Resumo: Um dos aspectos mais proeminente do Direito, na condição de ciência, está intimamente atrelado ao seu progressivo e constante aspecto de mutabilidade, albergando em seu âmago as carências da sociedade, as realidades fática que possuem o condão de motivar a renovação do sedimento normativo. Neste aspecto, cuida salientar que o instituto civil da usucapião rememora à Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, sendo um instrumento direcionado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado concernia a posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). . Insta destacar, com forte realce, que a modalidade em comento refoge às formas tradicionalmente entalhadas na legislação, sobretudo aqueles que exigem decurso de lapso temporal mais amplo para a aquisição de propriedade. Em razão da necessidade de promoção da dignidade da pessoa humana, bem como da mantença de patrimônio mínimo da entidade familiar, exige-se que o possuidor efetivamente erija moradia/habitação na área usucapienda. Trata-se, com efeito, de instituto do direito material que objetiva, em seu âmago, a promoção do mínimo existencial imprescindível para existência digna.
Palavras-chaves: Usucapião Pro Misero. Aquisição Originária. Propriedade.
Sumário: 1 Considerações Iniciais; 2 Usucapião: Abordagem Histórica; 3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema; 4 Breve Painel à Usucapião Especial Urbana Individual: Tessituras Introdutórias ao Tema
1 Considerações Iniciais
Inicialmente, ao se dispensar um exame acerca do tema colocado em tela, patente se faz arrazoar que a Ciência Jurídica, enquanto um conjunto multifacetado de arcabouço doutrinário e técnico, assim como as robustas ramificações que a integram, reclama uma interpretação alicerçada nos plurais aspectos modificadores que passaram a influir em sua estruturação. Neste alamiré, lançando à tona os aspectos característicos de mutabilidade que passaram a orientar o Direito, tornou-se imperioso salientar, com a ênfase reclamada, que não mais subsiste uma visão arrimada em preceitos estagnados e estanques, alheios às necessidades e às diversidades sociais que passaram a contornar os Ordenamentos Jurídicos. Ora, em razão do burilado, infere-se que não mais prospera o arcabouço imutável que outrora sedimentava a aplicação das leis, sendo, em decorrência dos anseios da população, suplantados em uma nova sistemática.
Cuida hastear, com bastante pertinência, como flâmula de interpretação o “prisma de avaliação o brocardo jurídico 'Ubi societas, ibi jus', ou seja, 'Onde está a sociedade, está o Direito', tornando explícita e cristalina a relação de interdependência que esse binômio mantém”[1]. Destarte, com clareza solar, denota-se que há uma interação consolidada na mútua dependência, já que o primeiro tem suas balizas fincadas no constante processo de evolução da sociedade, com o fito de que seus Diplomas Legislativos e institutos não fiquem inquinados de inaptidão e arcaísmo, em total descompasso com a realidade vigente. A segunda, por sua vez, apresenta estrutural dependência das regras consolidadas pelo Ordenamento Pátrio, cujo escopo primevo é assegurar que não haja uma vingança privada, afastando, por extensão, qualquer ranço que rememore priscas eras em que o homem valorizava a Lei de Talião (“Olho por olho, dente por dente”), bem como para evitar que se robusteça um cenário caótico no seio da coletividade.
Ademais, com a promulgação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, imprescindível se fez adotá-la como maciço axioma de sustentação do Ordenamento Brasileiro, precipuamente quando se objetiva a amoldagem do texto legal, genérico e abstrato, aos complexos anseios e múltiplas necessidades que influenciam a realidade contemporânea. Ao lado disso, há que se citar o voto magistral voto proferido pelo Ministro Eros Grau, ao apreciar a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental Nº. 46/DF, “o direito é um organismo vivo, peculiar porém porque não envelhece, nem permanece jovem, pois é contemporâneo à realidade. O direito é um dinamismo. Essa, a sua força, o seu fascínio, a sua beleza”[2]. Como bem pontuado, o fascínio da Ciência Jurídica jaz, justamente, na constante e imprescindível mutabilidade que apresenta, decorrente do dinamismo que reverbera na sociedade e orienta a aplicação dos Diplomas Legais e os institutos jurídicos neles consagrados.
Ainda neste substrato de exposição, pode-se evidenciar que a concepção pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Aliás, há que se citar o entendimento de Verdan, “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[3]. Destarte, a partir de uma análise profunda dos mencionados sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis, diante das situações concretas. Com grossos traços e cores fortes, prossegue o eminente Ministro Eros Grau abordando que:
“É do presente, na vida real, que se toma as forças que lhe conferem vida. E a realidade social é o presente; o presente é vida — e vida é movimento. Assim, o significado válidos dos textos é variável no tempo e no espaço, histórica e culturalmente. A interpretação do direito não é mera dedução dele, mas sim processo de contínua adaptação de seus textos normativos à realidade e seus conflitos”[4].
Ao lado do esposado, quadra negritar que a visão pós-positivista que passou a permear o Direito, ofertou, por via de consequência, uma rotunda independência dos estudiosos e profissionais da Ciência Jurídica. Por necessário, há que se citar o entendimento de Verdan (2009), “esta doutrina é o ponto culminante de uma progressiva evolução acerca do valor atribuído aos princípios em face da legislação”[5]. Destarte, a partir de uma análise profunda de sustentáculos, infere-se que o ponto central da corrente pós-positivista cinge-se à valoração da robusta tábua principiológica que Direito e, por conseguinte, o arcabouço normativo passando a figurar, nesta tela, como normas de cunho vinculante, flâmulas hasteadas a serem adotadas na aplicação e interpretação do conteúdo das leis. Gize-se, por necessário, a brilhante manifestação apresentada pelo Ministro Marco Aurélio, que, ao abordar acerca das linhas interpretativas que devem orientar a aplicação da Constituição Cidadã, expôs:
“Nessa linha de entendimento é que se torna necessário salientar que a missão do Supremo, a quem compete, repita-se, a guarda da Constituição, é precipuamente a de zelar pela interpretação que se conceda à Carta a maior eficácia possível, diante da realidade circundante. Dessa forma, urge o resgate da interpretação constitucional, para que se evolua de uma interpretação retrospectiva e alheia às transformações sociais, passando-se a realizar a interpretação que aproveite o passado, não para repeti-lo, mas para captar de sua essência lições para a posteridade. O horizonte histórico deve servir como fase na realização da compreensão do intérprete”[6].
Nesta toada, os princípios jurídicos são erigidos à condição de elementos que trazem em seu âmago a propriedade de oferecer uma abrangência ampla, contemplando, de maneira única, as diversas espécies normativas que integram o ordenamento pátrio. Em razão do esposado, tais mandamentos passam a figurar como super-normas, isto é, “preceitos que exprimem valor e, por tal fato, são como pontos de referências para as demais, que desdobram de seu conteúdo”[7]. Percebe-se, a partir da teoria em testilha, que os dogmas jurídicos são desfraldados como verdadeiros pilares sobre os quais o arcabouço teórico que compõe o Direito se estrutura, segundo a brilhante exposição de Tovar[8]. Essa concepção deve ser estendida a interpretação das normas que dão substrato de edificação à ramificação Civilista da Ciência Jurídica, mormente o princípio da função social da propriedade, no que pertine ao instituto da usucapião e seus múltiplos desdobramentos.
2 Usucapião: Abordagem Histórica
In primo loco, cuida argumentar que o instituto civil da usucapião rememora q Lei das Doze Tábuas, de 455 antes de Cristo, como bem anota Farias & Rosenvald[9], afigurando-se como instrumento empregado para a aquisição da propriedade, quer seja de bens móveis, quer seja de bens imóveis. Para tanto, o único requisito observado implicava na posse continuada por um (annus) ou dois anos (biennun). O primeiro prazo era destinado a móveis e outros direitos (coeterum rerum), ao passo que o segundo prazo era aplicado aos imóveis (fundi)[10]. Guarda harmonia como o expendido os ensinamentos de Madeira, ao lecionar sobre a Sexta Tábua, dicciona que “além de diversas outras disposições, estabelece tal tábua o prazo de dois anos para usucapir bens imóveis e de um ano para o usucapião de bens móveis (VI.5)” [11]. Com efeito, há que se salientar que, durante o período da vigência da Doze Tábuas Romanas, a aquisição da propriedade estava restrita aos cidadãos romanos, ou seja, “somente o cidadão romano podia adquirir a propriedade; somente o solo romano podia ser seu objeto, uma vez que a dominação nacionalizava a terra conquistada”[12].
Com o passar dos séculos, as fronteiras do Império Romano são expandidas, quando começa a se observar o alargamento da possibilidade de usucapir, vez que o possuidor peregrino, consoante preleciona Farias & Rosenvald[13] destacam, passam a ter acesso ao instituto em comento, o qual passa a figurar como uma espécie de prescrição. Desta feita, vislumbra-se um instrumento de exceção (excepitio), cujo pilar de sustentação tange à posse por longo tempo da coisa, atentando-se para os prazos de 10 (dez) e 20 (vinte) anos. Neste sentido, cuida, ainda, colocar em destaque que o legítimo dono não mais teria acesso à posse se fosse negligente por longo prazo, mas a exceção de prescrição não implicava perda da propriedade. Assim, ainda que o peregrino pudesse valer-se da exceção, o que já se revelava um avanço no pensamento da época no que pertine à concepção de cidadão e peregrino/estrangeiro, esta não tinha o condão de retirar o domínio do proprietário negligente. Neste sentido, Ferreira destaca:
“Os dois institutos (usucapio e praescriptio) passaram a coexistir. O primeiro só vigorou para os peregrinos e também quanto aos imóveis provinciais a partir de 212; o segundo (longi temporis) teve vigência desde o ano de 199, sendo que a diferença entre ambos era quanto ao prazo – ano e biênio para a usucapio, dez anos (para os presentes – inter praesentes) e vinte anos (para ausentes – inter absentes) para a praescriptio. O prazo foi aumentado devido à grande extensão do império romano. Essa prescrição de longo tempo foi estendida aos imóveis provinciais e coisas móveis, e constituía um meio de defesa processual – praescriptio, isto é, uma prescrição extinta da ação reivindicatória”[14].
Justiniano, em 528 depois de Cristo, funde em um único instituto a usucapio e a praescriptio, vez que, em decorrência a própria evolução do Direito Romano e dos instrumentos ora aludidos, não mais se observava diferenças entre a a propriedade civil (objeto da usucapio) e a pretoriana (passível de praescriptio). Houve, desse modo, a unificação dos institutos em um único, denominado usucapião, possibilitando ao possuidor de longo tempo (longi temporis) a utilização ação de cunho reivindicatório, com o escopo de obter a propriedade e não uma mera a exceção, contrapondo-se ao que ocorria no instituto da praescriptio. Em decorrência da evolução do Direito Romano, constata-se que a usucapião, de maneira simultânea, se converteu em modo de perda e aquisição de propriedade, razão pela qual é chamada de “prescrição aquisitiva”. Logo, em razão da fusão dos institutos, verifica-se que a praescriptio passa a se desdobrar em dois instrumentos distintos: “a primeira de caráter geral destinada a extinguir todas as ações e a segunda, um modo de adquirir, representado pelo antigo usucapião. Ambas as instituições do mesmo elemento: a ação prolongada do tempo”[15]. Trata-se de instituto que passou a gozar de rotunda relevância no Direito.
3 Usucapião: Abordagem Conceitual do Tema
Com o escopo de sedimentar bases sólidas acerca do instituto em estudo, quadra trazer à baila as noções conceituais, doutrinariamente, estruturadas acerca da usucapião. Pois bem, como se infere dos argumentos algures apresentados, o instituto da usucapião afigura-se como instrumento que tem o condão de dar azo à aquisição da propriedade, em razão da posse continuada, no decorrer de determinado defluxo de tempo, sendo, para tanto, imprescindível a observação dos requisitos acinzelados pelo arcabouço jurídico pátrio. Complementando tal ótica, pode-se destacar, com grossos traços, que a prescrição configura modo originário de aquisição de propriedade e de outros direitos reais pela posse prolongada da coisa, acrescida de demais requisitos legais. Em substrato similar, leciona Rodrigues que a usucapião é “modo originário de aquisição de domínio, através da posse mansa e pacífica, por determinado espaço de tempo, fixado na lei”[16] (usucapio est adjectio dominii per continuationem possessionis temporis lege definit).
Faz-se mister avençar que para o substancialização da usucapião, é imprescindível a conjugação de determinados, que abrangem tanto às pessoas a quem o instituto da usucapião importa, às coisas em que a usucapião pode incidir quanto à forma que a mesma se constituirá. Destarte, denotam-se três categorias distintas em que os mencionados requisitos podem ser albergados, quais sejam: pessoais, reais e formais. No que concernem aos requisitos pessoais, segundo os dizeres de Orlando Gomes[17], os requisitos pessoais são exigências relativas à pessoa do possuidor (usucapiente) que ambiciona adquirir a coisa através da usucapião, bem como do proprietário, que, em decorrência da aquisição da propriedade pelo usucapiente, perde a sua. Ab initio, revela-se importante destacar que o adquirente da propriedade, através da usucapião, seja considerado capaz e detenha qualidade para adquiri-la de tal forma.
Por oportuno, há que se registrar que por se tratar de uma prescrição aquisitiva, logo, aplicam-se ao instituto em comento as mesmas causas impeditivas e suspensivas da prescrição, entalhadas nos artigos 197 e 198, ambos da Lei Nº 10.406, de 10 de Janeiro de 2002[18], que institui o Código Civil. Deste modo, “não correndo a prescrição entre ascendentes e descentes, entre marido e mulher, entre incapazes e seus representantes, nenhum deles pode adquirir bem do outro por usucapião”[19]. Vale registrar que, uma vez dissolvida a sociedade conjugal e terminado o poder familiar, os prazos têm início e passam a ser contados. Em relação àquele que sofre os efeitos decorrentes da prescrição aquisitiva, não se infere nas normas pátrias qualquer exigência relativa à capacidade, bastando, tão-somente, que seja proprietária da coisa hábil (res habilis) de ser usucapida. Há que se registrar, neste ponto, que os incapazes podem sofrer os efeitos decorrentes da usucapião, vez que cabe àqueles que os representam impedir a ocorrência. Farias & Rosenvald não coadunam com tal entendimento, para tanto, expõem que “da mesma forma ninguém poderá usucapir um bem de titularidade do menor de 16 anos de idade ou de pessoa sob regime de curatela”[20].
Em se de requisitos reais, quadra salientar que, neste item, atrelam-se às coisas e direitos suscetíveis de serem usucapidos, pois há direitos e coisas que a prescrição aquisitiva não incide. Assim, há certos bens que são eivados de imprescritibilidade, a exemplo dos bens públicos, ou seja, aqueles pertencentes a pessoas jurídicas de direito público interno. “Quanto aos bens dominiais, não se admite sejam adquiridos por usucapião, embora suscetíveis de aquisição por outros modos”[21]. Quadra destacar, também, que a prescrição aquisitiva incide apenas nos direitos reais que recaem sobre coisas prescritíveis. Consoante aduz Farias & Rosenvald, “somente os direitos reais que recaiam em coisasusucapíveis poderão ser obtidos por este modo de aquisição originário (seja a título de propriedade, servidão, enfiteuse, usufruto, uso e habitação” [22].
Por derradeiro, os denominados requisitos formais da usucapião são responsáveis por atribuir a fisionomia característica da prescrição aquisitiva, oscilando de acordo com os lapsos temporais estabelecidos nos dispositivos legais. Todavia, independentemente da espécie de usucapião, é pungente a necessidade de dois requisitos, a saber: a posse (possessionis) e o lapso temporal (tempus). Aos que se caracterizam pela duração mais curta, exige-se, ainda, a boa-fé (bona fides) e o justo título. A posse ensejadora da usucapião deve ser exercida com animus domini, sendo considerado como o mais importante de seus requisitos, vez que atua como base de sustentação do próprio instituto. Nesse sentido, valiosa é a lição de Orlando Gomes, em especial, quando acrescenta, em relação ao tema em construção, com bastante propriedade, que:
“A posse que conduz à Usucapião, deve ser exercida com animus domini, mansa e pacificamente, contínua e publicamente. a) O animus domini precisa ser frisado para, de logo, afastar a possibilidade de Usucapião dos fâmulos da posse. […] Necessário, por conseguinte, que o possuidor exerça a posse com animus domini. Se há obstáculo objetivo a que possua com esse animus, não pode adquirir a propriedade por usucapião. […] Por fim, é preciso que a intenção de possuir como dono exista desde o momento em que o prescribente se apossa do bem”[23].
Neste giro, cuida explicitar que o animus domini configura a posse qualitativa que possui o condão de evidenciar, ao mundo exterior, que o usucapiente atua como possuidor, externando comportamento ou postura de quem considera, de fato, proprietário da coisa. Mais que isso, na verdade, só existe o ânimo do dano quando a vontade aparente do possuidor se identifica com a do proprietário, isto é, quando explora a coisa com exclusividade e sem subordinação à ordem de quem quer que seja. Por derradeiro, quanto ao animus domini, há que se citar as considerações expendidas por Lenine Niquete[24], que aduz:
“[…] por definição, é o ‘animus domini’ a vontade (ainda que de má-fé) de possuir alguém como se fosse dono, donde o dizer-se que existe mesmo no ladrão, que sabe que a coisa lhe pertence. Mas […] entende-se que para caracterizá-lo não basta aquela vontade: é preciso que ela resulte da ‘causa possessionis’, isto é, do título em virtude do qual se exerce a posse: de modo que se esta foi iniciada por uma ocupação, pacífica ou violente, pouca importa, haverá o ânimo; se, ao contrário, originou-se de um contrato, como o de locação, por exemplo, que implica no reconhecimento do direito dominial de outrem, não se pode reconhecê-lo.”
Ao se examinar o instituto da usucapião, denota-se que, em relação aos bens móveis, o lapso temporal exigido é mais curto, porquanto o encurtamento tem como marco justificatório a dificuldade de individualizar os bens móveis usucapiendos, como também a facilidade de sua circulação. Quadra explicitar ainda que, na realidade, em termos econômicos, vigora o ideário de que bens móveis têm menor importância econômica. D'outro passo, o prazo exigido para usucapir bens imóveis é maior, em razão de se entender que “maior deve ser o lapso de tempo no qual o proprietário fique com a possibilidade de opor-se à posse do prescribente, reivindicando o bem”[25]. Vigora, neste terreno, a premissa que o proprietário do bem imóvel detém maior interesse em conservá-lo, de tal maneira que sua inércia deve ficar sujeita à prova durante um ínterim maior do que em relação aos bens móveis. Ademais, há que salientar que a diversidade de prazos escora-se, também, em decorrência dos requisitos exigidos para a consumação da usucapião. Por exemplo, o lapso temporal é abreviado quando restam comprovados a boa-fé do usucapiente e o justo título da coisa usucapienda.
Ao lado disso, por oportuno, destaque-se, com fortes cores, que é plenamente viável juntar posse para promover a prescrição aquisitiva. É permitido ao possuidor acrescentar à sua posse a do seu antecessor, desde que ambas sejam consideradas contínuas e pacíficas, pois em ocorrendo o contrário, tal possibilidade não subsistirá. Isto é, a soma de posses é permitida no ordenamento jurídico pátrio, mas para sua utilização é necessário o preenchimento de alguns requisitos. Nesta esteira, há que se evidenciar que aquele que obtém posse precária, clandestina ou violenta, não poderá somar o período anterior para completar o decurso temporal exigido pelo instituto da usucapião/prescrição aquisitiva.
4 Breve Painel à Usucapião Especial Urbana Individual: Tessituras Introdutórias ao Tema
Ab initio, há que se evidenciar que a modalidade em comento também pode ser nomeada entre os estudiosos como usucapião pro misero e, tal como a espécie anterior, encontra previsão taxativa na redação da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu artigo 183 e seus respectivos parágrafos, consoante se infere:
“Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. §1º – O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. §2º – Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez. §3º – Os imóveis públicos não serão adquiridos por usucapião”[26].
Trata-se, pelo que se verifica da essência delineadora dos institutos em apreço, que o Constituinte ambicionou a promoção do direito fundamental à moradia, ao tempo que assegura a entidade familiar um patrimônio mínimo, atendendo, assim, ao superprincípio da dignidade da pessoa humana. Desta sorte, promove o Estado a utilização racional de áreas urbanas que se encontram em estado ocioso ou ainda estéril, como também as ocupações irregulares, ofertando, assim, mecanismos de fomento à substancialização dos princípios orientadores do ordenamento jurídico pátrio. A área máxima de ocupação permitida pelo desiderato constitucional limita-se à metragem de 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados), ainda que dentro dela seja edificada obra que exceda tal tamanho. Diante do arvorado, observa-se que o prescribente para adquirir o domínio da coisa usucapienda, através da configuração da usucapião especial, deverá comprovar os seguintes requisitos: imóvel particular em área urbana de até 250 m², prazo de cinco anos, ânimo de dono, utilização para moradia própria, posse sem oposição, inexistência de propriedade de outro imóvel. Kildare Gonçalves Carvalho, com propriedade, ensina que:
“A Constituição estabelece também o usucapião urbano. Segundo o art. 183, a pessoa que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-Ihe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. O título de domínio (propriedade) e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil. Esses direitos não serão reconhecidos ao mesmo possuidor mais de uma vez. Enfim, proíbe a Constituição o usucapião de imóveis públicos”[27].
Com a criação da usucapião especial urbana, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988[28] trouxe a baila situação sem correspondência pretérita, trouxe um novel instituto para a Ciência Jurídica. Insta destacar, com forte realce, que a modalidade em comento refoge às formas tradicionalmente entalhadas na legislação, sobretudo aqueles que exigem decurso de lapso temporal mais amplo para a aquisição de propriedade. Em razão da necessidade de promoção da dignidade da pessoa humana, bem como da mantença de patrimônio mínimo da entidade familiar, exige-se que o possuidor efetivamente erija moradia/habitação na área usucapienda[29]–[30]. Neste cenário, figuram como aspectos qualitativos que delineiam a função social da posse e, por consequência, autorizam a aquisição da propriedade urbana: “elementos de proveito efetivo e ação positiva, como morar ou habitar, dimensão do imóvel que não enseja a exorbitância de tais atividades, restrição à figura do posseiro ou grileiro, dada a oportunidade singular de exercício etc”[31]. A função social da posse que tem o condão de ensejar a prescrição aquisitiva alicerça-se nos elementos externos do aludido instituto. Trata-se de instrumento constitucional que alimenta a busca pela implementação de políticas urbanas. É, devido a tal cenário, que a usucapião especial urbana também é nomeada de pro moradia, justamente por fomentar tal requisito.
Quadra evidenciar que a Lei Nº. 10.257, de 10 de Julho de 2001[32], que regulamenta os arts. 182 e 183 da Constituição Federal, estabelece diretrizes gerais da política urbana e dá outras providências, trouxe em seu âmago rotundas alterações no instituto em comento, pois, ambicionando atribuir maior efetividade à função social da propriedade, além de traçar os marcos regulatórios do tema em âmbito infraconstitucional. Nesta senda de exposição, imperioso se faz ressaltar o artigo 9º do mencionado diploma transcende as disposições constitucionais, incluindo na modalidade de usucapião em estudo área ou edificação urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados. Vale salientar, oportunamente, que a inclusão do termo “edificação” não objetiva cercear o limite da área de construção, vez que o legislador ordinário estaria inovando, segundo os ditames de Farias & Rosenvald[33] sobre aquilo que o constituinte não quis traçar linhas de restrição. Em decorrência do acinzelado, pode-se considerar que o pretenso possuidor que eventualmente ocupa o imóvel desqualifica a essência do presente instituto. De igual modo, resta afastada, em razão do requisito moradia, os bens utilizados com destinação diversa, a exemplo de pontos comerciais e congêneres. Entretanto, gize-se que, em havendo destinação mista, ou seja, utilizado o imóvel usucapiendo como moradia e local de exercício de trabalho, não subsiste qualquer óbice para a aplicação do instituto em exame.
Informações Sobre o Autor
Tauã Lima Verdan Rangel
Doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), linha de Pesquisa Conflitos Urbanos, Rurais e Socioambientais. Mestre em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal Fluminense. Especializando em Práticas Processuais – Processo Civil, Processo Penal e Processo do Trabalho pelo Centro Universitário São Camilo-ES. Bacharel em Direito pelo Centro Universitário São Camilo-ES