A sucessão na união estável face ao Novo Código Civil

Campos férteis em dissidência doutrinária e desinteligência
jurisprudencial são os da união estável. Especificamente sobre o objeto do
presente estudo, amplíssima ainda é a celeuma, tudo graças à técnica
legislativa que impera no Estado Democrático e de Direito brasileiro. Duas são
as leis federais versando especificamente sobre união estável, sua dissolução e
o direito sucessório. Não bastassem, temos ainda o novel Código Civil, lei
geral, a vigorar em 11 de janeiro de 2003.

Estudar união estável, sobre sua dissolução e os efeitos daí
decorrentes entre os companheiros, exige perspicácia e argúcia singulares. A
finura da observação inicia-se ao demandar do hermenêuta sapiência para
vislumbrar qual lei rege a matéria, se a 8.971/94 ou a 9.278/96. Em verdade, a
primeira veio especificamente para disciplinar os alimentos e facultar aos
conviventes lançar mão do disposto na Lei n. 5.478/68, bem assim garantir
direito sucessório; e, a segunda, regulamentar a norma constitucional (§ 3º do
artigo 226).

Complexa, entrementes, é a situação jurídica acerca dos direitos
emergentes da morte de um dos companheiros. Diversos fenômenos jurídicos
ocorrem quando há ou não herdeiros necessários sucessíveis, indo desde simples
direito real de habitação à adjudicação da totalidade da herança, passando
ainda pelo usufruto vitalício.

Mas, nos estreitos limites do presente, buscaremos decifrar apenas se
o novo Código Civil revogou o direito sucessório versado nas Leis 8.971/94 e
9.278/96.

A Lei n. 8.971/94 foi promulgada especificamente
visando dispor a situação dos companheiros em relação ao direito sucessório (a
par do direito a alimentos). Fê-lo, claramente, como se vê de singela leitura
do artigo 2º, tratando, nos três incisos, sob que condições participarão da sucessão, in verbis: o companheiro sobrevivente terá direito enquanto não constituir
nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de cujus, se houver filhos deste ou comuns; ao usufruto da metade
dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
e, na falta de descendentes e
de ascendentes, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da
herança.

Os dois primeiros casos sucessórios
tratam do usufruto vidual, independente da situação econômica do companheiro ou
de que tenha concorrido para a formação do patrimônio, salvo os bens havidos
anteriormente à união, que são incomunicáveis neste caso. Enquanto viver o
supérstite ou enquanto não constituir nova união, ser-lhe-á deferido o
usufruto, de modo que pode ser vitalício.

O terceiro inciso terminou por
arrolar o convivente ao lado do cônjuge supérstite na ordem da vocação
hereditária. Quando houver bens sucessíveis e não houver ascendente nem
descendente, herdará o convivente, mesmo porque é irrelevante no caso em tela o
regime de bens adotado e a efetiva participação na formação do patrimônio
comum. 

E, no artigo 3º, observou que se os
bens deixados pelo autor da herança resultarem de atividade em que haja
colaboração do companheiro, terá o sobrevivente direito à metade dos bens. Não
há, como observa Silvio Venosa, “superposição de direito, porque o usufruto
incide sobre a herança, e a meação não é herança. Esse usufruto, da quarta
parte ou da metade dos bens, incide sobre a totalidade da herança, ainda que
venha a atingir a legítima dos herdeiros necessários.”[1]

Por força da Lei n. 9.278/96, dissolvida a união estável por morte de
um dos conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto
viver ou não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel
destinado à residência da família (p. único do artigo 7º). Não falou nada sobre
a sucessão, de modo que fica evidente que não tratou de tal matéria. Mas,
trouxe o instituto do direito real de habitação, que caberá aplicação apenas
quanto ao imóvel em que residiam os companheiros ao tempo da dissolução, sendo
ainda o único bem desta natureza.

A lei de 1994 trouxe a meação, adjudicação e o direito real de
usufruto; enquanto que, a Lei de 1996 trouxe o direito real de habitação. No
pensar de Luiz Augusto Gomes Varjão, “o direito sucessório entre os conviventes
continua regulado pela Lei n. 8.971/94, já que a Lei n. 9.278/96 não tratou
dessa matéria. Dessa forma, ainda que o óbito do autor da herança tenha
ocorrido na vigência da Lei n. 9.278/96, os requisitos do direito sucessório
entre os conviventes são os mencionados pela Lei n. 8.971/94.”[2]

Não divergíamos desta posição, daí porque se mostra despiciendo tecer
maiores comentários. Quando a celeuma tratada acerca da união estável for
agitada em face do direito sucessório, portanto, deve-se ter em mira os
parâmetros preconizados pela Lei 8.971/94. Isso, cingindo a discussão às leis
de 1994 e de 1996.

Mas, e em face do novo Código Civil, como fica o direito sucessório?
Cremos que a disposição do Código Civil absorverá o disposto na Lei n.
8.971/94, dada a maior amplitude e ulterioridade daquele. E, com supedâneo no
art. 2º, § 1º, última parte, da Lei de Introdução ao Código Civil, haverá
ab-rogação da Lei de 1994, pois o Código Civil regulou inteiramente toda a
matéria.

Relativamente ao direito sucessório, não houve qualquer benefício ou
previsão aos companheiros no Código Civil de 1916. Na Lei Civil de 2002, também
não se falou muito, mas dispôs-se o suficiente para alterar a regulamentação e
ab-rogar tacitamente a sistemática em vigor.

O direito sucessório na união estável vem estampado no artigo 1.790,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união. Guardou-se lógica
com o regime da comunhão parcial de bens (art. 1.725), adotado para esta
entidade familiar. Em casos que tais, o companheiro, ou a companheira,
supérstite, terá direito: a uma quota equivalente (se filho comum) ou a metade
(se filho exclusivo do “de cujus”); se concorrer com outros parentes
sucessíveis (ascendentes ou colaterais até o quarto grau), terá direito a um
terço da herança. Não havendo parentes sucessíveis, defere-se a sucessão por
inteiro ao companheiro sobrevivente.

Não se fala mais em direito real sobre coisa alheia (usufruto ou
direito real de habitação). O direito do companheiro supérstite é de
propriedade plena (CC, art. 1.784), nos termos e condições arroladas no artigo
1.790.

Mas não pára aí a inovação. Quer-nos parecer que, não obstante tenha o
legislador deixado de fazê-lo expressamente, óbice não há para que o
companheiro concorra com descendentes comuns, na ordem da vocação hereditária,
como herdeiro necessário. Para tanto, mostra-se até ocioso o estudo dos incisos
I e II do artigo 1.829, pois o próprio artigo 1.790 cuidou de fazê-lo no seu
inciso I, porquanto de todo modo receberá a mesma fração hereditária. Com isso,
protege-se, de per si, a legítima do
companheiro (art. 1.846), considerando ainda que o artigo 1.850 fala que, em
testamento, pode o testador não contemplar apenas os herdeiros colaterais,
excluindo-os da sucessão – não fala mais em cônjuge, como dispunha o artigo
1.725 do Código de 1916, nem falou em companheiro.

A mesma equiparação, entretanto, não se pode apresentar em relação aos
descendentes exclusivos do “de cujus” e aos ascendentes deste, posto incompatível
com o sistema de atribuição de quota hereditária adotada nos incisos II e III
do artigo 1.790.

Outrossim, em face do inciso III do artigo 1.829, ao seu lado, não se
deve acrescer o companheiro supérstite, pois este tem disposição específica a
respeito, na qual se menciona que ele terá direito à totalidade da herança
apenas quando não houver outros parentes sucessíveis (art. 1.790, inciso IV) e,
havendo estes (como os ascendentes e os colaterais), terá direito apenas a um
terço. A equiparação pretendida daria mais direitos a quem, lógica e
evidentemente, não ostenta.

Ou seja, na ordem da vocação hereditária, o direito à adjudicação da
herança pelo companheiro nasce apenas quando termina o direito dos ascendentes
e dos colaterais do “de cujus” — mas com estes, antes, concorre com direito a
um terço. A mesma linha de raciocínio se aplica ao inciso III do artigo 1.829,
inviabilizando o companheiro de ladear o cônjuge na ordem da vocação, pois
excluiria os colaterais (que só vêm no inciso seguinte, n. IV) e se chocaria
com o inciso III do artigo 1.790.

Ressalte-se que, a Lei Civil reservou ao cônjuge supérstite,
independente do regime de bens, o direito real de habitação sobre o imóvel
destinado à residência da família, se for o único desta natureza a inventariar.
Não obstante, o companheiro tem igual direito, por força do P. único do artigo
7º da Lei n. 9.278/96 que, neste caso, continua em vigor, ao verberar que,
dissolvida a união estável por morte de um dos conviventes, o sobrevivente terá
direito real de habitação sobre o imóvel destinado à residência da família,
enquanto viver ou não constituir nova união (matrimonial ou não).

A par dessas inovações, vê-se ainda que foi lembrada a união estável
pelo artigo 1.844, quando do deferimento da herança vacante, de modo que só há
vacância, se não houver cônjuge, companheiro ou parente sucessível. Tratou
ainda quanto à indignidade (art. 1.814) e à deserdação (art. 1.963, III).

Nessa senda, sem embargo dos doutos pensamentos contrários, entendemos
que o novo Código Civil revogou inteiramente a Lei n. 8.971/94. A lei posterior
revogou a anterior ao tratar inteiramente da mesma matéria. Logo, aplicar-se-á
apenas o novo Código Civil, permanecendo em vigor tão-somente o P. único do
artigo 7º da Lei n. 9.278/96, quanto ao direito real de habitação do supérstite
sobre o único imóvel residencial dos conviventes ao tempo da morte, coisa que
não fez o novo Código Civil.

Notas:

[1] VENOSA,
Silvio de Salvo. Direito Civil – direito
das sucessões
. São Paulo: Atlas, 2001, p. 91

[2] VARJÃO,
Luiz Augusto Gomes. União estável –
requisitos e efeitos
. São Paulo, Juarez de Oliveira, 1999, p. 139


Informações Sobre o Autor

Alex Sandro Ribeiro

Advogado, Escritor e Consultor.
Pós-Graduado em Direito Civil pelo uniFMU.
Membro do IV Tribunal de Ética da OAB/SP.
Autor dos livros Ofensa à Honra da Pessoa Jurídica e
Arrematação e Adjudicação de Imóvel: Efeitos Materiais.
Autor de dezenas de artigos e trabalhos publicados.
Consultor especializado em ME e EPP.


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