça os meios de navegação na Internet. Tal contrato, por sua vez, tem duas características: por um lado, o usuário se responsabiliza pelos conteúdos de suas mensagens e pelo uso propriamente dito; e, por outro lado, o provedor oferece serviços de conexão à rede de forma individualizada e intransferível e até mesmo o uso por mais de um usuário.
Assim, para obter acesso à Internet, faz-se mister a contratação de um serviço que possibilite o acesso à rede, que é realizado pelos provedores de acesso à internet. Então, desta relação jurídica entre provedor e usuário advêm direitos e obrigações para ambas as partes. Analogamente, provedor de acesso é entendido como fornecedor e o usuário, por sua vez, é entendido como consumidor. Como indica o Código de Defesa do Consumidor:
Art 2º – Consumidor – é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
Art. 3º – Fornecedor – é toda pessoa física ou jurídica, pública ou privada, nacional ou estrangeira, bem como os entes despersonalizados, que desenvolvem atividade de produção, montagem, criação, construção, transformação, importação, exportação, distribuição ou comercialização de produtos ou prestação de serviços. É todo aquele que aos olhos do consumidor se torna responsável pelo fornecimento do produto ou serviços.
O Código de Defesa do Consumidor e os provedores
Analisando o CDC percebemos que a responsabilidade civil dos provedores não difere substancialmente da responsabilidade de qualquer outra empresa. O provedor – no caso, fornecedor – deve se empenhar no sentido de controlar e regular o acesso, permitindo ao usuário segurança da navegação na rede.
A responsabilidade dos provedores de acesso – em decorrência dos danos causados aos seus usuários devido a defeitos relacionados à prestação de serviço específico que proporciona ao consumidor danos relativos a baixa qualidade de seus serviços – será objetiva, de acordo com o artigo 14 do CDC:
Art 14 – O fornecedor de serviços responde, independentemente da existência de culpa, pela reparação de danos aos consumidores pro defeitos relativos às prestações de serviços, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua fruição e riscos
§ O serviço é defeituoso quando não fornece a segurança que o consumidor dele pode esperar, levando-se em consideração as circunstâncias relevantes, tais como:
I – o modo de seu fornecimento;
II – o resultado e os riscos que razoavelmente dele se esperam
III – a época em que foi fornecido
Ou seja, o provedor de acesso responde pelos vícios ou defeitos relacionados ao fornecimento dos serviços contratados[9]. Deste modo, todas as normas da lei de proteção ao consumidor são aqui aplicáveis, principalmente no tocante aos abusos existentes nos contratos de serviços do provedor de acesso, que são verdadeiros contratos de adesão. Conforme o artigo 54 do CDC:
Art 54 – Contrato de adesão é aquele cujas cláusulas tenham sido aprovadas pela autoridade competente ou estabelecidas unilateralmente pelo fornecedor de produtos ou serviços, sem que o consumidor possa discutir ou modificar substancialmente seu conteúdo.
Cumpre dizer que muitas das cláusulas convencionadas nestes contratos de adesão – geralmente firmados virtualmente – são nulas. Neste sentido, se ocorrerem danos ao consumidor decorrentes dos serviços contratados, é facultado o pleito de reparação da lesão sofrida. O CDC previu duas modalidades de responsabilização do fornecedor de serviços de acordo com o tipo de dano ao consumidor: a responsabilidade pelo fato do produto e do serviço e a responsabilidade pelo vício do produto ou do serviço.
Responsabilidade Civil pelo fato do produto e do serviço
Tal responsabilidade advém da exteriorização de um vício de qualidade, ou seja, de um defeito capaz de frustrar a legítima expectativa do consumidor quanto à sua utilização ou fruição. Vê-se, portanto, que é necessária a caracterização de uma insegurança quanto a prestabilidade ou servibilidade daquele produto ou serviço, o que geralmente se desencadeia de forma oculta. O CDC, em seus artigos 12 e 14, responsabiliza o produtor ou fornecedor de serviços, independentemente da existência de culpa, a reparar os danos causados ao consumidor. Assim, será ônus do provedor de acesso provar o “mau uso” dos softwares, tendo em vista o seu dever de informar sobre a correta utilização daqueles.
Neste sentido, somente se cogita o mau uso quando o uso correto do serviço tiver sido comunicado ao consumidor de maneira adequada e clara. Ainda assim, o fornecedor somente estará livre da responsabilidade pelos danos se provar a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro.
Não obstante, o artigo 13 do CDC imputa ao comerciante a responsabilidade pela reparação do dano ao consumidor quando o produto houver de ser oferecido sem a clara identificação do fornecedor[10].
Responsabilidade Civil pelos vícios do produto ou serviço
O CDC, para além da responsabilidade civil pelo fato do produto ou serviço, ainda responsabiliza o provedor por vícios decorrentes da qualidade ou quantidade dos produtos e serviços ofertados.
Art. 19 – Os fornecedores respondem solidariamente pelos vícios de quantidade do produto sempre que, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, seu conteúdo líquido for inferior às indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou de mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha:
Em relação à prestação de serviços temos:
Art. 20 – O fornecedor de serviços responde pelos vícios de qualidade que os tornem impróprios ao consumo ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade com as indicações constantes da oferta ou mensagem publicitária, podendo o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha.
Portanto, o provedor de acesso tem o dever de garantir a plena utilização e fruição dos serviços oferecidos contratualmente, possibilitando o efetivo acesso e troca de informações entre os usuários da internet, bem como resguarda-los de eventuais prejuízos ocasionados por terceiros vinculados ao provedor[11].
Responsabilidade Civil do Provedor pelo fato de terceiro
Cumpre dizer que terceiros são os agentes que não possuem qualquer relação com o provedor. O usuário chega ao seu conhecimento não mediante anúncio, indicação ou outro meio de divulgação utilizado pelo provedor, mas sim através de outras fontes, tendo o provedor participação tão somente em virtude de ter disponibilizado ao usuário o acesso à internet.
Nesta situação não cabe a responsabilização do provedor. Não é razoável que o provedor responda por casos como, por exemplo, ter o usuário obtido acesso a métodos de fabricação de bombas atômicas terroristas. Muito embora o provedor tenha meios para rastrear as páginas visitadas pelo seu usuário, este rastreamento não pode ser confundido com controle pleno ou, até mesmo, censura. Deste modo, é impossível ao provedor controlar o acesso de seu usuário às várias home pages, serviços e produtos disponibilizados na internet. A internet é um sistema dinâmico cuja fiscalização é humanamente impossível.
V. Conclusão
Como vimos, inexistem leis específicas para a regulamentação da matéria, utilizando-se basicamente o CDC. Os casos que envolvem ou não a aplicação de responsabilidade civil acerca dos provedores de acesso ou de página tornam-se muito polêmicos, necessitando de reflexões aprofundadas.
Fica evidenciado que a responsabilidade civil, na maioria dos casos, é atribuída ao provedor de acesso, uma vez que aqueles que se disponham a exercer alguma atividade no campo de fornecimento de serviços respondem independentemente de culpa pelos fatos e vícios resultantes destes.
Todavia, o provedor de página também pode ser responsabilizado civilmente pois é ele quem responde pelo conteúdo apresentado e a maneira pela qual esse conteúdo é apresentado, caracterizando porventura ofensa a imagem das pessoas, transgressão aos direitos conexos, lesão ao patrimônio, etc.
Alheios a essas responsabilidades se encontram os usuários desses serviços, visto que estão protegidos pelo CDC através da presunção de inocência, já que os usuários constituem a parte mais fraca da relação jurídica de consumo (art. 2º do CDC).
Em nossa parte introdutória, vimos que a internet não é um fenômeno exclusivamente nacional, pois possibilita a integração de diferentes Estados e, conseqüentemente, diferentes ordenamentos jurídicos. Desta forma, o Direito Internacional é uma alternativa eficaz para a possível resolução de conflitos cujos provedores – de acesso e de página – se encontram em Estados distintos. Isto se acentua quando o usuário se encontra num terceiro Estado, que é distinto dos Estados dos provedores.
Assim, atribuir a responsabilidade civil neste mundo globalizado torna-se extremamente complexo, necessitando-se de um embasamento doutrinário e jurisprudencial no plano internacional, no intuito de conciliar interesses e amenizar os conflitos, o que dificulta a identificação e punição dos culpados e a absolvição dos inocentes.
Informações Sobre o Autor
Felipe Dutra Asensi
Pesquisador em direito constitucional, instituições democráticas e processos decisórios. Também analisa os efeitos da Globalização nos diversos institutos jurídicos brasileiros.