Sumário: Introdução. 1. O fenômeno da constitucionalização do Direito Privado. 1.1. A evolução histórica da relação entre o Direito Público e o Direito Privado; 1.2. A superação da supremacia do Direito Privado sobre o Direito Público; 2. A dinâmica ideal das relações entre o Direito Ordinário e o Direito Constitucional; 2.1. Fundamento Filosófico: o bem comum, o bem público e o bem privado; 2.2. O princípio da subsidiariedade aplicado às relações estabelecidas entre o ordenamento constitucional e o ordinário; Conclusão
Resumo: Se antes as esferas do privado e do público eram incomunicáveis, atualmente as relações estabelecidas entre o Direito Constitucional e o Direito Privado se intensificaram. Tal dinâmica, contudo, deve ser orientada pelo princípio da subsidiariedade. Assim, sustenta-se que o Direito Constitucional deve ser aplicado às relações privadas subsidiariamente ao Direito Ordinário e não em substituição a esse, o que necessariamente resguarda a autonomia privada e empresta maior valor a ambos ramos do direito.
Introdução
Muito se tem discutido, no mundo jurídico acadêmico brasileiro, a constitucionalização do direito privado[1]. Alguns sustentam que tal fenômeno pode ser visto como uma manifestação da publicização do direito privado, havendo, portanto, uma atenuação da dicotomia existente entre o público e o privado. Contudo, publicização não se confunde com constitucionalização, sobretudo se entendida a primeira expressão como a subordinação do Direito Privado ao Direito Público.
O emprego do termo publicização é mais adequado para designar a intervenção estatal própria do Estado Social, que objetivava proteger, através da atuação legislativa, aqueles que estavam em situação desfavorecida em determinada relação jurídica. Naquele período, matérias relacionadas às relações de trabalho e às relações de consumo, entre outras, que eram originariamente disciplinadas nos códigos civis, passaram a receber tratamento por ramos autônomos do Direito[2].
Constitucionalização, por outro lado, vem a ser a submissão do direito positivo infraconstitucional aos fundamentos de validade constitucionalmente estabelecidos e não mais do que isso. A Constituição, desde que teve a sua força normativa reconhecida e garantida por autentica jurisdição, passou a condicionar efetivamente a validade do direito infraconstitucional, exigindo a conformação deste último com as regras e princípios extraídas do seu texto.
1.O fenômeno da constitucionalização do direito privado
Ao proceder a análise das relações estabelecidas entre o Direito Público e o Direito Privado ao longo da história, é possível indicar algumas das razões pelas quais o Direito evoluiu para o atual estágio, no qual tem-se falado na constitucionalização do Direito Privado. Sustenta-se que as esferas que delimitavam o âmbito do Direito Privado e do Direito Público e que há muito tempo ocupavam posições opostas no ordenamento jurídico deixaram de ser intocáveis e passaram a se sobrepor.
1.1. A evolução histórica da relação entre o Direito Público e o Direito Privado.
O marco inicial da divisão entre Direito Público e Privado tem sido apontado como sendo o Direito Romano, na medida em que o Corpus Iuris Civilis já consagrava os termos ius publicum e ius privatum, bem como lex publica e lex privata, todavia, sem a mesma conotação semântica que atribuímos atualmente aos vocábulos, cujos significados foram ampliados durante o período medieval.
Com o esfacelamento do Império Romano, cada povoado adquiriu autonomia organizacional, importando na fragmentação territorial e social do poder político e, em conseqüência, o direito passou a ser marcado pela descentralização de suas fontes, assim como em sua aplicação[3].
A sociedade medieval, notadamente hierarquizada, se organizava em feudos através de uma teia de pactos e compromissos, escritos e costumeiros, que garantiam proteção a uns e poder a outros. Em virtude da descentralização territorial da vida sociopolítica, não existia uma esfera propriamente pública, estando o público na dependência das relações privadas[4].
A legitimidade e viabilidade da ordem feudal, entretanto, deixaram de existir na medida em que aqueles que decidiam distanciavam-se dos que sofriam os efeitos das decisões. Por outro lado, simultaneamente houve a aproximação das populações e a intensificação de suas relações para além dos feudos, tendo este desenvolvimento socioeconômico exigido uma ordem territorial maior, iniciando-se o processo de nacionalização. Contudo, a viabilidade desta nova ordem dependeria também da garantia de que as decisões políticas seriam imparciais, orientadas pelo bem de todos e não pelos interesses particulares. Vislumbrou-se, pois, a necessidade de um espaço autônomo distanciado dos interesses privados[5].
A evolução histórica trouxe a formação dos primeiros embriões de Estados Nacionais, na forma de regimes absolutistas, onde o monarca incorporava todos os poderes nas suas próprias mãos[6]. A concentração do poder, bem como a criação da esfera autônoma do público, foram pressupostos à distribuição dos poderes que se seguiria[7]. Assim, pois, a esfera pública autônoma passou a existir, residindo nela o poder político soberano, uno, absoluto e indiviso.
Nas primeiras fases do capitalismo, a versão absolutista do Estado Moderno contemplou os objetivos da burguesia. No final do século XVIII, contudo, os burgueses já fortalecidos economicamente tencionaram alcançar poder político e liberdade frente ao Estado[8]. O poder público passou a ser visto como um inimigo da liberdade individual, pois qualquer restrição ao individual em favor do coletivo era tida como ilegítima[9].
Por certo, o poder despótico não conhecia verdadeiros limites[10], mormente porque, além de não haver repartição de poderes, o único existente não possuía disciplina jurídica, atualmente consagrada nas Constituições. O arranjo, no qual todas as funções concentravam-se em uma única instituição – a Coroa –, foi percebido como incompatível com a idéia de submissão ao Direito, já que isso dependeria de uma distribuição mínima das funções entre órgãos de poderes distintos[11].
Montesquieu, tendo observado a realidade histórica inglesa[12], elaborou a doutrina da separação dos poderes estatais. Sua construção teórica objetivou desenhar as linhas fundamentais da organização política necessária à garantia da liberdade e, de fato, a tripartição dos poderes, juntamente com o advento das Constituições, garantiu a supremacia do Direito, vindo a concretizar os anseios da burguesia e do movimento constitucionalista, surgido por ocasião da revolução liberal franco-americana[13].
Neste período histórico, com a produção dos primeiros escritos que consagravam essa nova concepção – Declaração de Direitos da Virgínia, Declaração de Independência dos Estados Unidos, ambas de 1776, e a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789[14] –, surgiram as primeiras Constituições, ditas ‘liberais’, conquanto eram fruto da concepção de Estado e economia vigente.
As Constituições Liberais tutelavam, precipuamente, os direitos fundamentais ditos de primeira geração, os quais estão ligados às liberdades individuais, caracterizando-se como obrigações de não-fazer por parte do Estado. Percebe-se, pois, que o liberalismo confiou ao Direito a tarefa de instituir e organizar o poder, mas principalmente disciplinar e limitar a sua atuação, sempre resguardando o fundamental: a liberdade e, por conseguinte, os direitos do homem e do cidadão[15].
Contemporaneamente ao constitucionalismo, desenvolveu-se o movimento codificatório que objetivava, através da elaboração de normas reunidas em um único documento, assegurar o maior espaço para a autonomia dos indivíduos, principalmente no campo econômico, já que, no período liberal, a dimensão econômica do homem se sobressaía às demais[16]. Neste sentido, ganharam importância os princípios da legalidade e da segurança jurídica, como expressão máxima da garantia da liberdade do indivíduo frente ao Estado.
Desenvolveram-se, portanto, os Códigos, pretendendo esgotar todo o Direito. Nesta linha, o pensamento jurídico era capitaneado pelo Direito Privado, sendo este impregnado das idéias positivistas, que impunham o rigorismo das formas e o excessivo apego ao direito escrito. O Direito, pensado como um sistema fechado, em nome da segurança jurídica, deveria prever todas as possibilidades fáticas em enunciados normativos reduzidos a uma codificação[17].
O Código de Napoleão, fruto das doutrinas individualistas e voluntaristas[18], é o melhor expoente do período, no qual o Direito Civil foi identificado com o próprio Código Civil. De um lado, o Direito Privado objetivava regular as relações estabelecidas entre os indivíduos, bem como seu estado, sua capacidade, sua família e sua propriedade, a fim de garantir o pleno desenvolvimento de suas atividades econômicas. De outro, o Direito Público destinava-se à tutela de interesses gerais e desde que os efeitos de tal ato fossem uma exigência dos próprios indivíduos[19].
A civilística clássica, portanto, sustentava a idéia de independência total entre as esferas pública e privada, determinando a separação, inclusive, no campo jurídico dos dois ramos distintos do Direito – o público e o privado. Dessa maneira, estaria resguardado o valor máximo da época – liberdade individual.
1.2. A superação da supremacia do Direito Privado sobre o Direito Público
No período das codificações, o Direito Privado assumiu papel de preponderância no ordenamento jurídico, razão pela qual o código de leis civis situou-se no centro do sistema jurídico. O âmbito de atuação do Direito Público, nesse sentido, era bastante restrito, mormente porque a doutrina liberal impunha uma atuação omissiva do Estado, que objetivava somente assegurar a igualdade formal. Para tanto, a técnica utilizada nas codificações foi a criação de um sujeito de direito único – por exemplo: o pai, o contratante, o proprietário, etc [20].
Tal paradigma rompeu-se com o advento do século XX e suas vicissitudes, quando o Estado Liberal revelou-se incapaz de responder às crises que assolaram a Europa e, sobretudo, os Estados Unidos. A primeira forma de Estado Moderno foi, então, substituída pelo Estado Social, que tomou para si atividades administrativas fundamentais e intensificou o controle das atividades dos particulares[21].
A influência desse contexto histórico foi logo sentida pelo Direito Privado. Os direitos consagrados nos Códigos como absolutos foram relativizados frente às necessidades sociais, isto é, os institutos de Direito Privado passam a responder por sua função social. Conseqüência importante a ser salientada foi o fim da ilusão de que existia um sujeito de direito único, reconhecendo as especificidades de diferentes relações, tais como aquelas estabelecidas entre fornecedor e consumidor, locador e locatário, empregador e empregado, etc[22]. Surgem, pois, os chamados microssistemas, buscando dar proteção a parte hipossuficiente encontradas nestas situações específicas. Tais microssistemas reduziram sensivelmente a importância dos Códigos para os ordenamentos jurídicos, sendo, algumas vezes, questionada a necessidade de sua manutenção[23].
Neste ínterim, ganharam prestígio as Constituições, que após um período de inação, passam a exercer um importante papel na reconstrução do Direito. No período sucessivo às duas grandes guerras, as Constituições passaram a consagrar valores, direitos e garantias fundamentais, que não se limitavam somente à proteção das liberdades, mas se referiam a outros elementos basilares da dignidade humana, atentando, principalmente, para a igualdade material. Além disso, na medida em que a força normativa que já possuíam desde o período liberal passou a ser garantida por autentica jurisdição, as Constituições deixaram de ser meras cartas de princípios.
A partir de então, houve uma mudança nas relações entre Direito Público e Direito Privado, porquanto as disposições normativas constitucionais passaram a ingerir no domínio privado. Da incomunicabilidade existente entre as esferas, se estabeleceu, pois, uma relação hierárquica de supremacia e complementaridade. As normas constitucionais conferiam conteúdo às normas de Direito Privado, adequando a letra da lei aos propósitos esculpidos na Carta Magna.
A aplicação das normas constitucionais no direito brasileiro, contudo, encontrava barreiras, pois o Código Civil de 1916 que era permeado pela lógica das codificações do século XIX sob a idéia de sistema fechado com pretensão de esgotar todos os fatos da vida social no corpo do texto legal. A entrada em vigor do Código Civil de 2002, entretanto, imprime uma nova metodologia para o Direito Privado. O sistema fechado do antigo Código dá lugar a um sistema aberto, repleto de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, que permite não só o acompanhamento da dinamicidade da realidade social, mas a integração do ordenamento jurídico.
A utilização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados incita a jurisprudência e a doutrina ao trabalho exegético de concreção dos dispositivos legais atentando para a “ética da situação”[24]. A referida concreção é alcançada, pois, por meio de conexões inter-sistemáticas e intra-sistemáticas que conferem unidade e coesão ao ordenamento jurídico como um todo.
A Constituição consagrou-se definitivamente no ápice do ordenamento jurídico, irradiando valores para todos os ramos do direito e servindo como fundamento de validade para o ordenamento jurídico a ela subordinado. Se antes o Código Civil estava no centro das relações de Direito Privado, agora está a Constituição, que é a base única dos princípios fundamentais do ordenamento, podendo-se falar, pois, na superação da supremacia do Direito Privado sobre o Direito Público[25].
2. A dinâmica ideal das relações entre o direito ordinário e o direito constitucional
2.1.Fundamento filosófico: o bem comum, o bem público e o bem privado
Antes de apontar a dinâmica ideal das relações a serem estabelecidas entre o ordenamento constitucional e o ordinário, faz-se necessário tecer algumas considerações a respeito do bem comum, do bem público e do bem privado, objetivando demonstrar a respectiva existência e a forma com que cada ramo do Direito deve orientar os indivíduos para a sua concretização.
O ser humano só consegue alcançar a sua realização plena dentro de uma comunidade, não apenas por uma necessidade instrumental dos outros, mas porque o viver bem de cada indivíduo pressupõe o viver bem junto aos outros[26]. Além daqueles valores que são próprios à realização individual de cada ser humano, há um bem que é próprio e comum a todos os seres humanos. Por isso, fala-se em bem comum.[27].
Ao se questionar sobre o conteúdo de bem comum, muitos intuiriam tratar-se da soma dos bens individuais[28], ou mesmo, do bem do maior número de indivíduos singularmente considerados, noção difundida pelo utilitarismo. Contrariamente, contudo, o bem comum varia conforme o tipo da relação estabelecida, devendo ser determinado caso a caso[29]. Em todas formas de interação e coordenação é possível determinar o bem comum.
No caso da comunidade política o bem comum diz respeito à garantia das condições necessárias ao favorecimento da realização integral, por cada indivíduo em comunidade, de seu desenvolvimento pessoal[30]. Isto não implica, todavia, que os membros da comunidade tenham os mesmos valores ou objetivos (ou conjunto de valores ou de objetivos), mas que mantenham um conjunto de condições que é necessário ser seguido, se cada um dos membros pretende alcançar os seus próprios objetivos[31].
O bem comum é, pois, o bem de todos enquanto iguais, concluindo que a igualdade reside justamente na condição humana e em sua conseqüente dignidade[32]. Por essa razão, diz-se que o bem comum coincide, ou ao menos se harmoniza, em certa medida, com o bem de cada indivíduo[33]. Não poder-se-ia falar em bem comum sem que este contemplasse o bem pessoal de cada membro da comunidade; por outro lado, assumindo tal assertiva, todo bem pessoal que não estiver inserido no bem comum é falho[34].
Não só a sociedade política se institui em vista a algum bem – no caso o bem comum –, mas certo é que o bem é o fundamento de toda associação humana[35]. Assim ocorre, então, na família, nas comunidades intermediárias e na comunidade internacional.
Na família e nas comunidades intermediárias não se pode identificar o bem comum em sentido próprio, mas o bem privado. O bem privado diz com a realização do ser humano nas relações estabelecidas com outros seres humanos buscando satisfazer interesses pessoais próprios de sua dimensão social, profissional, artística, religiosa, etc. Certo é que, por ser próprio dos indivíduos, o Estado não deve influir nas escolhas em tais âmbitos, se limitando, por meio do Direito Privado, a orientar as pessoas para a concretização do bem.
O Direito Privado, pois, deve estar atento às manifestações e anseios sociais, sob pena de se tornar um Direito desvinculado da realidade e, conseqüentemente, sem eficácia. Por essa razão justamente, o Direito Privado deve ser flexível, utilizando-se de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, de tal sorte que o aplicador faça a adequação entre as normas e a realidade concreta.
Neste âmbito, os usos e costumes também exercem um grande papel ao lado das leis emanadas pelo legislador ordinário. Ainda que o costume social seja expressão de vontades particulares e careça de sanção, ele nasce espontaneamente no interior da sociedade, o que lhe confere legitimidade e eficácia à semelhança das leis e atos emanados da autoridade constituída[36].
O Estado, por sua vez, possui um bem próprio seu, que denominaremos de bem público. O bem público é um bem limitado, o que pode ser compreendido fundamentalmente a partir de duas razões. A primeira refere-se ao princípio da subsidiariedade aplicado à comunidade política. De fato, não cabe ao Estado a promoção da realização plena dos seus cidadãos, isto porque parte da realização de cada cidadão pode ser promovida por instâncias menores – pelos próprios indivíduos, famílias, associações e outras comunidades. Não seria, portanto, o Estado o responsável por todas as exigências de coordenação comunitária em prol da realização humana. É dever do Estado, como foi visto no item anterior, somente a promoção daqueles aspectos que as instâncias menores não conseguirem promover eficazmente por si só. Logo, a realização plena não pode ser atribuída a uma instância, mas a todas, na medida em que elas se complementam nesta função[37]. A segunda razão decorre da constatação de que parece existir bens que não pertencem ao âmbito da atuação estatal, que se situam em uma outra esfera, ou seja, na esfera privada. Nesse sentido a limitação não decorre do fato destes bens poderem ser realizados nas comunidades mais simples, mas apenas porque tais bens são essencialmente privados[38].
É conteúdo do bem público tudo aquilo que diz com a criação do consenso e paz dentro da comunidade, isto é, aquilo que contribui para a harmonização das vontades individuais e as predispõem para a cooperação, que de certo modo pode ser entendido como a justiça. Nesse âmbito é que se dá a atuação do Direito Público, que, além de regular questões atinentes ao próprio Estado, deve preocupar-se com a criação do consenso e concórdia na sociedade[39].
2.2. O princípio da subsidiariedade aplicado às relações estabelecidas entre o ordenamento constitucional e o ordinário
Atentando-se para o fato de que existe um bem próprio às famílias e às comunidades intermediárias, um bem limitado próprio do Estado e um bem comum a todos e que, para todos esses bens, as pessoas são orientadas pelo Direito, não seria demais associar os diferentes ramos do Direito a concretização de tais objetivos.
Entendendo que na seção anterior restou bem definido o papel do Direito Privado, passa-se logo ao estudo do âmbito de atuação do Direito Constitucional.
A Constituição, como foi visto, está no ápice do ordenamento jurídico, consagrando os valores supremos do Estado de modo a orientar a comunidade para a realização do bem comum. Seu papel não é, pois, dirigir as relações privadas, na medida em que o Direito Ordinário cumpre satisfatoriamente essa função, mas sim iluminar todo o ordenamento jurídico inferior, irradiando os princípios fundamentais lá consagrados.
O princípio da subsidiariedade[40], pois, vem contribuir para o estabelecimento de uma relação adequada entre o ordenamento constitucional e infraconstitucional, indicando um parâmetro para a incidência de um ou outro ordenamento.
Inicialmente referido pela Doutrina Social Cristã[41], o princípio da subsidiariedade foi acolhido pela doutrina publicista e passou a ser um dos princípios informadores do Direito Público no tocante a repartição de competências entre o ente maior e o ente menor, servindo, pois, para fundamentar uma nova concepção de Estado, onde o papel do poder público resta limitado para que se resguardem a liberdade, a autonomia e a dignidade humana[42].
Seu objetivo é garantir uma coordenação entre a iniciativa pessoal, a iniciativa privada e a iniciativa estatal, assegurando-se primazia ao indivíduo sobre os grupos intermediários, e destes sobre a sociedade e, por conseguinte, desta sobre o Estado, sem, contudo, afastar o dever do ente maior em oferecer auxílio, estímulo e, em último caso, socorro, atuando em substituição ante a incapacidade do ente menor. Nesse sentido, forma-se, em realidade, uma cadeia de subsidiariedade[43].
Note-se, pois, que o princípio da subsidiariedade contém em si um paradoxo, já que, ao mesmo tempo em que inibe a ação estatal, não retira do Estado a função de estimular a sociedade ou mesmo prestar ajuda direta em substituição a esta, quando lhe faltar condições para agir por si mesma[44]. Admite-se, então, a atuação direta do ente superior em substituição ao ente inferior. Entretanto, assim que as instâncias inferiores voltem a manifestar a sua capacidade para atuar, cessa a intervenção[45].
A realização direta de uma atividade da comunidade menor pela comunidade maior, todavia, só se justifica quando a primeira não o faz de modo satisfatório e eficiente. São, pois, requisitos da concretização e da aplicação do princípio da subsidiariedade: a necessidade da realização de determinada atividade e a maior efetividade da instância superior em tal realização. Logo, para que a instância superior aja em substituição à inferior deve restar provado que a ação é necessária, que o ente inferior não reúne a condição de suficiência para alcançar os objetivos pretendidos e que o ente superior é capaz de persegui-los melhor do que a instância inferior[46].
Aplicando-se o princípio à discussão trazida neste ensaio, entende-se que o Direito Constitucional deve ser aplicado às relações privadas subsidiariamente ao Direito Ordinário e não em substituição a esse, o que necessariamente resguarda a autonomia privada e empresta maior valor a ambos ramos do Direito[47].
O ordenamento ordinário deve gozar de presunção de suficiência ao ser invocado para resolver conflitos que digam respeito ao bem privado. O magistrado, instado a julgar determinada lide que possibilita aplicação do Direito Ordinário e dos preceitos constitucionais simultaneamente – o que na maioria das vezes efetivamente ocorre já que os preceitos constitucionais são abstratos e genéricos –, deve fazer o possível para aplicar o Direito Ordinário, harmonizando-o com a Constituição e não simplesmente aplicar diretamente os preceitos constitucionais, violando a dignidade do direito inferior. Não seria demais admitir que a Constituição e o controle de constitucionalidade foram criados justamente para auxiliar o Direito Ordinário a se aperfeiçoar.
Se a Constituição é o fundamento de validade do direito infraconstitucional, não há porque aplicar diretamente o texto constitucional suprimindo a instância do Direito Ordinário. Por certo, o Direito Ordinário já estará conforme os princípios emanados da Constituição[48]. Se, eventualmente, não estiver conforme, aplicar-se-ão os mecanismos de correção, entre eles, o controle de constitucionalidade.
O Direito Constitucional e o Direito Ordinário possuem cada qual identidade própria e características distintas, o que vem a ser preservado pelo princípio da subsidiariedade. O Direito Constitucional diz respeito aos fundamentos do Estado e do Direito, por isso é qualificado como o direito supremo. A supremacia, entretanto, não só exige a superioridade de matéria, configurada quando a Constituição organiza fundamentalmente o Estado e o Direito, mas também a especialidade de forma, o que implica a impossibilidade de se alterar o texto constitucional, senão por uma forma própria para tanto[49].
O Direito Constitucional tem suma importância por estar no ápice do ordenamento jurídico mediando as relações entre o Direito e a Política, de tal forma possibilitando um ajustamento das relações fundamentais de poder. Trazer normas de Direito Privado para dentro da Constituição acabaria por diluir a importância desta e desfazer a perfeita coerência do ordenamento jurídico[50].
Ademais a presença de normas de Direito Privado na Constituição não altera a realidade. Por exemplo, observa-se que a inserção da regra constitucional que passou a reconhecer expressamente a união estável[51] não alterou a realidade social. O instituto da união estável já vinha sendo reconhecido pelos nossos Tribunais, na medida em que a sociedade o reconhecia. Não era necessário que a norma passasse ao texto constitucional, pois a matéria é notadamente de Direito Privado. Deveria se fazer presente no âmbito do Direito Ordinário, e, apenas por interpretação, estaria contida na Constituição quando essa se refere à família. De qualquer sorte, a presença da norma na Constituição não assegura que o juiz, ao julgar o caso concreto, entenda e fundamente não se tratar da hipótese prevista constitucionalmente, deixando de aplicar o preceito constitucional.
Por outro lado, a presença da norma na Constituição, em virtude da especialidade de forma, impede que o legislador ordinário a modifique, criando um distanciamento entre essa norma (de interesse privado) e a realidade social.
A Constituição, ainda que esteja no ápice do ordenamento jurídico, deve respeitar o direito infraconstitucional, sob pena de violação do Estado Democrático de Direito. Não está ela posta para substituir as decisões das famílias e das instâncias intermediárias, mas apenas para apontar o espectro de possibilidade de realização do bem comum. Cabe ao indivíduo, à família e a todas instâncias intermediárias a opção pelo plano de vida a ser adotado dentro do espectro de possibilidades apontados e cabe ao Estado assistir a estes entes menores caso não consigam por si só a plena realização nos seus diferentes planos de vida.
Conclusão
A observação histórica demonstra que, se nos primórdios as esferas pública e privada encontravam-se diametralmente separadas, atualmente suas relações se intensificaram a ponto de a linha divisória que delimita o âmbito de uma esfera e de outra se tornar bastante tênue e imprecisa. O mesmo aconteceu com o Direito Privado e o Direito Público. A idéia de que estes ramos do Direito eram totalmente autônomos e incomunicáveis restou superada, assim como a supremacia do Direito Privado sobre o Direito Público.
O advento das Constituições e a sua conseqüente valorização asseguraram ao ordenamento jurídico uma unidade e um fundamento de validade comum. Os princípios e regras consagrados nas Constituições passaram a iluminar todo o ordenamento infraconstitucional. Desde então, muito tem se falado na constitucionalização do Direito Privado, que não deve ser entendida além da interpretação do Direito Ordinário segundo os preceitos constitucionais.
O Direito Constitucional é uma disciplina autônoma dotada de grande importância na medida em que faz mediações entre a Política e o Direito, organizando a estrutura fundamental do Estado e do Direito. Ele se presta, sobretudo, para orientar a comunidade para a realização do bem comum. Por outro lado, o Direito Privado diz com as relações estabelecidas entre os particulares, através das quais objetivam a realização do bem privado.
Na medida em que o Direito Constitucional e o Direito Ordinário possuem características distintas, entende-se que as relações instituídas entre ambos os ramos do Direito devem ser orientadas pelo princípio da subsidiariedade.
O princípio da subsidiariedade, trabalhado pela doutrina social da Igreja Católica, migrou para o Direito Público, sendo hoje admitido como uma norma de grau constitucional não expressa no texto. Ele sugere que as instâncias superiores não devem agir em substituição às instâncias inferiores quando essas atuarem eficazmente na concretização de seus interesses. Havendo incapacidade do ente menor, entretanto, torna-se dever do ente maior a intervenção.
Sendo, pois, um critério de repartição de competências, o princípio da subsidiariedade pode ser introduzido na presente discussão. Resta, pois, a idéia de que o Direito Constitucional não deve ser aplicado às relações privadas, cabendo ao Direito Ordinário cumprir essa função. Assim preserva-se a identidade e dignidade de cada um dos níveis do ordenamento jurídico.
Informações Sobre o Autor
Elisa Ustárroz
Advogada no Rio Grande do Sul, especialista em Direito do Estado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e mestranda em Ciências Jurídico-Políticas pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa.