Vitimologia e direitos humanos

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Resumo: As questões atinentes à situação da vítima e seu comportamento frente ao algoz e as formas como se dá a vitimização em seus diversos graus apresenta-se como questão inquietante, posto que a compreensão de tais assuntos desafia os estudiosos desde o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. O surgimento da Vitimologia como ciência autônoma concretiza e afirma de forma categórica o quão importante para as ciências penais e criminológicas é a percepção dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais que circundam a ocorrência do crime e sobremaneira como a vítima se comporta frente a tais acontecimentos. Para o Processo Penal, um dos fundamentais instrumentos jurídicos de resguardo dos Direitos Humanos, é de salutar importância voltar as atenções para a vítima e, com base nos resultados obtidos através das pesquisas vitimológicas buscar novos horizontes para o trato procedimental a ser dispensado às pessoas que sofrem com a ocorrência do crime, sem perder de vista que tais indivíduos são seres humanos já bastante fragilizados por sua condição de vítima e necessitam de acolhida pelo sistema jurídico, a fim de não serem agravados os traumas causados pela ação criminosa que os atingiu.

Palavras chave: crime; direitos humanos; processo penal; vitimização; vitimologia.

Abstract: Issues relating to the situation of the victim and its behavior before the executioner and the ways in which victimization occurs in its various degrees presents themselves as disturbing questions, since the understanding of such matters challenges scholars since the period immediately after World War II. The emergence of Victimology as autonomous science embodies and affirms categorically how important to the criminal and criminological sciences is the perception of biological, psychological and social factors surrounding the occurrence of the crime and the victim as greatly behaves against such events. For the Criminal Procedure, one of the key legal instruments railings of Human Rights, is of salutary importance to turn attentions back to the victim and, based on the results obtained through victimological research seek new horizons for the treatment to be accorded to those who suffer from the occurrence of the crime, without losing sight of such individuals are already quite fragile human beings by their victimhood and need upheld by the legal system, so as not to be compounded traumas caused by criminal action that hit them.

Keywords: crime; criminal proceedings; Human Rights; victimization; victimology.

Sumário: Introdução. 1. Breve Apanhado Histórico Sobre o Surgimento e o Desenvolvimento da Vitimologia. 2. Vitimologia e Direitos Humanos. 2.1. A Consagração dos Direitos Humanos. 2.2. A Proteção Jurídica dos Direitos Humanos das Vítimas.  3. Novas Formas de Proteção à Vítima.  3.1. O Programa Nacional de Proteção à Vítima. 4. Considerações Finais. 5. Fontes. 6. Referências Bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Dentre as ciências que orbitam o Direito Penal e, por conseguinte auxiliam sua prática e desenvolvimento, a Vitimologia dedica-se a estudar os diversos aspectos envolvendo os crimes e suas causas e consequências em planos diversos.

Esse ramo do conhecimento se apresentou a partir do ano de 1.947 como ciência autônoma, cujo escopo é a busca pela compreensão do comportamento da vítima, a relação existente entre esta e o criminoso bem como o impacto do crime em sua vida, tudo isso sob um prisma biopsicossocial, ou seja, busca compreender a vítima nos planos biológico, psicológico e social.

A Vitimologia, que nos primórdios foi considerada parte intrínseca da Criminologia, foi concebida e encontra-se em constante aperfeiçoamento para buscar antes e, sobretudo dar suporte às vítimas de todos os gêneros e entendê-las.

Além disso, visa proclamar-se como uma ciência para liberdade e a liberação moral e material de todos os tipos de vítimas, sejam aquelas que sofrem diretamente as consequências do crime, sejam aquelas a quem o Estado relegou ao segundo plano de suas prioridades, tornando-as algozes e vitimizadoras.

Logo, é de salutar importância para as ciências voltadas ao estudo dos delitos e suas consequências compreender os motivos que levam determinadas pessoas a serem vítimas em potencial, enquanto outras são classificadas como infratoras em potencial.

De enorme relevância também é descobrir maneiras de minorar a ocorrência de crimes e, em última instância, tornar menos traumáticas as experiências daqueles que se vêm na condição de impotência frente à ocorrência de situações delituosas.

Frise-se que os dados coletados ao longo de anos de pesquisa na área específica da Vitimologia encontram farto campo de aplicação prática, seja na área da prevenção à ocorrência de crimes, incluindo-se a política criminal em seu sentido preventivo, seja na busca pela reparação dos danos causados às vítimas, prejuízos estes que vão muito além da seara patrimonial e atingem o indivíduo em sua parte mais sublime e nobre, pois maculam sua dignidade enquanto ser humano.

No que se refere aos Direitos Humanos e sua defesa, a Vitimologia apresenta-se como importante instrumento, de emprego voltado tanto para o delinquente, que em sua grande maioria se apresentam como vítimas da própria sociedade, quanto para as vítimas propriamente ditas, ou seja, as pessoas que experimentam os prejuízos advindos das condutas criminosas contra elas praticadas.

Busca-se, portanto, a real dimensão do desrespeito à dignidade da vítima, bem como demonstrar que o processo de vitimização não termina com a consumação do crime, pois este é o início de uma caminhada longa e tormentosa que atravessa as portas do Poder Judiciário e, em muitos casos permanece gravado no íntimo do indivíduo de maneira indelével.

Com efeito, a questão que se apresenta como foco principal do presente estudo é a maneira como a ciência da Vitimologia pode ser utilizada como forma de resguardo dos Direitos Humanos e como instrumento de diminuição dos traumas causados pelas mais diversas situações delituosas verificadas na sociedade hodierna do Brasil.

1. APANHADO HISTÓRICO SOBRE O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA VITIMOLOGIA

Inicialmente, para a melhor compreensão do presente trabalho e os objetivos à que se propõe, necessário discorrer sobre a etimologia da palavra vítima.

Quando nos tempos mais remotos ofertavam-se animais aos deuses, como forma ritualística de adoração e para aplacar sua fúria, tais oferendas eram amarradas por uma corda e tal amarre era chamado de  vincire.

“No sentido denotativo do termo, Vítima deriva de vincere-vencer, ou de vincire – corda que amarra os animais que serão sacrificados aos deuses. De todo modo, penalmente, a vítima é aquele que sofre a ação ou omissão do autor do delito” (KOSOVSKI, 2007, p.1).

Na Antiguidade, durante a vigência da vingança privada e da sua aceitação pelo próprio aparato estatal, cuja expressão maior é o Código de Hamurabi que vigorou na Mesopotâmia, mais precisamente no Império da Babilônia no período de 1.800 a.c. à 1.500 a.c., a vítima ocupava lugar de destaque nas relações jurídicas, principalmente porque o referido compêndio de Leis em determinados artigos prescrevia a aplicação de sanções de cunho indenizatório que recaíam sobre o patrimônio do réu, referentes ao pagamento de valores pecuniários à vítima.

Além disso, a Lei de Talião como ficou mais conhecida, previa também a aplicação de castigos corporais e inclusive a morte ao réu que, devido ao cometimento de algum ilícito, era forçado a experimentar a mesma dor e sofrimento que veio causar na vítima.

Tal situação tinha o condão de conferir à vítima o direito de ver seu algoz punido com o mesmo sofrimento que havia lhe causado.

“Nos povos primitivos, à infração respondem – direta e exclusivamente – os sujeitos passivos do delito e/ou seus familiares.Esse sistema leva a múltiplos abusos de vinganças exageradas. Para  limitar esses excessos, vai intervindo, cada dia, mais e mais, o poder político, para desbancar as vítimas e monopolizar a resposta mediante a coerção soberana.” (BERISTAIN, 2000, p.74).

 A rigidez da punição infligida ao criminoso apresentava-se perante o corpo social do Império Babilônico com característica dúplice: satisfazia o desejo de vingança da vítima ou de seus entes e também servia de exemplo para os demais habitantes da comunidade, servindo como meio de intimidação e garantia de um convívio minimamente sadio no seio da sociedade.

Dada a natural evolução dos costumes, peculiar à espécie humana, tal abominável regra que privilegiava a vingança e incentivava a violência foi aos poucos substituída, verificando-se o abrandamento do furor punitivo do Estado que passou a empregar maior proporcionalidade no que tange à gravidade da pena aplicada aos criminosos.

Ao mesmo tempo em que o Estado evoluiu, paulatinamente assumiu o controle da aplicação da violência, bem como de todo e qualquer meio punitivo previsto na legislação, a fim de justificar, dogmatizar e institucionalizar tal monopólio punitivo.

“Praticamente, a política criminal durante este longo período estrutura a resposta ao delito como uma virtude/obrigação do poder absoluto que aplica as penas com crueldade arbitrária, sem participação alguma da vítima. O reflexo desta política criminal abarcará depois (também por reação) uma filosofia política liberal burguesa preocupada, especialmente, em proteger o delinquente.” (BERISTAIN, 2000, p.75).

No que tange ao campo histórico, pode-se notar que a mencionada evolução no direito trouxe à vítima três momentos distintos referentes ao tratamento a ela dispensado pelos sistemas penal e processual penal postos e impostos pelo Estado.

Primeiramente, a vítima possuía relevante participação nos estudos dedicados à ciência penal. Tal período vigorou até o fim da Alta Idade Média. Em um segundo período há o fortalecimento da ideia de Monopólio Estatal na aplicação das sanções penais, o que relega a vítima a outros planos muito distantes dos até então vislumbrados.

“O tratamento histórico dispensado à vítima dentro dos estudos penais passou por três grandes momentos, sendo o primeiro, descrito como idade de ouro e vigorou até o fim da Alta Idade Média, com relevante participação no sistema; num segundo momento, há uma “neutralização do poder da vítima”, e o Estado, por meio dos poderes públicos, monopoliza a reação; finalmente, numa terceira fase, “revaloriza-se o papel da vítima no processo penal”. (SALIBA, 2009, p.109).

Ocorre nesta fase o surgimento das teorias humanistas da Escola Clássica, aplicadas às ciências penais, e o desenvolvimento da tríade: delinquente – pena – crime. Situação esta que exclui a vítima do foco dos estudos penais à época.

Portanto, no Processo Penal passam a imperar duas figuras, quais sejam a do Estado no exercício do seu Poder-Dever de punir o infrator e de outro o réu exercendo suas prerrogativas de defesa, a ele conferidas pela própria ordem jurídica.

“Desde a Escola Clássica impulsionada por Becaria e Fuerbach à Escola Eclética de Impalomeni e Alimena, passando pela Escola Positivista de Lambroso, Ferri e Garofalo, O Direito Penal praticamente teve como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração. Isto apenas passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia, tiveram que vir em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do crime, do criminoso e da pena.” (FERNANDES, 1995, p.455).

O terceiro momento da vítima frente aos estudos penais é marcado pela revalorização e resgate do seu papel frente ao processo penal, buscando trazê-la de volta à luz dos acontecimentos, sobretudo pelas possibilidades de composição civil e transações previstas pelo direito penal moderno, o que de certa forma se mostra ainda em fase de maturação e desenvolvimento, que poderá no futuro servir de receptáculo para novas formas de atuação da vítima frente ao processo penal.

Tal especialização na Legislação Pátria se faz evidente com a Lei nº 9.099/95, a chamada Lei dos Juizados Especiais que busca mover o enfoque do processo para a vítima, oferecendo-lhe a oportunidade de aceitar acordos e composições civis dos danos.

“Não se pode desconsiderar que atualmente uma tendência revitalizadora da vontade da vítima tomou conta de algumas legislações, e no Brasil, a Lei 9099/95 é o maior exemplo. Contudo à exceção da conciliação civil prevista na lei como causa extintiva da punibilidade pela renúncia, os demais dispositivos legais não apresentam alternativas ao sistema punitivo”. (SALIBA, 2009, p.113).

Ainda sobre a tendência revitalizadora da recente legislação pátria verificada com o advento da Lei dos Juizados Especiais Criminais e Cíveis, preleciona Sandro Lobato de Carvalho:

“É bem verdade que com a Lei 9099/95 a vítima foi “redescoberta” no processo penal nacional, dando maior ênfase à reparação do dano às vítimas. Mas a referida lei só tem incidência no âmbito da criminalidade pequena e média, ficando as vítimas de graves delitos no esquecimento, sobretudo quanto a reparação de danos”.

As origens da Vitimologia, como um estudo organizado e com finalidade específica, encontram-se no período do pós Segunda Guerra Mundial, tempos nos quais o mundo testemunhou o horror do holocausto judeu promovido pelo Reich Nazista entre os anos de 1.933 e 1.945, sendo que a sociedade ocidental da época vivenciou e compadeceu-se da macro-vitimização ocorrida naquele período, assim entendendo-se a vitimização em larga escala, que atinge um número elevado de pessoas.

“Pode-se dizer que a atual vitimologia nasceu como reação à macrovitimização da II Guerra Mundial e, em particular como resposta dos judeus ao holocausto hitleriano/germano, ajudados pela reparação positivista do povo alemão, a partir de 1945”. (BERISTAIN, 2000, p.83).

Dos inúmeros trabalhos acerca do tema publicados entre os anos de 1.947 e de 1.979, época de grande efervescência vitimológica, merece destaque o professor alemão Hans Von Henti, com a obra The Criminal and the victim[1] do ano de 1.948.

Segundo tal estudo, deve-se levar em conta 03 noções fundamentais acerca dos estudos sobre a vítima:

a) A possibilidade de que o criminoso, de acordo com determinadas circunstâncias, possa vir a se tornar também vítima, ou vice-versa;

b) Deve-se levar em conta que existe a chamada ‘vítima latente”, ou seja, pessoas que possuem uma pré disposição para serem vítimas, que despertam uma certa atração para o criminoso;

c) Não se pode olvidar da relação existente entre vítima e delinquente, relação esta que pode inclusive inverter os papéis ou criar um vínculo muitas vezes afetivo entre vítima e algoz, os denominados casos de Síndrome de Estocolmo.

Assim, de acordo com o estudo publicado por Von Henti:

“Primeiramente, a possibilidade de que uma mesma pessoa possa ser delinqüente ou criminoso segundo as circunstâncias, de maneira que comece no papel de criminoso e siga no de vítima ou ao contrário.

A segunda noção é a “vítima latente”, que inclui aquelas mulheres e aqueles homens que têm uma predisposição a chegar a ser vítimas, ou seja, uma certa atração para o criminal.

Por fim, a terceira noção básica refere-se à relação da vítima com o delinqüente, relação que pode provocar uma inversão dos papéis do protagonismo. A vítima pode ser o sujeito, mais ou menos desencadeante, do delito” (BERISTAIN, 2000, p.84).

Considera-se, no entanto, como o fundador da doutrina da vitimologia o advogado israelita e também vítima da Solução Final Nazista, Benjamin Mendelsohn, que militava em Jerusalém. Ele utilizou a expressão Vitimologia pela primeira vez em uma palestra ministrada no ano de 1.947, entitulada:The origins of the Doctrine of Victmimology[2].

Posteriormente Benjamin Mendelshon publicou suas obras Etudes Internacionales de Psycho-Siciologie Criminelle de 1.956[3] e La Victimologie, Science Actuaelle de 1.957[4], que reafirmaram o quão conveniente e proveitoso para os estudos voltados às áreas do Direito Penal e da Criminologia é compreender a vítima em seus mais diversos aspectos, desde o psicológico até o econômico, para que se possa traçar um perfil amplo que nos conduz ao entendimento da participação da vítima na ocorrência do delito, do impacto sofrido pela vítima, no instante imediato ao que a mesma é abalroada pela ocorrência do crime e, posteriormente passando pelos diversos graus de vitimização.

“A vitimologia surgiu exatamente do martírio sofrido pelos judeus nos campos de concentração comandados por Adolf Hitler, sendo reconhecido como fundador da doutrina Vitimológica o notável advogado israelita Binyamin Mendelsohn, Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Como marco Histórico, Mendelsohn pronunciou na Universidade de Bucareste, em 1947, sua famosa conferência Um Horizonte novo na Ciência Biopsicossocial: A Vitimologia” (OLIVEIRA, 2003, p.9).

A Vitimologia, após sua concepção e ingresso no panorama científico-jurídico mantém-se em constante aperfeiçoamento e desenvolvimento na busca pela compreensão das vítimas e na luta por melhores condições no trato dos indivíduos vitimizados pelas mais variadas formas de violações dos direitos humanos.

“Desde os primeiros trabalhos em vitimologia a partir de Mendelsohn, que nomeou a ciência, e de Von Hentig no final dos anos 40, houve um avanço fantástico a ponto de hoje a vitimologia e os movimentos pelos direitos das vítimas constituírem possivelmente a força existente mais dinamizadora para a transformação dos sistemas de Justiça Penal. Isto, sobretudo, a partir do forte impulso nos anos 60, em que se abriam novos horizontes de investigação e de ação em matéria criminológica e vitimológica”. (KOSOVSKI, 2000, p.22).

Questão interessante à época após a Segunda Guerra Mundial era procurar entender ou mesmo imaginar as razões pelas quais 06 (seis) milhões de judeus foram submetidos ao tratamento desumano, cruel e, por que não monstruoso a eles imposto pelo governo alemão e seu braço armado, a elite do exército hitleriano, chamada de SS.

“O balanço do extermínio dos judeus na Europa durante a Segunda Guerra Mundial atinge números que desafiam a imaginação. Seis Milhões de judeus, do total de 9 milhões e meio no fim do ano de 1939, morreram de privações, de doença ou foram chacinados…As baixas alemãs, responsáveis por este hecatombe continental, elevaram-se a cerca de 07 milhões, ou seja, 9 por cento da população (78 milhões)”. (PIERRE, 1980, p.28).

Embora a informação amplamente divulgada seja no sentido de que os judeus nada fizeram em sua própria defesa frente à intolerância e às repugnantes ações do regime nazista, é de suma importância destacar que os judeus organizaram-se na luta pela sobrevivência e não apenas marcharam para a morte conformados com seu destino.

“Observamos que, na contramão da lógica totalitária, a resistência anti-nazista, no entanto, demonstrou um ativismo e uma reação e luta contra a o nacional-socialismo e a barbárie, inclusive dos perseguidos, como só judeus, ciganos e a esquerda, também nos guetos e campos, inclusive campos de extermínio. Parte dessa resistência apresentava projetos políticos alternativos ao nazismo, quebrando, com isso, a noção de um sistema sem oposição e de massas amorfas caminhando para a morte sem reação.” (CAVALCANTE, 2010, p.2).

Cumpre destacar ainda que a mencionada resistência judaica organizou-se e atuou, principalmente na Alemanha e países vizinhos desde a ascensão dos nazistas ao poder no ano de 1.933.

“Notamos que na contramão do horror e da barbárie nazistas, da tentativa de atomização e extermínio dos judeus encontramos a organização e a luta judaica da resistência nos campos, nos guetos, nas cidades, nos Exércitos Aliados. Dessa resistência judaica, pretendemos resgatar a resistência judaica, atuante já desde 1933, e que adquire contornos mais complexos, mais atuantes e atividades mais intensas quando da implementação da "Solução Final" depois da Conferência de Wannsee em 20 de janeiro de 1942.” (CAVALCANTE, 2010, p.2).

Diante de tantos e inquietantes questionamentos e insuficiência de respostas, após a publicação das supra mencionadas obras do Advogado Benjamin Mendelshon, bem como das obras de tantos outros teóricos da Vitimologia, na cidade de Jerusalém no ano de 1.973 celebrou-se o primeiro Simpósio Internacional de Vitimologia.

Tal Simpósio veio a se repetir nos anos seguintes em diversas cidades do mundo, entre elas o Rio de Janeiro no ano de 1.991, sendo que no ano de 1.979, na cidade de Münster na Alemanha, foi fundada a Sociedade Internacional de Vitimologia.

“Do desenvolvimento teórico da vitimologia dão provas os numerosos estudos apresentados no 7º Simpósio Internacional de Vitimologia, celebrado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991.” (BERISTAIN, 2000, p.84).

Há que se ressaltar que, através da Resolução nº 40/34 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 29 de Novembro de 1.985 foi aprovada a Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder[5].

Tal documento visa determinar conceitos básicos como quem pode ser considerado vítima, a forma como a vítima deve ser tratada perante a Justiça, mecanismos para o ressarcimento das vítimas e indenização a serem pagas pelos ofensores de sua dignidade[6]

No que tange à atividade legiferante voltada ao auxílio das vítimas, ao longo dos anos em vários países tem-se criado Fundos de Compensação Estatal a fim de minorar o impacto causado pela ação do criminoso contra a vítima, além de alterações legais no sentido de garantir à vítima o resguardo de sua dignidade durante o decorrer do processo penal.

No 7º Simpósio Internacional de Vitimologia, celebrado no ano de 1.991, no Rio de Janeiro e no XI Congresso Internacional de Vitimologia, realizado na cidade de Budapeste, capital da Hungria no ano de 1.993.

No Brasil, a SBV – Sociedade Brasileira de Vitimologia  foi fundada no ano de 1.984, tendo em vista a necessidade de estabelecer em solo pátrio um grupo de estudos voltado à consolidação dos conhecimentos multidisciplinares relacionados com a ciência da Vitimologia, bem como sua aplicação prática.

“A Sociedade Brasileira de Vitimologia (SBV) foi fundada em 28 de julho de 1984, quando especialistas das áreas de Direito, Medicina, Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, Sociologia e Serviço Social, além de estudiosos das ciências sociais, uniram-se para consolidar, no Brasil, os conhecimentos relacionados com a ciência da Vitimologia, que, anteriormente era apenas um capítulo da Criminologia.” (KOSOVSKI, ano 2000, p.5).

Dessa forma, evidencia-se que o Brasil acompanhou a tendência mundial referente aos estudos da vítima e das circunstâncias que a trazem ao cenário do delito e, à exemplo de países da Europa e da América do Norte também fundou sua Sociedade Nacional de Vitimologia, dedicada a enriquecer os conhecimentos acerca dessa estimulante ciência.

2. VITIMOLOGIA E DIREITOS HUMANOS

2.1. A CONSAGRAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS

De grande relevância para o presente estudo, que busca relacionar a vítima e os diretos humanos é transcorrer, ainda que de forma abreviada sobre a consagração, o desenvolvimento e a proteção jurídica dos direitos humanos.

Contudo, antes da abordagem do tema, é necessário frisar que os direitos humanos sempre foram inerentes ao homem, enquanto ser pensante e capaz de discernir sobre o certo e o errado no seu convívio social.

“A doutrina dos direitos fundamentais surgiu da fusão de várias fontes, mas tem como base o cristianismo, com a ideia de que “criados à imagem e semelhança de Deus, todos os homens têm uma liberdade irrenunciável que nenhuma sujeição política ou social pode destruir”, o direito natural e o constitucionalismo.” (BREGA FILHO, 2002, p.3).

A conscientização e a luta pela realização dos direitos humanos data do período do Absolutismo Francês, no qual a monarquia dominava a população e sufocava as pessoas com altos impostos, cobrados para a manutenção do luxo e dos gastos excessivos praticados pelo monarca.

Por tal razão, a revolução surgiu como única alternativa para a tamanha opressão que se impunha às camadas mais baixas da sociedade francesa, também chamadas de terceiro estado.

Assim, no ano de 1.789, eclodiu a Revolução Francesa, inspirada na Guerra de Independência Norte-Americana e nos ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade.

“O Estado contemporâneo nasce, no final do século XVIII, de um propósito claro, qual seja o de evitar o arbítrio dos governantes. A reação de colonos ingleses na América do Norte e a insurreição do terceiro estado na França tiveram a mesma motivação: o descontentamento contra um poder que – ao menos lhes parecia – atuava sem lei nem regras.” (BREGA FILHO, 2002, p.3).

Os revoltosos buscavam o afastamento do Estado e de sua desmedida intromissão na liberdade dos cidadãos, surgindo assim os direitos humanos de primeira geração, calcados em premissas básicas, como liberdade, não intervenção estatal na vida privada dos indivíduos, caracterizada pela limitação do Estado no que tange ao seu campo de atuação e direcionamento das atitudes das pessoas.

Para Vladimir Brega Filho “os princípios fundamentais constituíam uma limitação ao poder estatal, pois buscavam delimitar a ação do Estado”[7].

Concluí-se, portanto, que primeiramente foram resguardados, à pessoa individualmente considerada, os direitos mais elementares e indispensáveis à existência com o mínimo de dignidade, que até então jamais foram levados em consideração pelos regimes monárquicos absolutistas, nos quais as vontades do governante deveriam ser obedecidas sem questionamentos, por mais abusivas e autoritárias que se apresentassem.

A segunda geração de direitos humanos apresenta-se no período pós revolução, quando se torna nítida a concepção de que o Estado deve abster-se de determinadas intervenções, mas é essencialmente importante em outras tarefas, no sentido de criar e manter mecanismos aptos a garantir o exercício das liberdades individuais e demais direitos consagrados na primeira geração.

De tal modo que, os direitos humanos de segunda geração, ou direitos sociais, surgiram como uma reação ao caráter formal das liberdades individuais e pregava ser de vital importância a maior atuação estatal, estabelecendo limites bem definidos para tal intervenção.

 Nesse sentido, surgiu a compreensão de que cabe ao Estado de fornecer aos indivíduos assistência social, realizada através de prestações sociais, direito à saúde, bem estar, educação, melhores condições de trabalho, entre outros encontrados hodiernamente nas Cartas Políticas da imensa maioria dos Estados democráticos.

Contudo, não se pode incorrer no equívoco de considerar esta Segunda Geração como de direitos difusos ou coletivos, pois aqui o foco dos direitos fundamentais ainda é a pessoa individualmente considerada.

“Esses direitos foram chamados de direitos fundamentais de segunda geração e caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc, revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas.” (BREGA FILHO, 2002, p.23).

 Por derradeiro, necessária se faz a explanação sobre os direitos humanos de terceira geração, que apresentam caráter mais abrangente e também são denominados direitos de solidariedade. Tais direitos foram concebidos no período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial.

A destruição generalizada ocasionada pelo maior conflito armado da história recente da humanidade ocasionou a reflexão acerca da necessidade de garantir-se a todas as pessoas direitos que transcendem a figura do indivíduo e atingem a coletividade, através do resguardo do meio ambiente, da paz mundial, da soberania dos Estados, entre outros.

“A nota distintiva destes direitos de terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção.” (SARLET, 1998, p.53).

No ano de 1.789, na data de 26 de agosto, a Assembléia Nacional Francesa editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.

“A declaração reconheceu, em dezessete artigos, direitos fundamentais, entre eles os da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio de legalidade, princípio de reserva legal e anterioridade da lei penal, princípio da presunção de inocência, liberdade religiosa e a livre manifestação do pensamento. Ela era um ato de reconhecimento de direitos naturais e por isso não criava e nem rememorava direitos.” (BREGA FILHO, 2002, p.11).

Na mesma esteira, porém dois séculos depois, no ano de 1.985 ocorre a Declaração Universal dos Direitos da Vítima. Tanto uma quanto a outra não são geradoras de direitos, mas declarações consagradoras de tais prerrogativas.

“As Nações Unidas têm se preocupado com a questão das vítimas, tendo aprovado, com o voto do Brasil, a Declaração dos Direitos das Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, em Assembléia Geral no Congresso de Prevenção de Crime e Tratamento de Delinqüente em Milão, na Itália em 1985, ratificado em 1986.” (KOSOVSKI, 2011, p.4).

Ambas apresentam-se como instrumentos norteadores do tratamento que deve ser dispensado aos indivíduos enquanto pessoas e vítimas de delitos ou abuso de poder, sendo reconhecidas internacionalmente, seu conteúdo não pode ser objeto de apropriação já que é inerente, intrínseco às pessoas e estas os conquistam a cada dia em que a espécie humana perpetua-se pela face do planeta Terra.

“A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Universal dos Direitos da Vítima contém, ambas, postulados intimamente identificados por uma finalidade comum e direcionados a um projeto de ação, pois não seria possível clamar por mudanças no comportamento dos povos se cada um dos indivíduos não estivesse disposto a rever sua própria maneira de ser, de pensar e de agir.” (KOSOVISKI, 2000, p.4).

Cumpre ainda estabelecer que, para determinados estudiosos, há a distinção puramente terminológica entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, uma vez que ambas as expressões referem-se ao mesmo grupamento de direitos.

No entanto, sua aplicação difere de acordo com sua positivação em determinada ordem jurídica.

Sobre o tema destaca-se a lição do professor José Afonso da Silva:

“Direitos Humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais. Contra ela, assim como contra a terminologia direitos do homem,objeta-se que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano pode ser titular de direitos.”

E continua:

“Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informa a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas[8]”.

De tal forma, resta claro que as terminologias são aplicadas de acordo com a circunstância que se apresenta, levando-se em conta que tanto uma quanto a outra tratam dos mesmos direitos inerentes ao ser humano, devendo-se apenas atentar para sua positivação em determinado ordenamento jurídico.

2.2. A PROTEÇÃO JURÍDICA DOS DIREITOS HUMANOS DAS VÍTIMAS

Há que se limitar que para o presente estudo o cerne das pesquisas é o ordenamento jurídico brasileiro e a sua forma de lidar com os Direitos Humanos, especialmente no período histórico situado após a Constituição Federal de 1.988, promulgada em 05 de Outubro daquele ano.

Contudo, é de salutar importância abordar, ainda que brevemente o momento histórico que antecedeu a promulgação do texto constitucional vigente.

O árduo esforço pela redemocratização do país culminou com o fim da ditadura militar, período em que verificou-se a supressão de diversos direitos e garantias individuais e coletivas, inclusive marcado pela prisão imotivada, pela tortura e pelo assassinato de grande número de pessoas consideradas responsáveis pela prática de atos de cunho subversivo à ordem pública.

Após o fim de tal período turbulento na história do Brasil, o processo de redemocratização é coroado com a promulgação da Constituição Cidadã, que traz em seu texto extenso rol de direitos e garantias fundamentais, de forma prolixa, segundo muitos doutrinadores, mas necessária, com vistas a afirmar a condição de limitação aos arbítrios estatais recentemente experimentados pelos indivíduos.

“A constituição de 1988 apresenta algumas variações em relação ao modelo tradicional, seguido pelas anteriores.

Em primeiro lugar, ela enumera os direitos e garantias fundamentais logo num Título II, antecipando-os, portanto, à estruturação do Estado. Quis com isso marcar a preeminência que lhes reconhece.” (FERREIRA FILHO, 2006, p.99).

Destarte, no Brasil a tendência à proteção dos direitos e garantias fundamentais é retomada com considerável força após 05 de Outubro de 1988, com a promulgação da Constituição Federal.

A ciência da Vitimologia e o resguardo dos direitos humanos têm estreita ligação no sentido de que o objetivo de ambos é a concretização das bases para o resgate ao respeito pelo ser humano e seus direitos fundamentais, oportunizando assim, a mitigação dos danos causados àqueles indivíduos que sofreram violações e abusos de seus direitos.

Saliente-se que a Vitimologia, bem como as Comissões de Direitos Humanos, desde o seu surgimento, sempre buscaram a realização da paz social e efetivação dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente e na ordem jurídica internacional.

“Vitimologia e Direitos Humanos são expressões e atores sociais que caminham na mesma direção, em busca dos mesmos objetivos,a dizer, do resgate da dignidade dos princípios fundamentais da pessoa humana, a lapidar a defesa de pessoas ou comunidades, aquelas que convivem com a marginalização e a exclusão de seis direitos fundamentais.” (KOSOVISKI, 2000, p.01).

Não há que se falar em tratamento digno para a vítima de infração penal, ou mesmo em diminuição nas causas que ensejam a vitimização sem abordar os Direitos Humanos e sua incidência na vida do indivíduo e nas das pessoas que compõem determinado grupo social.

“É nesse contexto que importa realçar outra dimensão importante da tradição que ensejou o tema dos direitos humanos, a saber, o individualismo na sua acepção mais ampla, ou seja, todas as tendências vêm do indivíduo, na sua subjetividade, o dado fundamental da realidade. O individualismo é parte integrante da lógica da modernidade, que reconhece a liberdade como a faculdade de autodeterminação de todo ser humano.” ( LAFER, 2006, p.120)

A estreita relação entre a Vitimologia e os Direitos Humanos encontra razão de ser em virtude da complementaridade que tais áreas do conhecimento apresentam, pois a Vitimologia oferece dados concretos advindos de suas pesquisas que ampliam os horizontes dos estudos voltados aos Direitos Humanos e sua efetivação.

 “Como uma ciência mais estratificada, a vitimologia pode oferecer aos direitos humanos a metodologia e um conjunto de teorias vitimológicas e questões, sem contar com dados comparativos e outra categoria de vítimas, como vítimas de crimes. Com ênfase no crime, a vitimologia pode auxiliar os direitos humanos a teorizar mais claramente a respeito dos "crimes contra a humanidade" ainda parcialmente operacionalizado.” (KOSOVSKI, 2011, p.5).

Por seu turno, o conhecimento acerca dos Direitos Humanos amplia o enfoque sobre violações de direitos, fontes e causas de vitimização.

“O campo dos direitos humanos pode oferecer à vitimologia uma concepção mais ampla de vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas criminais, apesar de seus efeitos danosos. O enfoque de direitos humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e a relação entre causas do crime e causas da opressão. Podemos ver, por exemplo, que a opressão produz as condições primordiais para os crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Uma análise do ponto de vista dos direitos humanos é detectar as condições adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização.” (KOSOVSKI, 2011, p.5).

De fundamental importância para o presente estudo é a análise da definição acerca de quem pode ser considerado vítima, partindo-se primeiramente da conceituação apresentada no ano de 1.985, no texto da Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder, nos itens 1 e 18 do mencionado documento.

“1. Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-Membros, incluída a que proscreve o abuso de poder.

18. Serão consideradas “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que não cheguem a constituir violações do direito penal nacional, mas violem normas internacionalmente reconhecidas relativas aos direitos humanos (Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – 1985).”

Percebe-se que a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder traça um conceito amplo, pois possui a finalidade de abarcar, de modo abrangente, os indivíduos que de alguma forma vêm sua dignidade e seus direitos fundamentais ofendidos.

De grande relevância para o presente estudo é destacar que o conceito de vítima, conforme já asseverado, vai muito além das pessoas que são alvos de crimes propriamente ditos.

“Ainda que resulte difícil, evitaremos a identificação da vítima como sujeito passivo do delito. Dentre o conceito das vítimas, há que se incluir não somente os sujeitos passivos do delito, pois aquelas superam muito frequentemente a estes. Por exemplo, nos delitos de terrorismo, os sujeitos passivos de um delito são cinco, dez ou cinqüenta pessoas; em lugar disso, as vítimas podem ser cem ou, ainda, mil pessoas. Em alguns casos, podem ser mil os militares ou jornalistas que, diante do assassinato de um militar ou um jornalista por grupo terrorista se sintam diretamente ameaçados, vítimados, se antes sofreram também ameaças dos terroristas.” (BERISTAIN, 2000, p.84).

Portanto, o conceito originalmente traçado no ano de 1.985 é deveras abrangente e não por acaso, pois a posição de vítima muitas vezes suplanta a pessoa do sujeito passivo do delito e atinge testemunhas, familiares e de forma mais extensa todos aqueles que sofrem o impacto resultante do ato criminoso.

Contudo, para o direito penal, o conceito se mostra um tanto quanto restrito, em virtude principalmente da impossibilidade lógica de interpretação por demais extensivas.

“Deve-se entender que “vítima” para o direito penal é o sujeito passivo de um crime. Ele se identifica com o titular do interesse atingido pelo crime, de forma mediata ou imediata, mas desde que seja aquele que a norma tutela. Em todo crime há dois sujeitos passivos: um sujeito passivo constante que é o Estado-Administração, pois todo crime viola um interesse público, e um sujeito passivo eventual, que é o titular do interesse concreto.” (GRECO, 2002, p. 17).

Assim, embora haja certa restrição do conceito de vítima frente ao direito penal, nos demais campos, a conceituação apresenta-se de forma extensiva, sendo certo que sempre será plenamente cabível a proteção aos direitos humanos das vítimas.

O maior amparo às vítimas, com a dedicação de maior atenção institucional aos seus anseios e angústias não pode, por  outro lado, resultar na excessiva intensificação das sanções penais a serem aplicadas ao criminoso, sendo indispensável que os estudos vitimológicos sejam empregados com parcimônia.

“Certas investigações vitimológicas, em alguns países, sobretudo nos EUA, têm servido, paradoxalmente, para reforçar as tendências favoráveis a sancionar com mais dureza o delinquente, como mostra Kaiser. Entre nós na Espanha, estamos ainda em véspera desse excessivo abuso da vitimologia. Mas, de todas as maneiras, convém ter presente que também a vitimologia deve reconhecer suas fronteiras.” (BERISTAIN, 2000, p.92).

A delimitação do campo de atuação e a prevenção, com vistas a não permitir que o afã pela proteção da vítima induza a abusos, principalmente em relação à figura do infrator da norma são questões que devem sempre estar presentes na mente daqueles que se dedicam ao estudo da Vitimologia, sob pena de se incorrer em equívocos que desviam a ciência de seu escopo primeiro, qual seja, o resguardo aos Direitos Humanos.

Significa afirmar que não se pode resguardar adequadamente a vítima quando busca-se, ainda que de forma bem-intencionada, a violação excessiva dos direitos do delinquente. É necessária a razoável aplicação dos institutos previstos na constituição federal e na legislação penal, a fim de que sejam evitados os abusos e a degradação dos indivíduos, sejam vítimas ou criminosos.

3. NOVAS FORMAS DE PROTEÇÃO À VÍTIMA

3.1 – O PROGRAMA NACIONAL DE PROTEÇÃO À VÍTIMA

Após a afirmação no sentido de que a Vitimologia constitui-se em um campo multidisciplinar, voltado à análise da vítima no seu aspecto biopsicossocial, é possível perceber que sua atuação está calcada no estudo, pesquisa e nas alterações da Lei, com o fito de fornecer  assistência e proteção à vítima.

A ciência da vitimologia mostra-se como caminho para a mudança na forma de se desenvolver o processo penal, bem como na abordagem do problema da criminalidade Estado.

“A vitimologia é um campo multidisciplinar por excelência e abrange vários níveis de atuação em diferentes contextos. Podemos dizer que repousa em um tripé: estudo e pesquisa, mudança na legislação e assistência e proteção à vítima. Cada um desses segmentos é de importância fundamental para uma nova visão do crime e de todo o sistema penal.” (KOSOVSKI, 2000, p.21).

É fato que as conclusões atingidas pelos estudos vitimológicos tem sido utilizados como base para a criação de programas especiais de proteção e amparo às vítimas, sendo que o objetivo último de tais ações governamentais é o resguardo dos direitos humanos dos sujeitos vitimizados.

“A visão vitimológica tem contribuído para modificar este contexto, inclusive apontando medidas extrajudiciais quando cabíveis, que geram diminuição da hostilidade e melhor resolução de conflitos Muitos países de várias partes do mundo, inclusive no Continente Americano já estão adiantados na prática da aplicação conceitual, na modificação de leis e principalmente na criação de centros de proteção e atendimento às vítimas.” (KOSOVSKI, 2000, p.22).

Importante ainda ressalvar que a melhor compreensão da vítima, além de ampliar o foco das atenções no decorrer do processo penal, já engessado e pré-concebido para a perseguição ao criminoso, auxilia na consolidação e na consagração dos direitos humanos que devem ser exercidos também e principalmente pela pessoa que vê sua dignidade violada pela conduta do autor do crime.

“Enquanto vítimas de crime freqüentemente têm preocupação referente à sua participação no processo, na lei, nas conseqüências e efetividade, vítimas de opressão e abuso de poder, necessitam e querem proteção e assistência antes de mais nada. A parceria entre Vitimologia, Movimentos de Assistência às Vítimas e Direitos Humanos ensejam mais perspectivas e fortalece ambas as partes.” (KOSOVSKI, 2011, p.1).

Busca-se então, incluir nas preocupações do Estado o amparo à vítima, sem olvidar-se da aplicação da devida reprimenda ao delinquente.

“Todo o arcabouço do sistema penal, a começar com a polícia, passando pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e finalmente a Execução da Pena é calcado quase que sempre exclusivamente na perseguição ao criminoso (nem sempre bem sucedida) e na sua punição (quase sempre falha) deixando fora das preocupações do Estado a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa e que deve requerer mais atenção. O condenado, cumprindo pena de prisão, recebe do INSS o auxílio reclusão. E a vítima, como é amparada no seu prejuízo às vezes incalculável?”(KOSOVSKI, 2000, p.21).

No que diz respeito à efetiva proteção estatal à vítima e à testemunha, no Brasil foi criado em meados da década de 1.990, através da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, o Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha – PROVITA, que posteriormente foi positivado no ordenamento pátrio por intermédio da edição da Lei nº 9.807/99.

Como principal objeto, o mencionado diploma legal visa estabelecer definições e regras procedimentais acerca da proteção, assistência e reinserção social de vítimas e testemunhas que se encontrem ameaçadas e estão a auxiliar  o Estado durante a investigação ou o processo criminal:

“Capítulo I

Da Proteção Especial para as vítimas e testemunhas

Art. 1º –  As Medidas de Proteção requeridas por vítimas ou por testemunhas de crimes que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou o processo criminal serão prestadas pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito das respectivas competências, na forma de programas especiais organizados com base nas disposições desta Lei (Lei nº 9.807 de 13 de Julho de 1.999).”

Importante destacar que o mencionado Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha atingiu resultados satisfatórios segundo os patamares da Secretaria de Direitos Humanos que o instituiu e atualmente tal programa compõe a lista de políticas públicas do Governo Federal, inclusive alastrando-se para mais de dez Estados da Federação.

“O Programa tem status de política pública prioritária no âmbito do Governo Federal, haja vista integrar o Programa Nacional de Direitos Humanos, estar contemplado no Plano Plurianual 2000-2003 (Avança Brasil) e ser um dos compromissos do recém lançado Plano Nacional de Segurança Pública.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011).

Dado o sucesso atingido pelo Programa, foi criado pela União o Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas, sendo que sua regulamentação deu-se através do Decreto nº 3.518/00.

“O Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas é composto pelo Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, regulamentado pelo Decreto nº 3.518/00 e gerenciado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, e pelos programas estaduais de proteção.

Atualmente já são 10 (dez) os Estados que integram o Sistema: Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Esses programas, implementados por meio de convênio celebrado entre a respectiva Secretaria de Justiça e/ou Segurança Pública e a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, possuem capacidade média de atendimento de 30 (trinta) beneficiários, entre testemunhas, vítimas e seus familiares ou dependentes. As situações de proteção registradas em Estados que ainda não se incorporaram ao Sistema são atendidas pelo Programa Federal.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011).

Para que a vítima ou testemunha que se encontra sob grave ameaça seja incluída no programa é necessário o preenchimento de requisitos estabelecidos pela Lei nº 9.807/99, entre eles a compatibilidade com as regras do programa de proteção, uma vez que diversas são as privações as quais a vítima é submetida, tudo objetivando a preservação de sua integridade física e moral, bem como de seus familiares.

Da análise do texto legal, vislumbram-se cinco requisitos e circunstâncias a serem observadas quando da deliberação acerca da inclusão da vítima no sistema nacional de proteção.

“a) Situação de risco. A pessoa deve estar "coagida ou exposta a grave ameaça" (art. 1º, caput). Obviamente não é necessário que a coação ou ameaça tenha já se tenham consumado, sendo bastante a existência de elementos que demonstrem a probabilidade de que tal possa vir a ocorrer. A situação de risco, entretanto, deve ser atual.

b) Relação de causalidade. A situação de risco em que se encontra a pessoa deve decorrer da colaboração por ela prestada a procedimento criminal em que figura como vítima ou testemunha (art. 1º, caput). Assim, pessoas sob ameaça ou coação motivadas por quaisquer outros fatores não comportam ingresso nos programas.

c) Personalidade e conduta compatíveis. As pessoas a serem incluídas nos programas devem ter personalidade e conduta compatíveis com as restrições de comportamento a eles inerentes (art. 2º, § 2º), sob pena de por em risco as demais pessoas protegidas, as equipes técnicas e a rede de proteção como um todo. Daí porque a decisão de ingresso só é tomada após a realização de uma entrevista conduzida por uma equipe multidisciplinar, incluindo um psicólogo, e os protegidos podem ser excluídos quando revelarem conduta incompatível (art. 10, II, "b").

d) Inexistência de limitações à liberdade. É necessário que a pessoa esteja no gozo de sua liberdade, razão pela qual estão excluídos os "condenados que estejam cumprindo pena e os indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas modalidades" (art. 2º, § 2º), cidadãos que já se encontram sob custódia do Estado.

e) Anuência do protegido. O ingresso no programas, as restrições de segurança e demais medidas por eles adotadas terão sempre a ciência e concordância da pessoa a ser protegida, ou de seu representante legal (art. 2º, § 3º), que serão expressas em Termo de Compromisso assinado no momento da inclusão.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2011).

Há que se lembrar, contudo, que o caminho rumo ao melhor atendimento às vítimas não se atém somente è edição de textos legais voltados ao tema, mas depende amplamente de modificações orçamentárias estatais para que o contido na lei possa vir a realizar-se concretamente.

“Essa cosmovisão reclama amplas modificações nos orçamentos dos estados para poder arcar com os gastos da mais completa atenção médica, psicológica, sociológica, policial, etc. às vítimas da criminalidade e das estruturas sociais injustas. Ainda não foi alcançada a mentalização desejável da comunidade.” (BERISTAIN, 2000, p.77).

Além disso, o mencionado caminho atravessa também uma transformação na mentalidade daqueles que operacionalizam o Direito, desviando-a, ainda que de forma modesta, para a figura da vítima.

“Este deve esquecer-se de sua mentalidade tradicional e atual que tende exclusiva ou quase exclusivamente para o delinquente, e que desconhece, esquece e marginaliza (ou pior ainda, estigmatiza pela segunda vez) as vítimas. Embora seja estranho a muitos juízes e não-juízes, quem administra a justiça penal deve, principalmente, conhecer, ver, escutar e atender as vítimas; a todas as vítimas, e não somente às diretas em sentido restrito,isto é, não somente aos sujeitos passivos da infração.” (BERISTAIN, 2000, p.193)

A título de ilustração e a fim de reforçar o argumento de que a preocupação com os direitos das vítimas é tendência que gradativamente ganha força, inclusive no exterior, destaca-se o programa norte-americano de proteção às vítimas e testemunhas.

“Programa de Assistência ATF 's Victim / Witness foi implementado em 1999.. Atualmente existem 23 Victim / Witness coordenações localizadas em cada uma das divisões do nosso campo em todo o país. Como uma agência de aplicação da lei federal ATF, está preocupada com os problemas freqüentemente experimentados por vítimas e testemunhas de crimes federais. Como a vítima ou a testemunha poderá passar por períodos de raiva, confusão, frustração ou medo. ATF está empenhada em garantir que as vítimas e testemunhas recebam os direitos a que têm direito e assistência para ajudá-los a lidar com o impacto do crime. Tratamento das vítimas e testemunhas com respeito e fornecendo-lhes referências e benefícios de assistência prática.”

Ressalte-se que embora haja registros de resultados positivos no desenvolvimento dos programas especiais federais de proteção à vítima e às testemunhas no Brasil, ainda há muito que ser feito em termos de melhor aplicação da lei penal e maior assistência às vítimas, principalmente aquelas que não preenchem as exigências legais para serem inseridas nos programas especializados, que constituem a grande maioria de vítimas de delitos verificada no país.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme o exposto no presente estudo, há que se ter em mente que a ciência autônoma da Vitimologia presta-se à busca pela compreensão da vítima em seus mais diversos aspectos, como o biológico, o psicológico e o social, a fim de que seja possível determinar sua maior ou menor participação na ocorrência dos delitos.

Além disso, a Vitimologia tem por escopo lançar as bases, através dos resultados de suas pesquisas, para que haja a maior proteção aos direitos humanos das vítimas de delitos de todas as naturezas.

Dessa forma, é nítida a relação complementar que se estabelece entre ambas as áreas do conhecimento, sendo indissociável ao estudo da Vitimologia a compreensão do que é considerado pelos estudiosos das ciências jurídicas como direitos humanos, assim como de fundamental importância o aprofundamento das questões apresentadas pela Vitimologia, a fim de que o resguardo dos direitos humanos se faça de maneira cada vez mais ampla.

Não se pode olvidar do Sistema Nacional de Proteção à Vítima e Testemunha – PROVITA que, embora apresente resultados ainda incipientes representa a preocupação do Estado no que concerne à proteção de vítimas e testemunhas dispostas a colaborar com as investigações criminais.

Em virtude de tais considerações, resta evidente a importância da compreensão da vítima de modo mais amplo possível, pois a partir de tal entendimento, é possível traçar políticas públicas voltadas para a seara criminal em seus mais diversos aspectos, desde a efetiva prevenção à ocorrência dos crimes até a forma como deve se portar o Estado, através de seus agentes, durante a persecução penal, frente ao indivíduo vitimizado, a fim de que sua situação de vítima não se agrave ainda mais.

A ciência da Vitimologia apresenta-se como instrumento indispensável ao Estado Democrático de Direito hoje em vigor, uma vez que auxilia sobremaneira a realização dos direitos fundamentais, bem como reafirma os preceitos de igualdade e dignidade insculpidos na Lei Maior de 05 de Outubro de 1.988.

 

Fontes
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KOSOVSKI, Ester. Vitimologia e Direitos Humanos: Uma boa parceria. Documento eletrônico. {on line}. Disponível na Internet via WWW.URL:< http://www.sbvitimologia.org/artigos4.html>. Acesso em 01 de Novembro de 2011.
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FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2006.
GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004.
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SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2009.
 
Notas:
 
[1] HENTI, Hans Von – O criminoso e a vítima -1948

[2]MENDELSOHN, Benjamin –  As Origens da Doutrina da Vitimologia – 1947

[3] MENDELSOHN, Benjamin  – Estudos Internacionais de Psicossociologia Criminal – 1956

[4] MENDELSOHN, Benjamin – A Ciência Atual da Vitimologia – 1957

[5] Vide Anexo A do presente trabalho.

[6] Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder – 1985

[7] Vladimir Brega Filho, Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, p. 22.

[8] SILVA, 2009, p.176.


Informações Sobre o Autor

João Felipe da Silva

Advogado; Graduado em 2011; Professor de Filosofia Jurídica do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos/SP, Pós-Graduando em Direito do Estado