1.
Introdução
Foi aprovado pelo Congresso Nacional
o Novo Código Civil Brasileiro, após uma tramitação que, não obstante a longa
duração, não levou o tema para debate no meio social. Tão-só agora a matéria se
tornou notícia em jornais, não como um meio de discussão, mas como uma mera
comunicação à sociedade da existência de um novo diploma civil, que há de reger
de modo geral a vida privada. E ainda assim muitas vezes observa-se que há um
serviço, mais propriamente de “des-informação” do que de “informação” a
respeito do significado da nova legislação, quando, por exemplo, noticia-se em
programas que agora o homem e a
mulher são iguais no casamento, ou que a
partir do Novo Código é proibido o tratamento desigual à filiação, quando
na verdade essas mudanças já foram operadas em 1988, pela Constituição.
Recém-nascido o Código, vê-se que
antes mesmo de entrar em vigor (em período de vacatio legis) já tramitam no Congresso Projetos referentes à sua
reforma, estando sob análise mais de 150 de seus artigos. Esse quadro chama à
reflexão, em face do que se traçam aqui breves apontamentos relativos ao Código
e ao contexto em que se insere.
2.
Constitucionalização e Fragmentação do Direito Civil
A abordagem do Novo Código Civil não
pode passar ao largo de dois fenômenos que se complementam: a
constitucionalização e a fragmentação do Direito Civil.
Assim assinala Francisco Amaral o
fenômeno da constitucionalização do Direito Civil: “essa constitucionalização significa que os princípios básicos do
direito privado emigram do Código Civil para a Constituição, que passa a ocupar
uma posição central no ordenamento jurídico, assumindo o lugar até então privilegiadamente ocupado pelo Código
Civil, transformando-se este num satélite do sistema constitucional.” [1]
(grifo nosso)
Cumpre reservar algumas palavras
breves para analisar que amplitude toma o fenômeno da constitucionalização em
nossa realidade. Luiz Edson Fachin[2]
leciona que a Constituição Federal de 1988 operou uma inversão ao erigir como
fundamento da República a dignidade da pessoa humana, impondo ao Direito Civil
o abandono da postura patrimonialista herdada do século XIX e na qual se
inspirou o Código Civil pátrio. Submete-se o patrimônio à pessoa: aquele se
legitima enquanto meio de realização desta. E chama a atenção Maria C. B. M.
Tepedino para que “a transformação não é de
pequena monta. Ao invés da lógica proprietária, da lógica produtivista,
empresarial (em uma palavra, patrimonial), são os valores existenciais que,
porque privilegiados pela Constituição, se tornam prioritários no âmbito do
direito civil.” [3]
(grifo nosso)
Outro fenômeno, paralelo, que deve
ser enunciado, como instrumento para se pensar a viabilidade do Novo Código, é
o da fragmentação. Como notou Francisco Amaral, as próprias “…normas [constitucionais] programáticas vão estimular a criação de
leis especiais que, em matéria civil, reduzem o primado do Código e criam uma
pluralidade de núcleos legislativos que fragmentam o sistema unitário presidido
pelo Código Civil, caracterizando o chamado processo de descodificação do
direito.”[4]
Esta fragmentação, como avaliou Monreal, resulta de diversos fatores:
políticos, econômicos, sociais, tendo efeitos nocivos inclusive, pois
converte-se o sistema legal numa “selva normativa” que, nas palavras do autor, ao
invés de “ordenar a vida social, a
desarticula e confunde”.[5]
De qualquer modo, a fragmentação se
impõe. A idéia de Código, engendrada como um sistema fechado, foi quebrada, e
não há mais como se pensar em unir todas as partes num corpo legislativo único.
E a unidade do sistema civil conduz à Constituição. Nesse sentido, fragmentariedade e constitucionalização são
termos que se completam. As necessidades setoriais a exigirem leis
especiais (e especialidade se relaciona com a isonomia), formando microssistemas
autônomos, bem como o sucedâneo de leis sobre um mesmo assunto contraditórias,
produto de lutas políticas (o que resulta da democratização e do sufrágio
universal), revelam que a concepção jurídica não mais se amolda à racionalidade
dos Códigos tais como foram concebidos. Fixa-se uma nova racionalidade do
pós-moderno, do plural, vinculada não mais apenas ao raciocínio silogístico
frio com base numa Constituição do Homem Privado, mas também ao raciocínio
tópico emancipador ligando sempre os diplomas privados à Constituição, que lhes
confere unidade e coerência.[6] [7]
3. Um Novo Código Civil?
Frente a
estes dois fenômenos, neste contexto jurídico, é que deve ser analisado o Novo
Código Civil (afinal, a parte só tem sentido no todo, como já notara Hegel ao afirmar
que “a verdade é o todo”). Primeiramente, pode-se colher das linhas acima que o
Código se coloca como um contra-senso dentro da “era da descodificação”. A
fragmentação existente no Direito Civil Contemporâneo não é um defeito a ser
solucionado pelo Código Civil. De um lado, qualquer diploma seria incapaz de
regular toda a matéria civil social, de modo a reverter esse processo de
criação de microcosmos legislativos, sendo inconcebível hoje o Código como
sistema fechado tal como idealizado na era liberal. De outro lado a unidade do
sistema de Direito Civil é efetuada pela Constituição, fundamento único de
validade e coerência.
Em
segundo lugar, admitida a codificação, embora não como uma solução à
fragmentação, tal codificação não se pode dar sem uma prévia discussão social a
seu respeito e, principalmente, deve se erigir em um corpo legislativo com base
constitucional, que reflita a sociedade e se volte para o presente e futuro,
não para o passado. Em face da ausência desses últimos pressupostos o diploma,
que “caiu de pára-quedas” na sociedade, tem sido rejeitado por grandes
civilistas.
Gustavo
Tepedino argumenta que há motivos razoáveis que fazem sustentar a idéia de um
novo código[8],
contudo “…uma reforma legislativa, na
atual experiência brasileira, só se justifica com a adoção de princípios
normativos e de cláusulas gerais que não sejam meras estruturas formais e
neutras mas, vinculados a critérios expressamente definidos, exprimam a tábua
de valores da sociedade, consagrada na Constituição.”[9] Disso se distancia o Novo Código Civil.
Luiz
Edson Fachin também não trata de rejeitar completamente a idéia de codificação,
mas sim de rejeitá-la nos termos em que foi realizada a proposta do Projeto.[10]
Ao analisar o Projeto do nosso Novo Código Civil[11],
observara o autor que a Constituição de 1988, ao erigir como fundamento da
República a dignidade da pessoa humana, engendrou superveniente
inconstitucionalidade do Projeto do nosso Código Civil, o qual é dotado de
postura patrimonialista e conceitualista.
Essa
postura patrimonialista e conceitualista não se sustenta em face da ordem
constitucional. O patrimônio, por imperativo constitucional, deve se apresentar
num plano secundário e não primário, devendo ocupar o primeiro plano a
dignidade da pessoa humana. Os conceitos abstratos do Código, por sua vez, como
bem demonstrado pela doutrina[12],
não explicam a realidade, mas a realidade os explica, desempenhando eles,
então, uma função mantenedora do status
quo patrimonial da sociedade do Código, e não transformadora, de
emancipação do ser humano[13],
funcionando como um entrave à efetivação da Constituição.
Consoante
Fachin, não somente no conceitualismo e patrimonialismo ignoradores do humano
que o Projeto, hoje convertido em Novo Código, revela-se inconstitucional. Ele em
diversos artigos revela cunho patrimonialista que se sobrepõe a valores
existenciais, privilegia a família matrimonializada, fere a isonomia e,
também, suprime direitos consagrados em
microssistemas legislativos, em leis esparsas que são produtos de previsões
constitucionais, realizando retrocesso de direitos.[14]
A incongruência do Novo Código pode ser notada com
facilidade no Direito de Família. Como assinala Maria Celina Bodin de Moraes
Tepedino, o Texto Constitucional substituiu a família-instituição pela
família-instrumento: “segundo esta ótica,
a instituição familiar recebe a proteção legal se e enquanto mantém seu caráter
de instrumento para o pleno desenvolvimento de aspectos existenciais, que dizem
respeito à personalidade de seus membros, em detrimento das relações de
dependência econômica, hoje não mais prioritariamente tuteladas.”[15] O
Novo Código, ao pretender preservar as bases do Código Civil de 1916, deixa de
assimilar o novo espírito constitucional da família, que tem por base o afeto e
não o patrimônio, que não considera a família como unidade de produção. No
setor referente à família, o futuro
(novo) Código ainda consagra e trata, em muito, da velha família. Ou seja, a própria racionalidade do Novo Código é
obtusa à atual realidade social e jurídica.
A preservação das bases do Código
Civil de 1916 é assinalada como uma qualidade pelos defensores do antigo
Projeto e Novo Código. Para ilustrar, assim escreve Miguel Reale ao comentar o
Livro IV do antigo Projeto do Código Civil, concernente ao Direito de Família: “A comissão Revisora e Elaboradora do Código
Civil, como já se terá notado, não obstante o seu constante empenho em adequar
a Lei Civil às exigências de nosso tempo, sempre
preferiu preservar a estrutura da ora em vigor, enriquecendo os seus
títulos com novos institutos e figuras” (grifo nosso)[16].
A isso se adequa a crítica já
proferida por Gustavo Tepedino: “No
Brasil parece ocorrer situação semelhante. …necessidade de realizar uma
completa transformação para que tudo pudesse permanecer como sempre fora,
pretende-se, com o Código projetado, alterar tecnicamente institutos,
vestindo-lhes com indumentária renovada, de molde a que se ressuscite o
conceptualismo e a cultura jurídica mais do que ultrapassados pelas demandas
sociais contemporâneas.” [17]
Exemplo disso é a manutenção do contrato sobre o pilar da vontade, quando a
doutrina moderna destaca que a vontade na maioria dos contratos contemporâneos,
massificados, tem papel ínfimo. Outro exemplo é o conceito de sujeito de
direito, mero elemento da relação jurídica ao lado de objeto, vínculo e
responsabilidade, quando a pessoa humana, dotada de dignidade, não comporta
jamais uma conceituação.
Há uma outra corrente de juristas que,
diversamente, prefere ressaltar no Novo Código Civil um avanço em relação à
codificação anterior. O ilustre presidente do Superior Tribunal de Justiça,
Ministro Costa Leite, entende que o novo diploma reflete a necessidade de
renovação em face das grandes mudanças operadas em nossa sociedade, e que “Mesmo que se faça um ou outro reparo, o
novo Código é uma obra bem estruturada”.[18]
Também para o eminente Ministro Cesar Asfor Rocha,
da Corte Especial, há um avanço, pois o Novo Código introduziu muitas questões
que provocarão mudanças na jurisprudência. Por outro lado, ressalta que algumas
mudanças não constituem propriamente novidade, pois significam apenas uma
apreensão, pelo Código, de mudanças já realizadas por leis especiais e pela
construção jurisprudencial.[19]
Esse ponto destacado pelo Ministro é outra questão para
que os críticos do Código chamam a atenção. Grande parte das mudanças pontuais
do Novo Código em relação ao anterior não são uma inovação, mas sim a
cristalização no corpo do Código do que a doutrina já construíra, ou do que a
jurisprudência já consolidara. Isso se observa, por exemplo, em relação ao
princípio da boa fé objetiva, produto doutrinário de uma leitura
constitucionalizada dos princípios contratuais, e que já tinha sido inclusive
incorporado por lei especial (CDC), bem como em relação à Teoria da Imprevisão,
uma hipótese importante de construção jurídica jurisprudencial.
Além disso, destaca o Ministro Asfor Rocha que há
alguns pontos negativos, pois muitas questões relevantes foram tangenciadas,
como o comércio eletrônico, relações homossexuais, experiências genéticas, e de
outro lado, e também há outras imperfeições decorrentes da demora no trâmite do
projeto de lei, cuja discussão iniciou em 1974, como a presunção de paternidade
que ainda vigora me face da certeza científica que se pode ter hoje com os
testes de DNA.[20]
4.
Conclusão
Em conclusão, em que pese os pontuais avanços
técnicos do Novo Código Civil com relação ao Código de 1916, e os esforços do
grupo de elaboradores e revisores, cujo saber jurídico é reconhecido,
percebe-se que o novo diploma padece de um lado de uma incongruência temporal,
deixando de atender novas demandas sociais, e de outro lado sustentam alguns
até mesmo sua inconstitucionalidade total, na medida em que a sua inspiração e
racionalidade discrepam dos valores existenciais consagrados pela Constituição.
No mínimo, é um Código que não encontrou suficiente
discussão social, e cujo conteúdo não tem plena ressonância na sociedade
contemporânea e em suas necessidades constitucionalmente consagradas. De
qualquer modo, prudente seria a prorrogação de vigência do projeto, a tempo
indeterminado, para um maior debate no meio jurídico e social.
Notas:
[1] AMARAL,
Francisco. Racionalidade e sistema no Direito Civil Brasileiro, in Revista de Direito Civil-63, omissis, p. 45-66, p. 52.
[2] FACHIN, Luiz
Edson. RUZIK, Carlos Eduardo Pianovski. Um Projeto de Código Civil na contramão
da Constituição, in RDCT, Editora
Padma, p. 243-263, p. 244-246.
[3] TEPEDINO,
Maria Celina Bodin de Moraes. A caminho de um Direito Civil Constitucional, in Revista de Direito Civil – 65, 1993, p. 21-32, p. 28.
[4] AMARAL,
Francisco. Ob. cit.”, p. 52.
[5] MONREAL,
Eduardo Novoa. O Direito como obstáculo à transformação social, Sergio Antonio
Fabris Editor, Porto Alegre, 1988, p. 46.
[6] Assim é que,
na conciliação entre os métodos silogístico e tópico, Perelman situa as bases
para a “nova retórica”, em sua famosa “Teoria da Argumentação” (PERELMAN,
Chaïm. OLBRECHTS-TYTECA, Lucie. Tratado da Argumentação: A Nova Retórica,
Martins Fontes, São Paulo, 1.996).
[7] Assim é que
leciona Francisco Amaral: “Se a época da codificação, basicamente o Século XIX,
resulta do racionalismo jurídico europeu (…) sendo os Códigos momento
essencial da razão jurídica moderna e o símbolo da estabilidade e unidade, a
época atual da descodificação, iniciada com a maré da legislação especial e
extravagante, a partir das primeiras décadas do Século, representa o movimento
e a pluralidade do direito, comprovando a crise da unidade sistemática do
Direito Civil herdada da racionalidade jurídica dos dois últimos séculos. O
Código Civil não mais garante a unidade do sistema privado, deixando a posição
central que nele ocupava e passando o cetro do poder civil à própria
Constituição, agora eixo em torno do qual gravita todo o ordenamento jurídico
da sociedade brasileira. Não mais o regime do monossistema (…), mas o do
polissistema…” (Ob. cit., p. 52). Brilhantemente finaliza: “Constata-se a
crise da sistematicidade e revigora-se o conflito entre o formalismo e o
pragmatismo. Na relação entre o ‘logos’ e a vida, que na modernidade tendia
para a absolutização do primeiro, a pós-modernidade acentua o primado da vida
(…). O mundo da vida supera o mundo da razão” (Ob. cit., p. 55).
[8] TEPEDINO,
Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas
para uma reforma legislativa, in
Problemas de Direito Civil Constitucional, Renovar, Rio de Janeiro, 2000, p.
1-16, p. 8 e 16.
[9] Idem, ibidem, p. 16.
[10] Assim é que
Fachin, abordando a “Reforma no Direito Civil Brasileiro”, afirma que “…a dimensão propositiva da reforma não
começa necessariamente na codificação, pode até passar por ela se a proposição
chamar para si o compromisso com o futuro, e alinhava um programa de repensar
os alicerces e os fundamentos da ordenação social, do privado ao público, e do
público ao social.” (FACHIN, Luiz Edson. A Reforma no Direito Brasileiro:
novas notas sobre um velho debate no Direito Civil, in BED 54, omissis, 1998,
p. 147-155, p. 152).
[11] FACHIN, Luiz
Edson. RUZIK, Carlos Eduardo Pianovski. Ob. cit., p. 243-263.
[12] Por exemplo,
o conceito de sujeito de direito, cuja análise crítica é desenvolvida por
Michel Miaille em: MIAILLE, Michel. Introdução Crítica ao Direito, 2 ed.,
Lisboa, 1994, p. 114-121.
[13]
Assim também Paulo Lobo (LÔBO, Paulo Luiz Neto. “O negócio jurídico como
obstáculo ao desenvolvimento da teoria do contrato”, in Revista Jurídica, Curitiba, v. 2, 1983, p. 155-164, p. 160-164)
critica a posição do Projeto do Código na seara dos atos jurídicos,
especificamente do negócio jurídico: “só
se pode apreender o fenômeno contratual de nosso tempo rompendo-se as amarras
teóricas, ideologicamente fundadas, do negócio jurídico” (Ob. cit., p.
162). Seja a teoria da vontade do atual Código, seja a da declaração do
Projeto, ambas pressupõe a autonomia da vontade, com o que se tornam
insuficientes para explicar a realidade contratual.
[14] FACHIN, Luiz
Edson. RUZIK, Carlos Eduardo Pianovski. Ob. cit., p. 246-250.
[15] TEPEDINO,
Maria Celina B. M. Ob. cit., p. 30.
[16] REALE,
Miguel. O Projeto do Novo Código Civil (situação após a aprovação pelo Senado
Federal), 2 ed., Saraiva, 1999, p. 86.
[17]
TEPEDINO, Gustavo. Ob. cit., p. 16.
[18] Presidente do
STJ diz que novo Código Civil Representa profunda mudança. In: www.stj.gov.br/webstj/Noticias/detalhes_noticias.asp?seq_noticia=4903.
[19] Idem, ibidem.
[20] Idem, ibidem.
Informações Sobre o Autor
Deltan Martinazzo Dallagnol
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Paraná e Procurador da República em exercício na Procuradoria da República no Estado do Paraná.